É uma prova exata de que a sensibilidade, a criatividade artística não tem censura. Tem uma visão particular sobre os humanos – reais e metafóricos, esses mascarados que o inquietam de tal forma que povoam as suas obras: “Quem está por detrás das máscaras. Quem anda por detrás dessas máscaras?”, questionou. Com os seus argumentos, até certo ponto válidos, reprova, sobremaneira, esse baile. De nome Moisés Ernesto Matsinhe Mafuiane, ou simplesmente Butcheca, expõe a sua 15ª mostra individual, Abraçar o Caos, no Camões – Centro Cultural Português em Maputo. Fomos conhecê-la…
É segunda-feira e a temperatura ronda os 31 graus em Maputo. Butcheca encontra-se do lado exterior do Camões – na interseção entre as Avenidas Eduardo Mondlane e Julius Nyerere – a desanuviar, segundo disse, ao lado de Bocarras, outro artista plástico moçambicano e seu amigo, agora radicado na Alemanha. A porta do Camões está fechada, mas, dentro, os trabalhos já evidenciam alguma sequência na arrumação. Grandes, médios e pequenos quadros em número de 28. O artista está irrequieto, não sossega, embora tente disfarçar de quando em vez quando nos pede opinião.
“Está fantástico”, respondi a encerrar a procrastinação da entrevista. E gravamos, numa visita guiada, problematizada, confidente, marcante e profunda. A razão é que Butcheca é uma espécie de (in)conformado, muito consciente sobre a sua condição social e humana. Expõe o caos desde os anos 1990, mas não é por isso que esgota as preocupações. No Camões, onde inaugurou a nova colecção, há um confronto de tonalidades, cores, formas e telas que nos impelem a reflectir também sobre a nossa conjuntura humana.
Primeiro pensei no título, ainda que de forma automática. Tinha inúmeras sugestões, mas nenhuma ligava àquilo que eu queria. Foi um processo doloroso. Queria, sobretudo, produzir as obras a partir de uma visão caótica, mas queria um título que sustentasse essa viagem. Então, em conversa com Mia Couto, encontramos esse esse título perfeito para comunicar. E ficou assim: Abraçar o Caos.
Por um motivo desconhecido, pelo menos por nós, Butcheca inicia a nossa conversa narrando essa experiência com o escritor moçambicano, Mia Couto, que assina o catálogo da exposição. No texto, o escritor revela que é através da figuração pouco realista que Butcheca procura responder às inquietações que o assombram no quotidiano, numa busca quase sistemática, abrangente e exaustiva da sua essência. Ou seja:
o que parece ser uma luta interna pessoal transforma-se na evocação de uma reflexão mais universal sobre a condição humana, na busca de clareza e de resposta às mais diversas interrogações sobre o sentido das coisas.
E é o que nos guia a perceber Butcheca, lentamente, sem muitas induções da nossa parte: “esta exposição é uma provocação para a coragem. Não só de falar, mas também de refletir e ser percebido”.
As máscaras e os desnudos!
Entre os 28 quadros que constituem a mostra, começámos por analisar o denominador comum através de imagens, cores e perspectivas. E há apenas quatro elementos que configuram mais de 60 por cento dos quadros. Os corpos nus, as cabeças de monstros, os homens de gravatas e as linhas vermelhas que, segundo disse, representam o equilíbrio. E é nesse último que nos traz a energia do contacto, “do poder da expressão humana, a energia de conseguir chegar a qualquer um, seja para poder me comunicar com ele através dos meus desenhos. Esse é o meu propósito. Eu ando em voltas das máscaras. O que é que tens por detrás de uma máscara? Essa é parte da minha inquietação”.
A imagem traz, num equilíbrio visual, dois mundos e duas realidades. Enquanto por um lado quatro mãos tentam formar um vulto, segundo ele, curá-lo, do outro uma máscara mítica, diabólica, chama a atenção. “É o contacto por detrás da máscara. O contacto sobre o corpo, como reconstruir um corpo. E a linha vermelha é a comunicação da energia, esse equilíbrio”.
Numa outra obra, cujo título revelou ser “todos para um ou um para todos”, uns tantos personagens, diga-se de colarinho branco, aparecem nus, engravatados, enquanto o outro, de gravata vermelha, aparece, na parte superior da tela, como que a liderar. Está nu, mas com a expressão potencialmente astuta. “É para mostrar que sempre precisamos de um líder”.
Essa afirmação é um pormenor, mesmo para suavizar a delicadeza do tema, porque, embora controverso, o que Butcheca pretender dizer é que “falar política é terrível. Eu não quero me misturar com a política. Mas, epá…vivemos numa terra, vivemos num mundo. Então, ser um artista que aparece desta forma para se apresentar, vem de uma certa inquietação”.
Na verdade, diríamos que a beldade das formas, a conjugação invulgar das cores – próprias de um artista maduro – aligeiram a precariedade social em que vivemos. É disso que Butcheca nos fala. Onde é que já se viram líderes, estudiosos, engravatados e nus? Metáfora ou não da nossa experiência, do nosso quotidiano, na visão do artista, é nesse contexto que nos encontramos.
Crítica do lado, Abraçar o Caos projecta igualmente o amadurecimento de Butcheca enquanto artista inconformado e esteticista. “Estes trabalhos foram criados para esta exposição. Antes de ter a confirmação para expor aqui no Camões, produzi cerca de 20 obras para aperfeiçoar esta técnica, esta ideia. Eram obras de treinos. Vês que há muitas mudanças na minha técnica?! Normalmente, a minha pintura era colorida, mas nos últimos anos decidi entrar na nova forma, com menos cores, menos esboços e muito impacto”.
Com o seu génio reconhecido, Butcheca expõe, também, em Abraçar o Caos a metamorfose, o crescimento, “os desafios que enfrentei em termos técnicos durante a minha caminhada. Hoje trago técnicas como tela e acrílico; carvão; pastel e colagem de ouro, de papel, de papel reciclado, de folha de bananeiras. Trago também algumas obras com metal sobre o óleo e colagem sobre metal”.
Intersecção entre a literatura e as artes visuais
Em Abraçar o Caos, esclareça-se, não há nenhum traço de amor. É tudo caos para refletir, aprender ou odiar. Na sua 15ª mostra individual, o artista reúne obras inéditas criadas durante o ano que decorre e conta com a participação especial do renomado escritor moçambicano Mia Couto.
E a experiência, segundo contou, foi óptima. A razão é simples: “Venho desde há muito apreciando os dizeres de Mia Couto. Há anos, trabalhei um dos livros dele com um grupo de teatro que queria interpretar. Então, a partir dai, quis buscar o espírito critico e social de Mia Couto para esta colaboração”.
A exposição carrega o poder da palavra do escritor, mas também as várias vivências do artista plástico ao longo da carreira. E esta não é a primeira vez que Butcheca associa as artes plásticas à literatura. Em 2022, o artista expôs A Dança das Sombras cuja curadoria ficou a cargo do escritor Nelson Saúte.
Para o artista, o mais interessante nestas parceiras são os desafios que se colocam. Trabalhar com experientes e com visão diversificada amplia o seu horizonte. “Também, já trabalhei com Mbate Pedro e com Luís Cezerilo”.
Butcheca é um dos principais nomes das actuais artes plásticas moçambicanas. O artista trabalha há cerca de três décadas no domínio da pintura, tendo vindo a reflectir sobre vários temas da actualidade que o inquietam.
Das suas mais recentes exposições, destaca-se A dança das sombras, no Camões – CCP (2022), Vim para contar uma história (2023), no Centro Cultural Franco-Moçambicano, ambas em Maputo, Moçambique, e a exposição de inauguração da Galeria Manoevre, na Ilha de Luanda, Angola (2024).















