Inesperadamente, no verão francês de 1980, às voltas do início da batalha pelas presidenciais do ano seguinte, o artista cômico mais afamado do país, Coluche, de nascença Michel Gérard Joseph Colucci (1944-1986), apresentou a sua intenção de candidatura ao cargo supremo da França ante os politicamente experientes e estabelecidos Valéry Giscard d’Estaing (1926-2020), Georges Marchais (1920-1997), Jacques Chirac (1932-2019) e François Mitterrand (1916-1996).
Um gesto consciente e uma intenção com propósito. Que causaram estupor e amplificaram certo mal-estar francês. Notadamente com o conclame inaugural de Coluche que referia
J’appelle les fainéants, les crasseux, les drogués, les alcooliques, les pédés, les femmes, les parasites, les jeunes, les vieux, les artistes, les taulards, les gouines, les apprentis, les Noirs, les piétons, les Arabes, les Français, les chevelus, les fous, les travestis, les anciens communistes, les abstentionnistes convaincus, tous ceux qui ne comptent pas pour les hommes politiques à voter pour moi, à s’inscrire dans leurs mairies et à colporter la nouvelle. Tous ensemble pour leur foutre au cul avec Coluche. Le seul candidat qui n'a aucune raison de vous mentir!
Eu convoco os preguiçosos, os imundos, os drogados, os alcoólatras, os veados, as mulheres, os parasitas, os jovens, os velhos, os artistas, os presidiários, as lésbicas, os aprendizes, os negros, os pedestres, os árabes, os franceses, os cabeludos, os loucos, os travestis, os ex-comunistas, os abstencionistas convictos, todos aqueles que não contam para os políticos a votar em mim, a se inscrever em suas prefeituras e a espalhar a novidade. Todos juntos para enfiar isso no rabo deles com o Coluche. O único candidato que não tem nenhuma razão para lhes mentir!
Para muitos, o conjunto dessa intenção de não passava de provocação. Piada. Mais uma. Coisa de comediante. Um não-candidato. Que aproveitava o momento simplesmente para aumentar o seu prestígio. Entretanto, sem tardar, a brincadeira ganhou ares de coisa séria. Tornando-se rápido verdade. E, para diversos, anunciação de tragédia.
Coluche candidato caiu instantaneamente no gosto da opinião pública francesa. Numerosos famosos e anônimos declararam apoio explícito e intenção de reunir forças para conduzi-lo ao Élysée como expressão de asco e negação da classe política em função. Especialmente vis-à-vis daqueles políticos encarnados e circundados pelo presidente Valéry Giscard d’Estaing.
Os mesmos que sucederam o general Charles de Gaulle (1890-1970) e o presidente Georges Pompidou (1911-1974). E, agora, na viragem de 1980 para 1981, pareciam nada compreender do momentum 1968. Tampouco da situação cotidiana do país. Que amargava momentos desafiadores. Com desemprego ascendente. Poder de compra declinante. E empilhamento de crises societais ligeiramente estruturais. Que – especialmente após as crises conduzidas pela saída dos Estados Unidos dos Acordos de Bretton Woods e os conseguintes choques de petróleo ao longo dos anos de 1970 – geravam impotência na classe política diante das externalidades extraordinariamente negativas que haviam decretado o fim dos Anos Gloriosos franceses. Fazendo oportuno um não-candidato. Ou, simplesmente, um candidato sem nenhuma razão para mentir.
Coluche apresentou-se no verão de 1980. Entre julho e setembro. Quando chegou o inverno, em dezembro, ele figurava com 12% de intenções de voto ao passo que Valéry Giscard d’Estaing ia com 32%, François Mitterrand com 18%, Georges Marchais com 14,5% e Jacques Chirac com 8%.
Nesse desenho, ele seguia longe do favoritismo. Mas a aceleração de sua possível candidatura poderia naturalmente conduzi-lo ao segundo turno do pleito. Ou, no mínimo, através de sua performance eleitoral, impedir personagens estabelecidas de seguir jogando.
Ademais, intelectuais de reconhecida relevância – como Pierre Bourdieu (1930-2002), Gilles Deleuze (1925-1995) e Alain Touraine (1925-2023) – aportaram-lhe apoio intelectual, moral e até financeiro. Faltando apenas e tão somente de 500 assinaturas no interior de alguma agremiação partidária para confirmar a sua candidatura.
Em inícios de 1981, Coluche deixou de ser somente um bufão e passou a representar um verdadeiro risco ao sistema e aos políticos estabelecidos. Induzindo os insiders a – não raro, covardemente – mobilizar-se para contê-lo. Com pressões em todas as partes e frentes. Reduzindo e censurando, por exemplo, a sua aparição da imprensa e na televisão e redobrando a severidade das críticas ao seu estilo, à sua profissão e à sua pessoa.
Coluche advinha de uma família empobrecida e periférica de ascendência italiana. O seu pai era um antigo soldado que desertara durante a Segunda Guerra Mundial, trocando a Itália pela França, onde nasceu Coluche, em 1944, em Paris.
Três anos depois, após a morte súbita de seu pai, ele se mudou com a mãe para Montrouge, periferia parisiense. Onde cresceu e afiançou-se detidamente a históricos de crimes e contravenção.
Após firmar-se como artista comediante de renome, a partir dos anos de 1970, o seu sucesso baseou-se, sim, em seu talento, mas também na exploração de temas sensíveis e marginais desse seu cotidiano de infância e adolescência.
Temas jamais completamente entendidos nem aceitos pelos franceses de classes médias e superiores parisienses. Que, de sua parte, desde sempre, dividiam-se ao opinar sobre ele. Tendo-lhe, por um lado, como gênio e, de outro lado, também como um singelo marginal amplamente vulgar. Para os menos acerbos, um comediante irreverente. Nada mais.
Entretanto, Coluche encarnava, mais que ninguém, certo humor urbano movido pelos ares de 1968. Algo pouco ou nada convencional. Que fazia sorrir. Especialmente mediante um tratamento franco e direto dos dilemas franceses daqueles anos de George Pompidou e Valéry Giscard d’Estaing.
Esse jeito de ser era marca de seu tempo. Mas, ao fundo, amedrontava parcelas importantes daquela França ainda inteiramente conservadora, anacrônica nos costumes e démodé frente furor da geração baby boomers.
Coluche, por tudo isso, não conseguiu as 500 assinaturas. E, ao fim, não teve confirmada a sua candidatura à presidência da República.
O que produziu certo alívio a alguns e pleno desconsolo a muitos outros. Notadamente àqueles que desejavam eleger “o único candidato que não [tinha] nenhuma razão para lhes mentir!”.
François Mitterrand venceu Valéry Giscard d’Estaing em 1981, foi reeleito em 1988 superando Jacques Chirac e completou quatorze anos de presidência da França.
Jacques Chirac foi eleito presidente em 1995, Nicolas Sarkozy em 2007, François Hollande em 2012 e Emmanuel Macron em 2017.
Coluche morreu, num trágico e infeliz acidente banal de trânsito, em 1986. Mas, efetivamente, jamais desapareceu do imaginário dos franceses.
Tanto que agora, mais de quarenta anos depois daquela sua quase-candidatura e diante da crise mais aguda da Quinta República Francesa, ele volta a inspirar. E com estilo. No conjunto dos protestos 10 de setembro de 2025. Que bloquearam o país após a demissão do sexto primeiro-ministro sob a presidência de Emmanuel Macron.
Os franceses mais que nunca anseiam tanto por Le seul candidat qui n'a aucune raison de vous mentir! quanto agora. Agora, mais e muito mais que em 1980-1981. O que voltou a irritar variadas colorações políticas estabelecidas. Mas, ao mesmo tempo, veio demonstrar que o momentum Coluche segue distante de terminar.
Coluche jamais ensejou ares providenciais como o general De Gaulle. Mas diante da crise atual francesa ele representa alguma esperança. Ou, ao menos, alguma razão para voltar-se a sorrir.















