Entre cânticos ancestrais e visões profundas, a ayahuasca revela-se como uma medicina da alma — capaz de curar feridas invisíveis, libertar traumas e reconectar o ser com sua essência mais pura. Muito além de seus efeitos alucinógenos, o chá amazônico é consagrado em rituais que misturam espiritualidade, tradição e introspecção. Neste relato íntimo e revelador, mergulhamos na experiência de quem encontrou respostas, reconciliação e leveza ao consagrar o Daime. Um convite à reflexão sobre o poder da floresta Amazônica, os tabus que ainda cercam essa prática e a coragem de se abrir ao desconhecido.

Em tempos de busca por sentido, cura emocional e reconexão espiritual, a ayahuasca tem emergido como uma poderosa ferramenta de transformação. Originária da floresta amazônica, essa bebida ancestral é preparada a partir da fervura do cipó Banisteriopsis caapi com as folhas da Psychotria viridis. Mais do que uma substância psicoativa, ela é considerada sagrada por diversas tradições religiosas brasileiras, como o Santo Daime — nascido no Acre — e também por práticas de matriz indígena e afro-brasileira, como o xamanismo e o chamado Ubandaime, uma vertente da Umbanda que consagra o chá em seus rituais.

A ayahuasca é utilizada em cerimônias espirituais com o objetivo de promover autoconhecimento, cura e renovação interior. Ao ser consumida — ou “consagrada”, como dizem os praticantes — ela induz um estado alterado de consciência que muitos descrevem como um transe lúcido. Embora seus efeitos possam ser comparados aos de substâncias como LSD ou cogumelos psicoativos, a finalidade aqui é completamente diferente: trata-se de uma jornada guiada, introspectiva e profundamente espiritual. A experiência é moldada pelo ambiente ritualístico, pelas músicas (geralmente cânticos xamânicos) e pela intenção de quem participa.

Antes da cerimônia, recomenda-se um preparo físico e energético: jejum de pelo menos quatro horas, abstinência de carnes vermelhas, álcool, drogas e relações sexuais durante a semana anterior. Essa purificação visa ampliar os efeitos da medicina e facilitar o processo de limpeza emocional. Muitos relatam que, ao consagrar o chá, encontram respostas para questões internas profundas — traumas de infância, vícios, medos, bloqueios afetivos. É como se a bebida abrisse uma porta para dentro de si, revelando o que precisa ser curado.

Embora eu costume escrever de forma impessoal, neste caso preciso abrir uma exceção. A ayahuasca me mostrou caminhos que nenhuma terapia havia alcançado. Cresci com uma relação difícil com meus pais, e após assumir minha sexualidade, o distanciamento se intensificou. A frustração era constante, e eu carregava uma dor silenciosa. Na minha primeira consagração, percebi que não perdemos totalmente a consciência. A mente é guiada pelas músicas e pelo ambiente, levando-nos a revisitar memórias, emoções e até pessoas que marcaram nossa trajetória. Ao abrir os olhos, tudo volta: você sabe quem é, onde está, o que está fazendo — embora com uma leve embriaguez e, no meu caso, bastante enjôo.

Em uma das cerimônias, tive uma visão que me marcou profundamente. Vi uma menina negra, de cerca de seis anos, que se aproximou e pediu um abraço. Nunca fui de contato físico, mas não consegui dizer não. Aquele abraço foi diferente de tudo que já vivi: acolhedor, leve, quase curativo. Ela sorriu e disse: “Bom, né?” Eu respondi: “Sim, muito bom.” E ela completou: “Você deveria fazer isso mais vezes com seu filho. Ele gosta e sente falta.” Dias depois, conversando com meu filho — então com oito anos — ele me disse que sua linguagem de amor era o toque: carinho, colo, afeto. Fiquei em silêncio. Eu, que sempre vi o toque como invasivo, percebi que estava negando a ele algo essencial. Desde então, venho reconstruindo essa ponte, e hoje nossos abraços são parte da nossa cura.

Apesar dos inúmeros relatos positivos, o uso da ayahuasca ainda enfrenta resistência. Há quem a confunda com drogas ilícitas, ignorando seu contexto religioso e terapêutico. Outros temem seus efeitos alucinógenos, acreditando que podem desencadear surtos ou dependência — embora estudos indiquem que a ayahuasca não é viciante e pode até ajudar no tratamento de depressão, ansiedade e traumas. A legalidade do chá no Brasil é garantida em contextos religiosos, mas o debate sobre sua regulamentação continua aceso.

Além disso, há críticas sobre a expansão urbana da prática. Alguns questionam se o uso fora das comunidades tradicionais não descaracteriza a essência da ayahuasca. Outros apontam para o risco de apropriação cultural, quando pessoas buscam apenas uma “experiência exótica” sem respeitar os fundamentos espirituais. E há, claro, o preconceito: por estar ligada a religiões de matriz indígena e afro-brasileira, a ayahuasca ainda é marginalizada por setores conservadores da sociedade.

Mas o movimento de abertura é real. Cada vez mais pessoas — de diferentes origens, profissões e crenças — têm buscado essa medicina como forma de reconexão consigo mesmas. A ciência começa a se interessar, e o diálogo entre espiritualidade e pesquisa promete ampliar a compreensão sobre os efeitos e benefícios do chá. Para quem busca experiências profundas, espirituais e transformadoras, conhecer a ayahuasca pode ser um divisor de águas.

A medicina da floresta não é para todos — e nem precisa ser. Mas para quem sente o chamado, ela pode abrir portas que estavam trancadas há anos. E, como eu aprendi, às vezes tudo o que precisamos é de um abraço. E de coragem para recebê-lo.