Acredito que nossa problemática já começa no título. Durante nossas discussões em sala de aula abordamos que existem diversas narrativas que falam sobre os fatos. É possível até diferenciar o fato em si com as suas interpretações, que sempre colocam os indivíduos a favor e contra determinadas situações. Logo, não podemos pensar em uma verdade ou mentira, mas pontos de vistas divergentes que convivem, podem ser contraditórios, plurais, se completam e até tornam-se antagonistas. Desta maneira, podemos pensar na multiplicidade de significações, interpretações e tentativas de validação.
Das verdade(s)
Acredito que no senso comum, fora da universidade ou dentre aqueles que não estudam nossa temática, a verdade é vista como algo que foi validado ou foi apenas constatado. Entretanto, essa definição esconde uma realidade mais complexa. É neste contexto que Emediato (2016, 2023, 2025) e Charaudeau (2022) compreendem a verdade como um efeito de sentido, produzido de forma simbólica, que se materializa na enuciação e atravessa relações de poder, ideologia e linguagem. Desta maneira, a verdade ou o que se diz sobre determinado evento o não é uma entidade neutra, objetiva ou eterna, mas uma construção que reflete as dinâmicas sociais.
No texto de Emediato (2016), dedicado às dimensões da mentira no discurso político, compreende-se que a verdade é constantemente tensionada no debate dentro da esfera pública. A linguagem na esfera política, em especial, não se compromete necessariamente com a fidelidade aos fatos, mas com a produção de sentidos estratégicos que ligam o político ao eleitor, validando ou negativando sua popularidade. Isso se dá na relação dessas persona com o outro e o espaço, mas sempre discursivamente. O indivíduo se projeta dentro de um espaço e demonstrando por meio de uma linguagem estratégica.
A verdade, nesse contexto, não é simplesmente aquilo que “corresponde aos fatos”, mas sim o que é reconhecido como legítimo por um determinado grupo social. Isso desloca a discussão do campo da objetividade científica para o campo da persuasão e da ideologia. Desta maneira, cada teoria utilizada pelas personalidades políticas são aplicadas e manuseadas a destruir um suposto inimigo, criar uma imagem de si e de possíveis aliados dentro do debate cotidiano presente nos documentos, entrevistas, redes sociais, etc.
Ainda é possível “chamar para nossa discussão”, o texto de Charaudeau (2022), que nos propõe o conceito de figuras da verdade. Segundo ele, “o problema não está na mentira em si, mas na confusão entre as formas de verdade” (Charaudeau, 2022, p. 45). No texto o autor identifica três formas principais pelas quais a verdade aparece no discurso:
A verdade de prova, vinculada à racionalidade científica;
A verdade de crença, baseada em convicções ideológicas;
A verdade de sinceridade, relacionada à autenticidade do sujeito.
Do(s) negacionismo(s) e a(s) verdade(s)
Esse cenário contemporâneo, em que existem múltiplas verdades convivendo dentro do cotidiano, não só político, mas de outras esferas, dá origem ao fenômeno do negacionismo, que não consiste apenas em discordar de determinadas afirmações científicas, mas em rejeitar completamente os critérios que fundamentam a produção racional de conhecimento. Charaudeau (2022) ainda aponta que a negação de fatos comprovados, como o aquecimento global ou a eficácia das vacinas, não decorre da ignorância, mas da adesão a outra forma de verdade – aquela que reforça um pertencimento identitário.
O negacionismo, assim, é uma forma ativa de resistência discursiva contra a hegemonia da verdade científica. Na prática é um projeto linguístico, baseado de ideologias, que tem como objetivo e construção o papel de discordar da ciência, do método científico de produção de conhecimento, das instituições científicas e desvalorização de tudo e todos que são contrários à crença daquele grupo social.
Partindo disto, Emediato (2025) discute que relevância da verdade em nossas vidas ultrapassa o domínio individual e alcança a esfera ética, moral e política. A “verdade escolhida pelo indivíduo e pelo coletivo” permite decidir, escolher, deliberar e responsabilizar-se por ações em sociedade. Quando ela perde seu valor e a mentira se naturaliza – como na temática das fake news - o tecido social se rompe e é possível até que o Status Quo seja abalado.
A desinformação, nesse contexto, não é apenas a veiculação de informações falsas, mas um ataque arquitetado – pensado ideologicamente, linguisticamente - à própria noção de realidade. Para Emediato (2025), a desinformação atua por meio de estratégias discursivas complexas: deslocamentos de sentido, silenciamentos, apelos emocionais e manipulação de fontes. Isso compromete a formação da opinião pública e coloca os sujeitos, instituições, grupos sociais e ideias em zonas de vulnerabilidade.
Da(s) verdade(s) e mentira(s) na política
Acredito que para nossa discussão, a propaganda política também é um espaço privilegiado para observar os usos da manipulação discursiva. Aguiar e Avelar (2016), ao analisarem um material publicitário eleitoral, mostram como o discurso político utiliza estratégias visuais, afetivas e linguísticas para provocar reações emocionais, em detrimento da análise crítica. A mentira política, portanto, não esconde apenas fatos, mas fabrica crenças, gera identificações afetivas e produz realidades simbólicas. Logo, pode-se pensar em um sistema articulado que vê o outro de forma de forma simbólica.
Isto molda a percepção do indivíduo e move suas ações. Isso leva os grupos sociais a diversos conflitos, debates acalorados até alianças e parcerias dentro do debate político. Outro ponto relevante é reconhecer que nem toda mentira opera da mesma forma. Como lembra Charaudeau (2022), “mentiras diferentes servem a funções sociais diferentes e demandam responsabilidades específicas” (p. 112). A mentira política objetiva o poder; a científica, o prestígio e a fraude; a publicitária, o consumo; a comercial, o lucro; a jornalística, a influência ideológica; e a religiosa, o dogma e o controle. Cada uma dessas formas de mentira atua por meio de mecanismos discursivos próprios, com efeitos diversos sobre os sujeitos.
A mentira além o bem e o mal
Ainda assim, convém reconhecer que a mentira também pode cumprir papéis sociais complexos. Em certas situações cotidianas, mentir pode significar proteger alguém, evitar um conflito desnecessário ou preservar a privacidade. É neste contexto, resgatando Friedrich Nietzsche, que percebemos que a noção de bem, mal, certo ou errada não consegue encaixar a noção de mentira. Charaudeau (2022) nos adverte que a obsessão pela verdade pode conduzir a formas autoritárias de controle. A mentira, portanto, pode ser vista não apenas como transgressão, mas também como mecanismo regulador das relações sociais, desde que não se torne uma estratégia sistemática de manipulação.
Das reflexões finais e outras possibilidades
Pensando na experiência individual, é preciso assumir a complexidade da ética do discurso. Sim, eu já menti por medo, insegurança, para evitar dor ou por não saber lidar com determinada situação. Essas necessariamente mentiras não me tornam alguém perverso, mas me fazem refletir sobre a responsabilidade de quem fala, sobre o que fala e da forma que fala.
Em tempos de desinformação e ruído comunicativo, talvez o maior gesto ético seja cultivar o pensamento crítico, a escuta ativa e o compromisso com a complexidade. Falar a verdade não é apenas relatar fatos, mas agir com responsabilidade discursiva, reconhecendo que toda enunciação produz efeitos concretos no mundo social, sejam estes positivos ou negativos.
A verdade, portanto, deve ser pensada como uma construção política e ética. Como defendem os autores aqui discutidos, não basta combater a mentira com dados: é preciso compreender os dispositivos que tornam certas mentiras aceitáveis e certas verdades rejeitadas. Em tempos de pós-verdade, a luta pela verdade exige mais do que razão: exige sensibilidade, escuta e responsabilidade.
Referências Bibliográficas
Aguiar, P. H.; Avelar, M. Cognição e discurso: análise de uma propaganda política. In: Emediato, W. (Org.). Análises do discurso político. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2016. p. 137-162.
Charaudeau, P. A manipulação da verdade: do triunfo da negação às sombras da pós-verdade. São Paulo: Contexto, 2022.
Emediato, W. Dimensões e faces da mentira no discurso político. In: Emediato, W. (Org.). Análises do discurso político. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2016. p. 11-36.
Emediato, W. Manipulação e argumentação. Rétor, v. 13, n. 2, p. 43-63, jul./dez. 2023.
Emediato, W. Análise discursiva, enunciativa e argumentativa de fake news. In: Emediato, W. Argumentação, discurso e polêmica em ambientes digitais. Campinas: Pontes Editores, 2025. p. 25-48.
Nietzsche, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.