Entre os sentidos humanos, o olfato é o mais primitivo — e, ironicamente, o mais negligenciado pela contemporaneidade. Em mundo saturado pela imagem e pelo som, é comum se esquecer que o cheiro também é uma forma de comunicação. Fala sem pedir licença, sem emitir sinais visíveis. Ele atravessa a pele, infiltra-se nos labirintos da memória, aciona dispositivos inconscientes. Há nele uma violência silenciosa: o perfume não seduz, invade. E ao invadir, domina.
A história do perfume é a história da tentativa humana de domesticar o invisível. De moldar o ar que nos cerca para construir identidades, fronteiras, hierarquias. Desde os bálsamos sagrados que ungiam os corpos dos faraós — anunciando o intocável — até os frascos meticulosamente projetados das grandes maisons, o perfume se constituiu como signo de poder, como barreira simbólica e como arma. O aroma sempre foi mais do que adorno: foi distinção, dispositivo de classe, discurso político.
O cheiro como estrutura de poder
Na antiguidade, o perfume era privilégio dos deuses e dos reis. No Egito, era oferenda e ornamento; na Grécia, uma forma de marcar rituais; na Roma imperial, um modo de afirmar a superioridade dos corpos governantes. Perfumar-se era, então, inscrever-se numa lógica vertical, num sistema onde o cheiro tornava-se símbolo de pureza, status, superioridade moral e espiritual.
Durante a Idade Média, quando os odores se confundiam com pestes, pecados e podridão, o perfume passou a operar como máscara. Não apenas escondia o cheiro da carne, mas tentava purificá-la simbolicamente. A essência era escudo contra a morte e contra a decadência — um gesto de negação da animalidade. Já nos séculos XVIII e XIX, com a emergência do sujeito urbano e individualizado, o perfume passou a performar o eu. Tornou-se extensão da personalidade, instrumento de diferenciação subjetiva: o cheiro passou a dizer quem se é — ou, sobretudo, quem se quer parecer ser.
Perfume: o desejo de aprisionar a essência
Poucas obras capturam com tanta potência essa tensão entre cheiro, identidade e poder quanto Perfume: A História de um Assassino, de Patrick Süskind. Jean-Baptiste Grenouille, seu protagonista, não deseja apenas compreender o mundo olfativo — ele quer dominá-lo. Seu olfato sobrenatural é mais que talento: é uma maldição. Nascido sem cheiro próprio, Grenouille é excluído da humanidade. Sua obsessão por destilar a “essência do humano” o conduz à violência extrema: assassinar jovens mulheres para aprisionar, em frascos, aquilo que ele considera ser a alma. O cheiro.
A alegoria é brutal: reduzir o ser humano a uma fragrância é negar sua complexidade, sua multiplicidade, sua condição viva. É transformá-lo em objeto de consumo. O perfume, que deveria ser celebração do efêmero, torna-se aqui instrumento de dominação. Grenouille fabrica um perfume tão perfeito que subjuga multidões. Sua fragrância não seduz — subjuga. Não encanta — impõe-se. E é exatamente nesse ponto que Süskind nos lança ao abismo: o que é um perfume, senão uma construção cultural da perfeição? Uma ficção aromática do corpo idealizado?
Cheiro, política e performance na era digital
Na contemporaneidade, essa lógica se refina e se intensifica. O marketing olfativo — presente em lojas, marcas, espaços corporativos e até na arquitetura — explora o cheiro como signo. Não se vende apenas uma fragrância: vende-se a promessa de uma identidade, de um status, de um desejo. Perfumes tornaram-se extensões da persona pública de celebridades, líderes, influenciadores. São máscaras líquidas em frascos de vidro. Estratégias sensoriais que sugerem sucesso, juventude, autoridade.
Cheirar bem é, hoje, uma exigência estética e simbólica. Mas cheirar o quê? E para quem? Há uma política dos odores que nos escapa: certos aromas são racializados, sexualizados, higienizados. Fragrâncias que remetem ao "exótico", ao "limpo", ao "puro", são códigos que carregam ideologias invisíveis. Ao manipularmos nossos odores, construímos versões de nós mesmos que o outro decodifica. E nesse gesto, também ocultamos. O cheiro é verdade e é disfarce. É biografia e é invenção.
Perfumar-se: entre a poética e a violência
O perfume, portanto, é um ato de linguagem. Um discurso sem palavras que fala ao inconsciente. Mas também é um ato político: escolher um cheiro é escolher o modo como queremos ser vistos, desejados ou temidos. E nesse processo, navegamos entre a poética e a violência. Porque, como nos lembra Grenouille, o desejo de capturar a essência do outro é sempre um risco. Ao tentar transformar a identidade humana em substância permanente, esquecemos que o cheiro é, por natureza, volátil. Perfumar-se não deveria ser um gesto de controle, mas de presença. Um rastro, não uma prisão.
Na era da superexposição, onde o visual reina soberano, talvez o olfato seja a última linguagem íntima. A que escapa à selfie, ao filtro, à legenda. A que diz o indizível. Talvez seja no cheiro — esse vestígio invisível — que resistam os traços mais autênticos do humano. E talvez por isso ele continue sendo tão temido, controlado e desejado.
Porque o poder, no fim, não está apenas no que se vê. Está no que se sente sem saber por quê.















