Os processos judiciais da Inquisição têm sido comparados aos infames julgamentos estalinistas entre 1936 e 1938, “os julgamentos de Moscovo”, mas poderiam ser igualmente comparados aos Volksgerichtshof, os tribunais Nazis da mesma época. Os processos de denúncia na Inquisição têm sido também comparados aos prevalentes na Rússia nos primeiros anos da dinastia dos Romanov, no início do século XVII. Há também quem os considere como concretizações reais do Processo na ficção de Kafka.
O meu objectivo é mais limitado. É analisar o cancelamento produzido pela cancel culture com dois instrumentos de controle do pensamento e da conduta que, apesar de muito antigos, se mantiveram até aos nossos dias, sobrevivendo a vários regimes políticos e às profundas transformações sociais e culturais entretanto havidas. O Tribunal do Santo Ofício foi eliminado no início do século XIX e vinha perdendo importância desde muito antes, como referi, mas o controle da ortodoxia, agora praticamente limitado aos membros do clero, continua por parte da Santa Sé através de um departamento da Cúria Romana, o Dicastério para a Doutrina da Fé.
Este departamento é o sucessor directo do departamento que regulava a Inquisição, a Suprema e Sacra Congregação do Santo Ofício. Mantém os procedimentos inquisitoriais do Santo Ofício, assenta na interpretação dos textos sagrados por parte de especialistas (tal como as fatwas), e os clérigos atingidos têm poucos direitos de defesa. As condenações traduzem-se em várias proibições do múnus clerical ou teológico, ostracizações e estigmatizações.
O que há de comum entre os três dispositivos de controle do pensamento e da conduta pode resumir-se no seguinte. Todos estes dispositivos negam os princípios da argumentação democrática, das garantias processuais e dos direitos fundamentais das Constituições posteriores às revoluções norte-americana e francesa. Nenhum deles assenta na análise dos factos, mas na interpretação autoritária de normas de aceitabilidade, moralidade ou legalidade.
Todos aceitam denúncias anónimas a cujas fontes os acusados não têm acesso. No caso das fatwas – por serem respostas a perguntas concretas – a situação é distinta, embora a identificação de quem pergunta possa manter-se secreta. De todo o modo, o impacto da fatwa foge igualmente ao controle de quem pode ser atingido por ela, tal como acontece nas sentenças do Santo Ofício e no cancelamento. O facto de as denúncias poderem ser oportunistas ou falsas não tem qualquer importância já que, uma vez formuladas, o denunciado é pronunciado culpado e as possibilidades de provar a sua inocência são muito limitadas ou inexistentes.
Dado o prestígio que advém de participar num movimento impulsionado pela autoridade central ou pelo princípio da multidão, gente notória de outros tempos tal como a gente notória de hoje (comentadores políticos, jornalistas e “influencers” conhecidos) esmeram-se no trabalho de amplificação e confirmação das denúncias. As recompensas nas redes sociais não se fazem esperar, o que retroalimenta o narcisismo estrutural do sistema. Todos os três dispositivos rejeitam o princípio do exercício do contraditório. As vítimas das condenações ficam expostas a formas de vulnerabilidade pública de que se não podem defender.
Entre o cancelamento e o Santo Ofício há mais afinidades do que entre qualquer deles e as fatwas. Devido à descentralização da religião islâmica, as fatwas só excepcionalmente atingem a unanimidade típica quer do cancelamento, quer da Inquisição. Embora o exercício do verdadeiro contraditório não exista em nenhum deles, no Islão o facto de haver fatwas contraditórias cria uma forma de contraditório que, sem ser democrático, permite um direito de escolha que contradiz a unanimidade do princípio da multidão que preside ao cancelamento ou ao Santo Ofício.
No caso das fatwas, só as condenações proferidas por líderes religiosos altamente prestigiados atingem níveis de consenso e de unanimidade semelhantes aos do cancelamento e da Inquisição. As mulheres, os intelectuais, os artistas e os cineastas têm sido vítimas de fatwas maiores quando estas assumem o estatuto de sentenças judiciais. Nestes casos, a descentralização torna as punições mais caóticas e imprevisíveis e incluem a flagelação, o exílio e a morte (por apedrejamento, por exemplo).
Há mais semelhanças entre o dispositivo do cancelamento e o dispositivo da Inquisição. Ambos os dispositivos de controle social são accionados por um poder altamente centralizado que permite a unanimidade das condenações. Na Inquisição, a centralização era institucionalmente garantida pela Santa Sé, enquanto no caso do cancelamento a centralização é garantida pelo princípio da multidão digital e dos consensos e unanimismos instantâneos que ele permite. O princípio da multidão digital, longe de actuar como agente de democratização da opinião, fecha o debate e blinda o consenso obtido em relação a qualquer posição minimamente divergente. Quem diverge é de imediato considerado suspeito e, dependendo da época, tanto pode ser ele próprio transformado em alvo do Santo Ofício, como do cancelamento.
Por esta razão, a denúncia produz uma síndroma de terror que se estende a todo o círculo mais próximo do denunciado, seja a família ou o lugar de trabalho. Em teoria, o máximo de solidariedade a que o denunciado poderia aspirar seria o silêncio, mas, na realidade, o próprio silêncio converte-se num amplificador tácito das denúncias: quem pertence ao círculo mais próximo do denunciado tem obrigação de saber mais do que o que os outros sabem. E todos sabem. O silêncio é cumplicidade. É por isso que o lugar do trabalho ou a proximidade comunitária são os campos privilegiados para as denúncias oportunistas, as que produzem os dividendos da inveja – do capital social, por exemplo, do poder e do prestígio institucionais anteriormente na posse do denunciado.
O que se exige formalmente é a confissão, mas a confissão não é mais do que a confirmação e, por isso, a denúncia é simultaneamente o ponto de partida e o ponto de chegada. Na Inquisição, a tortura era o grande agente de confirmação. Como disse Alexandre Herculano, qualquer pessoa sujeita à tortura da Inquisição poderia confessar ter engolido a lua. No cancelamento, a tortura é o próprio silenciamento imposto ao denunciado. Tudo o que ele disser confirma tanto a denúncia como o que ele não disser. Ele pode tentar fazer uma auto-crítica honesta, mas essa funciona sempre como a diminuto da Inquisição. Ou seja, qualquer que seja a sua extensão, é sempre considerada incompleta porque, as denúncias, como são vagas e anónimas, possuem uma elasticidade e dispõem de uns amplificadores que as permite aumentar até ao infinito.
O denunciado-condenado tem de ser exposto a toda a sociedade porque o objectivo não é corrigir o denunciado-condenado, mas instigar o terror social de que o mesmo pode acontecer a outros. Daí a importância dos sambenitos. Mas enquanto na Inquisição os sambenitos operavam pela sobre-exposição, no cancelamento operam pela sobre-ocultação. As vestes são agora as vestes da invisibilização que se estende ao desaparecimento do espaço público, ao desaparecimento dos seus livros das bibliotecas e das livrarias, da sua imagem como atracção nos meios de comunicação, à eliminação do seu nome nas citações e bibliografias, ao olhar de desprezo ou de ódio se por acaso ele aflora no espaço público, ao sussurro sobre quem é o denunciado-condenado para o caso de o transeunte-parceiro de ocasião o não ter identificado.
Tal como na Inquisição, a pena do cancelamento começa a ser cumprida com a denúncia. Há, no entanto, no cancelamento uma informalidade criada pelo princípio da multidão digital que não existia na Inquisição. Nesta era preciso medir minuciosamente a gravidade das denúncias para calibrar a pena que podia ser mais leve ou mais pesada. As mais pesadas eram o exílio, o confisco e a morte. No caso do cancelamento estas três penas podem sobrepor-se sem contradição. O exílio pode ser a fuga para outro lugar muito distante ou para o mesmo lugar onde sempre viveu. Neste último caso, o lugar de sempre é o lugar de nunca porque, depois da denúncia, se está nele de uma maneira totalmente diferente: não como lugar de conforto e reparação de forças para novas saídas ou viagens, mas antes como o lugar de refúgio, de esconderijo seguro. É a nova forma de prisão domiciliária decretada pela multidão digital.
O exílio significa confisco não pelo que se lhe rouba, mas pelo que se lhe impede de ganhar. Se era carpinteiro, deixa de ter encomendas, se era actor, deixa de ter contratos para representar ou para filmar, se era escritor, deixa de poder publicar ou vender os seus livros. O exílio combinado com o confisco conduz cumulativamente à pena mais grave: a morte. A morte é considerada civil quando o corpo-espírito do denunciado-condenado continuam vivos, mas a vida é secreta, não porque esteja presa nalgum lugar, mas porque está esquecida em todos os lugares. O esquecimento é a condenação à morte perpétua.
A morte civil desliza para a morte física, às vezes devagar, outras vezes depressa, mas, em qualquer caso, ninguém nota. Só depois de ocorrer alguém se atreve a lembrar. Mas não há ressurreição porque essa foi apropriada por um ser humano que cometeu o escândalo de se considerar filho de Deus. Mais coragem teve a escrava Rosa Egipcíaca que nasceu na Costa de Ajudá, hoje Benin, em 1719, e morreu nas masmorras (ou talvez a trabalhar nas cozinhas) da Inquisição de Lisboa, em 1771, depois de escrito o primeiro livro de uma mulher negra do Brasil, a Sagrada Teologia do Amor Divino das Almas Peregrinas. Essa ressurreição feita de esforço e sacrifício é a única digna de nome e, por isso, é tão rara.
Conclusão
Para mostrar a expansão da cultura do cancelamento, Bromwich escrevia em 2018 no New York Times que “quase qualquer pessoa digna de ser conhecida já foi cancelada por alguém”1. Isto deve-se ao facto de que, embora as normas que regem o cancelamento sejam ambíguas e variem com o clima concreto das redes sociais num dado momento, os seus efeitos são unívocos: transformar inclusão em exclusão, voz influente em voz silenciada, presença procurada e bem-vinda em presença evitada e ostracizada.
O cancelamento é um instrumento de purga ideológica. Embora a direita e a extrema-direita tenham tido mais êxito em usar a cultura do cancelamento a seu favor, a esquerda e a extrema-esquerda também têm recorrido a ela e, se o fazem com menos intensidade ou menos êxito, isso não resulta de opções políticas, mas simplesmente de terem menos representatividade no mundo das redes sociais.
A cultura do cancelamento não é um movimento social, nem contribui para a democratização do discurso. Os movimentos sociais foram historicamente movimentos de inclusão, que diversificaram as vozes em vez de as silenciar, e sempre que alteraram os discursos dominantes fizeram-no através de duras lutas políticas e do investimento em muito argumentação. Correram muitos riscos em vez de cavalgarem na impunidade. Não procuraram substituir os titulares do poder, mas antes transformar o poder. A voz que obtiveram foi obtida a pulso e contra os silenciadores ao serviço do poder e da cultura dominantes. Nunca buscaram a humilhação pública fosse de quem fosse, embora fossem muitas vezes objecto dela. Sempre procuraram o debate público e, portanto, o enfrentamento de ideias em vez da restrição do debate segundo critérios vagos de correção política, aceitabilidade ou legalidade.
O cancelamento implica epistemicídio, controle epistémico sobre a diversidade epistémica da sociedade e do mundo. Cria linhas abissais que privam os que são por elas atingidos dos direitos considerados irrenunciáveis pelos seres humanos tratados como plenamente humanos. Impede o reconhecimento da complexidade dos temas e o debate rigoroso que ela suscita. Ao fazê-lo, fomenta uma cultura de mediocridade, de dogmatismo, de mimetismo, e de unanimismos dispersos polarizados entre si. A educação, a convivência democrática e a intersubjectividade são as grandes vítimas do cancelamento. O cancelamento é o caldo de cultura das novas formas de fascismo societal e político.
Nota
1 Everyone is canceled.