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sexta-feira, 4 de julho de 2025
Cena urbana. O barulho das motas das aulas de condução ecoa pelas ruas. Interrompe o fluxo das ideias como uma tosse persistente. Oxalá não passem no exame, pensa — melhor não conduzirem, evita-se o desastre
Homem escreve em seu caderno. Viviam-lhe os dias colados ao corpo como um casaco de má medida. As pessoas achavam-no cordial, inteligente até, e ele mantinha essa impressão com o cuidado de um actor que sabe que o papel é a única coisa que o separa do abismo
Embora gostasse de pessoas e não fosse imediatamente evidente, mantendo uma distância revelada no seu eterno e incomensurável fastio, sempre tentara perceber o que ia na cabeça dos outros por manifesta incapacidade de perceber o que ia na sua, um “desacontecimento”, a passar resvés diante das coisas importantes, a tentar escapar-se da inércia, da falta de vontade e dos azares comuns que lhe deixaram os sonhos pelo caminho
Cena urbana. Às vezes tinha a impressão de que os seus dias eram um desperdício organizado, uma rotina meticulosa e discreta de suicídio social com fôlego longo, sem dramatismo. Um escoamento lento, como a água que pinga de uma torneira mal fechada e afligia-o que tudo aquilo em que acreditava iria morrer com ele ou talvez até, antes dele, como se a vida fosse um ensaio geral sem estreia
Homem escreve em seu caderno. E ele volta ao caderno, ao fragmento de personagem que escreve — ou que o escreve — alguém que complicava por gosto, que só se sentia vivo na contrariedade, como se o sofrimento desse legitimidade à existência, traduzindo liberdade pela distância entre palavras a provar que a literatura parecia acontecer aí, na banalidade que ninguém quer. Nos gestos que ninguém vê

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