O mote para este artigo veio de uma frase que li recentemente em um trabalho acadêmico. Em certa passagem do texto, o autor escreveu: “A presença onipresente das tecnologias digitais nos dias de hoje é inegável”. O sinal vermelho acendeu. Parei a leitura diante da frase que me causou estranhamento. Algo soava como excessivo.

Tratava-se, evidentemente, de um cochilo sem maior importância que não comprometeu a legibilidade do texto. Afinal, como dizia o poeta latino Quinto Horácio Flaco, ou simplesmente Horácio (65 a.C. —8 a.C.), “Quandoque bônus dormitat Homerus”, ou seja, em bom português, até o bom Homero às vezes se cochila. No entanto, para um trabalho acadêmico em que se espera o uso uma linguagem formal, a redação dada estava inadequada. Seria algo como o candidato ir defender seu trabalho perante a banca de camiseta regata, bermuda e chinelo.

Uso sempre essa frase de Horácio para ressaltar que, por mais cuidado que se tenha na redação de um texto, é inevitável que escapem alguns cochilos. Em razão disso, é importante que os textos passem pelas mãos, e principalmente pelos olhos, de um bom revisor, antes de serem publicados. Um alerta: não dá para confiar cegamente nos corretores ortográficos que vêm embutidos em aplicativos usados para redigir textos; pois, além de deixarem escapar alguns cochilos, costumam sugerir “correções” onde não há erro algum.

Quando me deparo com cochilos em textos, fico curioso em saber o que teria levado o autor a, como se diz popularmente, dormir no ponto. Dizer que estava quase dormindo ou que estava distraído não me satisfaz. Fico curioso em tentar identificar o processo mental que levou o autor a dormitar naquela passagem do texto.

No caso da frase que apareceu no texto acadêmico, a explicação do cochilo repousa (desculpem-me o trocadilho!) no fato de as palavras onipresente e presença terem o mesmo radical e remeterem uma à outra. Onipresente deriva da palavra presente, à qual se acrescentou o elemento oni-, que provém do latim, omni-, cujo sentido é todo, todos, tudo, vale dizer, onipresente é o que está presente em todos os lugares, em todas as partes. Em português, usamos também o adjetivo ubíquo com o mesmo sentido de onipresente.

Esse elemento latino omni- é muito produtivo em português e permitiu formar palavras como onisciência, onipotência, onívoro e ônibus, palavra que, na sua origem, tem o sentido de “para todos”.

Como em onipresente já está contido o elemento presença, em presença onipresente a palavra presença está em excesso, ou seja, é redundante. Redundante significa aquilo que transborda, que está em excesso, que é supérfluo.

Se em palavras como onipotente, onisciente e onipresente fica fácil perceber que nelas há o sentido de todo, tudo, a mesma coisa não ocorre com a palavra ônibus. O sentido etimológico já não é “visível” para o falante comum. Imagine então para um falante de língua inglesa em que a palavra latina omnibus perdeu o omni, encurtou-se e virou simplesmente bus.

Certas redundâncias decorrem do fato de o falante não mais perceber o sentido etimológico da palavra. Não é o caso da redundância que inspirou este artigo, evidentemente. Para o leitor comum, no entanto, expressões como jornal diário e bela caligrafia não soam como redundantes, porque esse leitor não associa jornal a dia, tampouco cali- a belo. Etimologicamente falando, jornal significa diário.

A palavra jornal provém do latim, diurnālis, no sentido de relativo ao dia, diário. Em caligrafia, o elemento grego cali-, significa belo, bonito. Se levarmos em conta a etimologia da palavra, ao dizer bela caligrafia, a palavra bela é excessiva, está sobrando, é como se dissesse “uma bela bela caligrafia”.

A questão é a seguinte: há redundâncias e redundâncias, ou seja, há redundâncias que percebemos de pronto aquilo que está em excesso como ocorre em hemorragia de sangue, mas há redundâncias em que não se percebe mais o excessivo, como bela caligrafia e jornal diário.

Há ainda casos em que a redundância é intencional, ou seja, o falante repete exatamente as mesmas palavras com finalidades persuasivas, reforçando a mensagem. Trata-se de recurso retórico muito eficiente para conseguir a adesão do interlocutor à mensagem transmitida. Quando, num texto, o falante diz, por exemplo, “guerra é guerra”, aquilo que poderia parecer óbvio e desnecessário tem forte valor argumentativo, pois ressalta que, em situações de guerra, instaura-se uma ética diferente da de situações normais.

Um slogan recentemente usado por mulheres em campanha contra o assédio sexual dizia: "Não é não!" Não há aí excesso algum; pelo contrário, trata-se de um slogan conciso, pois diz muito com pouquíssimas palavras. A repetição da palavra não enfatiza que, ao dizer não, está se dizendo que a negativa é absoluta, que não comporta exceções de qualquer espécie.

A linguagem publicitária costuma fazer uso de redundâncias com finalidades persuasivas. Há algum tempo uma campanha publicitária de conhecida marca de esponja de aço dizia: "Só BomBril é Bombril". O que poderia parecer um argumento circular, óbvio, não é; pois a repetição do nome da marca do produto enfatiza que a esponja de aço BomBril é única, diferente das demais. A mensagem que o slogan transmite é que as outras esponjas de aço são imitações e não têm a mesma qualidade da BomBril.

Na linguagem dos cartórios, são comuns redundâncias do tipo “fulano cede, como de fato cedido tem”, “de livre e espontânea vontade”, “nos termos da lei e conforme a legislação vigente”. A alegação do uso intencional de redundâncias é, alegam os cartorários, para que não paire qualquer dúvida sobre o ato descrito pela escritura. A regra é: melhor ser excessivo do que redigir de forma que possa gerar dúvidas ou interpretações diferentes.

Pretendi mostrar com este artigo que há redundâncias que devem ser evitadas por não acrescentarem nada à expressividade da mensagem, como exportar para fora, protagonista principal e monopólio exclusivo; redundâncias cuja repetição não é mais percebida pelos falantes, como em jornal diário; redundâncias que têm forte valor expressivo que podem e devem ser cultivadas, pois contribuem para a eficácia da mensagem e redundâncias que fazem parte de jargões específicos, como as recorrentes em escrituras lavradas em cartórios.