Sou um cientista social e, como tal, sinto-me obrigado a tratar dos temas que abordo com objectividade, ainda que não com neutralidade. Sou contra o controle das ideias e dos comportamentos por via dos dispositivos que analiso neste texto, e tentarei explicar porquê. Acontece que, neste caso concreto, há uma razão especial para a minha falta de neutralidade. É que há três anos sou vítima de um cancelamento decorrente de uma infame calúnia assente numa sórdida cadeia de denúncias falsas de que não tenho podido defender-me por não encontrar um fórum onde possa demonstrar a falsidade desta calúnia. O dano na minha reputação e na minha saúde é enorme. Não posso, pois, ser neutro ao analisar este tema. Mesmo assim procurarei fazê-lo com a objectividade possível.

Entendo por cancelamento a proibição ou silenciamento formal ou informal de um pensamento ou de um pensador por razões da sua desconformidade com a ortodoxia política ou cultural dominantes, razões que são, em geral, ocultadas e substituídas por outras de natureza não política e não cultural. Este tipo de controle social do pensamento e de pensadores tem uma história muito ampla, foi declarado eliminado ou restringido pela emergência da democracia liberal e pelo seu princípio da liberdade de expressão, mas voltou a ter uma renovada intensidade em tempos recentes com a chamada “cultura do cancelamento”. Implica exclusão sumária do que é considerado controverso, heterodoxo ou simplesmente perigoso.

São bem conhecidos os cancelamentos de Sócrates, Giordano Bruno, Baruch Espinosa, Damião de Gois, Nikolai Buhkarin, Rosa Luxemburgo, intelectuais opositores das ditaduras civis e militares de todos os tipos, no período do MacCartismo nos EUA e, mais recentemente, na chamada cultura do wokeismo e nalguma reacção contra ela. Nas sociedades democráticas, cuja característica política essencial é o facto de as ideias controversas ou heterodoxas não serem perigosas desde que não envolvam insultos, calúnias ou incitamentos à insurreição anti-democrática, o cancelamento tem de operar através de dispositivos ideológicos considerados não políticos. Os mais comuns no período recente têm a ver com diversidade etno-cultural, com a sexualidade e com a corrupção.

Cancelar está nos antípodas de responsabilizar. Responsabilizar implica argumentação, contraditório, proporcionalidade e respeito pela lei, possibilidade de recurso e de reparação. Cancelar, pelo contrário, implica condenar sem contraditório credível, silenciar, boicotar, torturar, exilar, banir, matar civil ou mesmo fisicamente, com desrespeito pela lei ou total manipulação da lei. Em face disto, a resistência ou oposição no processo de responsabilização é incomensuravelmente mais fácil que no processo de cancelamento.

O cancelamento é o produto de um certo Zeitgeist, amplo ambiente cultural, social, político e jurídico que deixa marcas profundas e duradouras na sociedade, mesmo depois de deixar de existir formalmente. O cancelamento nunca é legítimo. Ao contrário, a responsabilização é tanto mais urgente quanto são prevalentes o racismo, o sexismo, a intolerância, o ódio, a difusão de ideias e notícias falsas e as práticas de supressão dos direitos democráticos (como o direito de votar e de escolher livremente em quem votar).

O cancelamento hoje

O cancelamento está hoje associado à prevalência das redes sociais como uma forma de cultura digital popular que visa envergonhar publicamente uma figura pública influente mediante denúncias referentes à violação não provada de normas de aceitabilidade, de moralidade ou de legalidade, cujo objectivo é silenciar, ou eliminar a influência da figura pública visada. A prevalência das redes sociais é tal que a diferença entre vida real e vida virtual desaparece, sobretudo entre a juventude. Uma nova forma de sociabilidade emerge centrada num individualismo narcisista cujo espelho é a rede (ou redes) em que o indivíduo se integra. Trata-se da fabricação ultrarrápida de prismas de informação e de avaliação assentes numa confiança participativa cujas raízes não são mais profundas que a superficialidade das relações virtuais.

A cultura do cancelamento tem quatro características específicas. A primeira característica é a hiperbolização da denúncia de modo a transformá-la em escândalo público, um escândalo tanto maior quanto a dimensão do conhecimento e influência públicos do visado, seja ele intelectual, líder político, “celebridade” ou “influencer”. A denúncia em si não significa escândalo. Pode, aliás, ser recebida com indiferença ou apenas ressentimento. Para se transformar em escândalo tem de ser processada pelos amplificadores das redes sociais e dos média que podem ter interesses próprios na amplificação. No caso actual, os amplificadores pertencem dominantemente às forças políticas de direita e de extrema-direita, e ainda a alguma forças de esquerda e de extrema-esquerda cuja única aspiração é serem reconhecidas pela direita.

A segunda característica reside em exigir participação acrítica e em converter qualquer crítica em razão suficiente para cancelar o crítico. O temor que isto gera é o principal motor da retroalimentação da cultura do cancelamento. As comportas do ódio dos utilizadores e dos amplificadores das redes abrem-se e inundam instantaneamente o espaço digital.

A terceira característica consiste em que a denúncia de comportamento ou ideia inaceitável pode ser levada a cabo por qualquer indivíduo (real ou virtual) que, ao fazê-lo, se transforma em acusador, juiz e executor da sentença condenatória. Enquanto produto da cultura do cancelamento, o wokeismo assenta na ideia de que a realidade social é uma construção dominada pelo poder, pela opressão e pela identidade grupal. Quem se insurge contra a realidade assim construida é sempre considerado o mais vulnerável, o que corre mais riscos e, por isso, o que é verdadeiro. Designo, como síndroma de David contra Golias, a inveja, não necessariamente consciente, que acciona a diferença de escala de humanidade pública entre quem denuncia e quem é denunciado e se propõe invertê-la como prova de que a hierarquia é sempre injusta, e que resignação não é destino.

A quarta característica é o facto de o cancelamento, tal como o incêndio florestal, se espalhar descontroladamente. Mas, ao contrário do incêndio, ninguém se mobiliza para o apagar e apenas alguns esperam que o terreno, depois de calcinado, eventualmente volte, depois de muito tempo, a deixar crescer a frágil erva da verdade que, aliás, poucos relacionarão com as causas do incêndio anterior. O silenciamento abrupto inicial do visado e o esquecimento posterior são os dois marcos da cultura do cancelamento.

Enquanto vigora descontroladamente, o cancelamento funde o mundo interior de cada participante numa comunidade virtual que opera com lógica de multidão e actua como câmara de eco. Uma vez iniciada a participação, torna-se indesejável tudo o que a ponha em causa. A recusa da diversidade e da complexidade são essenciais ao crescimento da comunidade canceladora. Divergência implica expulsão e cancelamento. O silêncio perante a denúncia ou a perda de activismo em difundi-la podem sem ser considerados suspeitos, mas não põem em causa a dinâmica do cancelamento.

O cancelamento na história: a Inquisição e as fatwas

O cancelamento é uma punição por ideias ou condutas consideradas inaceitáveis, imorais ou ilegais. Todas as sociedades tiveram meios, procedimentos e instituições encarregadas de averiguar a natureza das ideias e das condutas e de impor a respectiva punição. As diferenças quanto aos meios, procedimentos e instituições são o que distingue as sociedades.

Neste texto restrinjo-me a dois tipos de dispositivos censórios e punitivos que, embora criados no que designamos como Idade Média, continuaram a ter uma influência importante durante toda a época moderna e até aos nossos dias. Trata-se de dispositivos com fortes ligações ao Estado moderno, após a criação deste, mas que têm em relação a ele alguma autonomia formal. Refiro-me aos tribunais da Inquisição na Igreja Católica e à emissão de fatwas na religião islâmica, embora a situação neste último caso varie muito de país para país. Não pretendo entrar no longo debate histórico sobre a origem, a função, a organização, a relação com o Estado ou autoridade civil de qualquer destes dispositivos. Pretendo apenas analisar as semelhanças e as diferenças entre os métodos que usam e as sanções que aplicam.

A Inquisição

Apesar de existente desde o século XII, é sobretudo a partir do século XVI que a Inquisição assume uma função importante de controle social, em particular no respeitante à sexualidade e à heresia (apostasia, blasfémia, feitiçaria), dois temas que, sob formas diferentes, aparecem frequentemente nos processos de cancelamento. Havia tribunais da autoridade civil com funções semelhantes, mas os tribunais do Santo Ofício da Inquisição tinham uma ubiquidade, penetração territorial e capilaridade social muito superior (“familiares”, clérigos, juízes itinerantes).

A relação com o Estado era estreita. Os condenados à morte por heresia eram entregues aos tribunais seculares para estes declararem e executarem a sentença final. Era frequente o Rei assistir aos autos-da-fé, sobretudo quando a pena máxima (morte na fogueira ou pelo garrote) era imposta pelo tribunal do Santo Ofício em colaboração com o tribunal civil. A mesma colaboração estreita existia no caso de confisco de bens e propriedades.

O Tribunal da Inquisição existiu na Espanha entre 1478 e 1834 e em Portugal entre 1536 e 1821. As relações entre as duas monarquias ditaram a sorte de judeus e mouros, os quais durante séculos tinham praticado livremente a sua religião. Em Portugal, é conhecida a perseguição de que passaram a ser vítimas, a partir de 1497, os conversos (cristãos novos ou marranos) acusados de continuarem a praticar secretamente a sua religião. A perseguição estendeu-se às colónias destes países. São exemplos a Inquisição de Goa e a Inquisição do Brasil, no caso português, e a Inquisição do Peru e a Inquisição do México, no caso de Espanha. As vítimas incluíam também os acusados de praticarem as religiões africanas (feitiçaria) e, na India, o hinduísmo.

O tribunal do Santo Ofício começava pelo “édito de graça” (mais tarde, “édito de fé”) em que durante trinta dias aceitava denúncias anónimas de todo o tipo, incluindo, rumores, boatos, suspeitas. A confiança que os inquisidores depositavam nos denunciantes era um incentivo à denúncia oportunista (motivada por vinganças e rivalidades ou pelos benefícios que podiam decorrer da condenação do denunciado). Os denunciantes com uma relação mais próxima com o denunciado eram particularmente valorizados (parceiros em negócios, trabalhadores no mesmo local, habitantes da mesma casa, parentes).

O prestígio decorrente de participar no trabalho do Santo Ofício e a protecção que daí adviria levou a que gente mais tarde famosa fosse colaboradora assídua. Foi o que sucedeu com o pintor Doménikos Theotokópoulos, mais conhecido por El Greco, que além de pintar figuras da Inquisição de Toledo, frequentou o tribunal como intérprete e como testemunha. Os denunciantes não eram sujeitos a qualquer processo de contraditório. O crime de heresia era considerado tão grave que até criminosos, excomungados e dementes podiam denunciar ou testemunhar. As denúncias mais comuns era o cripto-judaísmo ou cripto-islamismo, superstição, feitiçaria, blasfémia, homossexualidade, bigamia, luteranismo, maçonaria, heresia (crítica dos dogmas).

Os suspeitos eram convocados perante os inquisidores e o terror era tal que muitos confessavam apenas por medo que os amigos ou vizinhos os viessem a acusar mais tarde. Os acusados eram presos e considerados culpados a menos que provassem a sua inocência. Tal prova era difícil até porque os acusados não conheciam os detalhes da acusação nem quem os acusara ou a identidade das testemunhas. Por isso, uma possibilidade comum de absolvição residia em o denunciado ter denunciado outras pessoas. A confissão era obtida mediante ameaças de morte, prisão, privação de alimentos, e sobretudo a tortura ou a ameaça de tortura, mostrando os instrumentos de tortura que seriam utilizados.

Ao longo dos séculos o papado produziu vários manuais sobre a autorização e uso da tortura. A tortura podia ser aplicada quer quando o crime não estava provado, quer quando a confissão era considerada incompleta (basicamente por não ter denunciado outras pessoas, o chamado diminuto). A presença do advogado nomeado pelo Santo Ofício era um simulacro sem qualquer propósito de defender o acusado. Aliás, o dito advogado não tinha acesso ao processo e transformava-se frequentemente em mais um denunciante.

Os julgamentos eram secretos e não havia recurso. As punições tinham três níveis: penitência, reconciliação e morte. Os penitenciados e reconciliados eram obrigados a usar durante meses o sambenito, uma túnica que os estigmatizava como condenados, símbolo de infâmia. As penas mais comuns eram o exílio, a flagelação, o trabalho forçado (por exemplo, nos navios), o confisco de propriedade, a prisão e a pena de morte pela fogueira ou pelo garrote. O exílio tinha a função de excluir da sociedade todos os indivíduos indesejáveis. O confisco da propriedade tinha não só a função de financiar a Igreja (os inquisidores) e o Estado (em menor medida), como também de punir a família do condenado que ficava à mercê da caridade pública.

Um caso exemplar: a condenação de Damião de Gois

Damião de Gois1 nasceu em 1502 em Alenquer, Portugal, onde também morreu em 1574. Era um cristão-velho (sem ascendência judaica ou muçulmana), um humanista, historiador (autor da Crónica de D. Manuel), diplomata com várias missões no que são hoje a Holanda, a Alemanha, a Áustria e a Itália, director da Torre Tombo, um intelectual conhecido em toda a Europa, uma das figuras mais relevantes do Renascimento português. Como o caracteriza Raul Rego, Damião de Gois era um homem “cheio de carácter, tendo o culto da verdade e da beleza, da amizade também e gostando de viver e comer bem, rodeado de coisas belas”. Foi hóspede de Erasmo durante quatro meses em Friburgo e encontrou-se com Lutero e Melanchton, com quem trocou correspondência.

A primeira denúncia de heresia foi feita pelo jesuíta Simão Rodrigues em 1545, mas só quase trinta anos depois (em 1571) é que as denúncias o levaram ao tribunal do Santo Ofício, tendo sido preso durante dezasseis meses e condenado em 16 e Outubro de 1572 a prisão domiciliária perpétua. Morreu dois anos depois e suspeita-se que terá sido assassinado. Os testemunhos foram minuciosamente registados, o que nos permite ver o carácter vago das denúncias, as diferentes versões, as dúvidas sobre as fontes de informação, os hiatos entre aquilo de que a testemunha se lembra e do que se não lembra.

Entre as muitas denúncias de heresia menciono duas. A primeira é de ter convivido com hereges satânicos e de, em conversa com jovens que os acompanhavam, ter mostrado simpatia pelas suas ideias. O denunciante reconhece que “por haver muito tempo que passou (oito anos, não, talvez nove) e também por não pensar mais nisso” não se lembra em pormenor das coisas heréticas de Damião de Gois , apenas “via que (ele) se deleitava muito e comprazia nelas”. Damião tenta confessar pecados da juventude, mas que não significam heresia.

É que “ele, Damião de Goes, se achou na Universidade de Lovaina e outras partes, em banquetes de letrados, assim teólogos como outros, que o convidaram a suas casas, e ele à sua, nos quais banquetes, como se lá costuma, se convidam os homens uns aos outros a beberem mais do que do necessário. E, por companhia, bebem com o dizerem o mesmo provérbio de não fazer mal o que entra pela boca. E por o dizerem não ficam por isso suspeitos na fé”. Comenta Raul Rego, “Aí temos a cena da convivência social descrita por um pobre encarcerado às almas miúdas e ressequidas dos inquisidores. É um homem de mente larga a querer fazer entrar na cabeça pétrea de teólogos para quem a fórmula, a letra, é tudo e o espírito quase nada, a humana compreensão e generosidade. É querer obrigar um vesgo a olhar direito.”

Uma outra denúncia é a da Dona Briolanja, sobrinha de Damião de Gois. Há muitos anos, numa sexta feira (não se lembra exactamente, “talvez tenha sido sábado?”), “estando prenha”, não lhe apetecia comer pescado em dia que era proibido comer carne e que, em face disso, o tio Damião de Gois logo mandou vir um pedaço de lombo de porco da taberna (não se lembra bem: seria lombo ou entrecosto de porco com linguiça?) e deu-lhe a comer e também comeu. E quando a sobrinha se espantou, o processado respondeu “sobrinha, o que entra pela boca não faz nojo” (ou talvez “o que vai para dentro não faz nojo”).

Damião de Gois, com setenta anos de idade, preso há vários meses, doente com sarna, desespera com tantos detalhes, tantas versões e tantas minúcias sobre coisas triviais passadas há muitos anos e desabafa perante os inquisidores: “dizer na verdade que quando estou diante de Vossas Mercês e me fazem perguntas, que não estou em mim perfeitamente como o estaria se com eles praticasse e falasse em outros negócios fora desta prisão… As coisas em Flandres e Itália andam mais largas que cá”.

De nada valeu a defesa de Damião de Gois. Foi condenado, mas curiosamente o auto-de-fé não foi público (sentença foi pronunciada na presença exclusiva dos inquisidores), tal era o medo dos inquisidores que se soubesse na Europa o atropelo que estavam a cometer contra um homem internacionalmente reconhecido e respeitado.

Justifica-se assim o acórdão de 16 de Outubro de 1572: “E que não fosse a público, vistos os inconvenientes que se consideraram da qualidade da pessoa do réu, ser muito conhecido nos Reinos estranhos, pervertidos de hereges, que disso se podem gloriar. E o que convém à limpeza e reputação deste Reino nas coisas da fé”. Em comentário final afirma Raul Rego “E quem passava pela Inquisição era chamuscado para sempre. Todos fugiam dele e menos ainda gostariam de o ter sob o mesmo tecto. Longe iam o esplendor, a criadagem, as reverências, as recepções com boa comida e harmoniosos cantares. Saído da Inquisição, Damião de Goes era um reconciliado [tipo de condenação] e o seu contacto comprometedor para quantos o conheciam”.

As fatwas

Tal como os julgamentos do Santo Ofício, as fatwas têm a função de controle social e de correcção no plano da ortodoxia. Mas as semelhanças terminam aí, dado que no Islão não existe uma autoridade centralizada semelhante ao papado na Igreja Católica. A história da fatwa no Islão sugere que ela pode ter três significados: uma informação autorizada sobre a religião islâmica; um parecer ou consulta para um tribunal; uma interpretação da lei islâmica.

Fatwa é usada no Corão como significando “solicitando uma resposta definitiva” ou “dando uma resposta definitiva”. A fatwa cobre hoje um vasto campo de teoria jurídica, teologia, filosofia, ortodoxia, muito para além do que se designa como jurisprudência (fiq). A fatwa não é uma decisão judicial e abrange matérias muito para além do que compete aos tribunais. Ao contrário da decisão judicial, a fatwa não é de aplicação obrigatória; o seu cumprimento é voluntário.

Dada a falta de centralização do Islão, as fatwas podem ser emitidas por diferentes escolas e a sua autoridade depende da autoridade dos chefes religiosos que as emitem (os muftis). E estes, ao pronunciarem uma dada fatwa, devem justificá-la à luz de uma dada tradição ou doutrina. Os líderes religiosos (muftis) com mais alta qualificação são considerados intérpretes “absolutos” ou “independentes” da sharia, a lei islâmica. Ao longo da história do Islão, têm existido alguns muftis muito poderosos, inclusivamente como líderes políticos. Em tempos mais recentes, a fatwa tem sido considerada como uma opinião jurídica emitida por um especialista em direito islâmico. Como uma tentativa de harmonizar e sistematizar as fatwas existem hoje três Conselhos de ideologia islâmica, um no Paquistão, outro na Arábia Saudita e outro no Egipto, mas o seu papel é meramente consultivo e de clarificação.

As fatwas são semelhantes às opiniões dos jurisconsultos romanos ou às responsa rabínicas dos especialistas judaicos. Comum a todas é o facto de consistirem em respostas a perguntas, mas o estilo retórico, as fórmulas convencionais e a própria linguagem variam muito segundo a cultura islâmica local. Existem grandes colecções de fatwas do tempo do Império Otomano e de certas escolas da Índia.

As fatwas não assentam em prova testemunhal ou exercício do contraditório, mas na leitura das fontes textuais e da interpretação que a autoridade religiosa lhes dá. Os muftis não examinam os factos, aceitam-nos tal como são formulados nas questões de interpretação que lhes são postas. As fatwas variam muito de importância não apenas segundo a autoridade do mufti, mas também segundo o seu conteúdo. As fatwas menores contribuem para a estabilidade social e para a organização de assuntos correntes, enquanto as fatwas maiores constituem uma declaração importante perante, se interesse público geral sobre questões sem precedente ou particularmente difíceis, referentes a legitimação religiosa, disputas doutrinais, crítica política, mobilização política. No período do colonialismo histórico europeu foram emitidas muitas fatwas anti-coloniais.

No Império Otomano uma fatwa de 1727 autorizou a impressão de livros não religiosos, a vacinação foi considera legítima por uma fatwa de 1845. Uma fatwa de 1804 declarou a guerra no norte da Nigéria e fatwas das primeiras décadas do século XIX na India declararam este país como sendo um país de infiéis e incitaram os muçulmanos a resistir ou emigrar. Fatwas contrárias foram posteriormente emitidas.

A mesma contradição entre fatwas em temas políticos controversos teve lugar também na Argélia durante o século XIX. Em 1904, o ulama de Fez emitiu uma fatwa exigindo a demissão de todos os funcionários europeus contratado pelo sultão. A fatwa do sultão otomano em 14 de Novembro de 1914 declarando a jihad marcou a entrada oficial do Império Otomano na Primeira guerra mundial. Em 1933, o ulama do Iraque emitiu uma fatwa exigindo o boicote de produtos sionistas. Durante o século XX, talvez a mais famosa (e infame) fatwa em tempos recentes é do Ayatollah Ruhollah Khomeni, em 1989, condenando à morte Salmon Rushdie pela publicação do livro Versos Satânicos e pela blasfémia, apostasia e ataque ao Islão que o livro continha.

Segundo o Oxford Centre for Islamic Studies, houve recentemente desenvolvimentos significativos no que diz respeito ao carácter do mufti, ao meio através do qual as fatwas são comunicadas, aos tipos de perguntas feitas e às metodologias pelas quais os muftis chegam às suas respostas. De acordo com os princípios tradicionais da jurisprudência islâmica (usūl al-fiqh), um mufti deve adquirir um alto nível de conhecimento especializado antes de emitir fatwas; no entanto, muitos movimentos militantes e reformistas têm divulgado fatwas emitidas por não especialistas, que têm sido amplamente divulgadas e seguidas.

Por exemplo, em 1998, Osama bin Laden, juntamente com quatro outros associados que se autodenominavam Frente Islâmica Mundial, emitiu uma fatwa apelando a uma “Jihad contra judeus e cruzados”. A fatwa proclamava que era dever individual de todos os muçulmanos matar o maior número possível de norte-americanos, incluindo civis. Além de denunciar o conteúdo desta e de outras fatwas atribuídas a bin Laden, muitos juristas muçulmanos salientaram a falta de qualificações necessárias por parte de bin Laden para emitir fatwas ou declarar jihad. Em tempos recentes, as fatwas de militantes extremistas (recomendando bombas-suicidas, assassinato indiscriminado de transeuntes) são considerados exemplos do desrespeito pela jurisprudência clássica na qual se devem fundamentar as fatwas.

Em Julho de 2005, quase duzentos proeminentes ulamas reuniram-se na Jordânia para emitir uma decisão que reconhecia a legitimidade de oito escolas de direito islâmico, proibia declarar qualquer membro dessas escolas como apóstata e declarava que apenas estudiosos formados de acordo com os requisitos de uma escola de direito reconhecida poderiam emitir fatwas. Um dos principais objetivos da declaração, conhecida como a “Mensagem de Amã”, era deslegitimar as fatwas promulgadas por líderes de movimentos islâmicos violentos2.

Calcula-se que um terço dos muçulmanos do mundo vive actualmente em países de maioria não muçulmana. A procura por fatwas sobre questões como participar em casamentos na igreja, responder à proibição francesa do hijab em escolas públicas ou comprar casas através de hipotecas levou ao controverso desenvolvimento do que, desde 1994, tem sido denominado fiqh al-aqallīyāt, ou a jurisprudência das minorias (muçulmanas). Organizações como o Conselho Fiqh da América do Norte, criado em 1986, e o Conselho Europeu para a Fatwa e a Investigação3 (ECFR), fundado em 1997, têm procurado fornecer decisões autorizadas que abordem as preocupações das minorias muçulmanas, facilitem a sua adesão à lei islâmica e salientem a compatibilidade do Islão com a vida em diversos contextos modernos.

Os membros internacionais do ECFR adotaram uma metodologia explícita de recorrer às quatro principais escolas de direito, bem como a uma série de outros conceitos jurídicos, a fim de produzir fatwas colectivas adequadas aos contextos europeus. Por exemplo, uma decisão do ECFR emitida em 2001 permitiu que uma mulher convertida ao Islão permanecesse casada com o seu marido não muçulmano; os muftis justificaram esta posição em parte com base nas leis e costumes europeus existentes que garantem às mulheres a liberdade religiosa. Embora este tipo de decisão tenha sido bem recebido por muitos, foi criticado por outros como criando um sistema divisionista de excepções.

Aliás, um dos desenvolvimentos mais importantes tem sido a emergência das mulheres como muftis e a consequente solicitação de que a fatwa seja declarada por uma mufti ou por uma especialista jurídica. O que se tem designado como “guerras de fatwas” reflecte a intensidade das controvérsias políticas que se tem agravado no mundo islâmico em tempos mais recentes. Este tipo de polarização não é muito diferente da polarização social que subjaz ao cancelamento onde o conceito de “guerra cultural” tem sido invocado ou às “guerras do Vaticano” que, aliás, têm conhecido acidentes muito pouco cristãos.

Notas

1 A melhor análise deste processo é a de Raul Rego em O Processo de Damião de Goes na Inquisição. Lisboa, Edições Excelsior, 1971.
2 The Amman Message.
3 Conselho Europeu para a Fatwa e a Investigação.