Cerca de metade da população mundial segue alguma das tradições abraâmicas. Ainda que elas sejam diferentes entre si todas elas remontam a história do patriarca Abraão que teria se comunicado com Deus (identificado como Yahweh pelos judeus e como Alá pelos muçulmanos). A divindade teria estabelecido uma aliança com o pastor prometendo cuidar de seu povo em troca da lealdade e devoção dos fiéis.
Para os judeus, a aliança de Abraão teria sido continuada por seu filho e neto Isaac e Jacó e passado para seus bisnetos, os fundadores das 12 tribos judaicas. Para os muçulmanos, a aliança foi herdada pelo outro filho de Abraão, Ismael que por sua vez teria sido o ancestral do povo Árabe. Já os cristão acreditam que Jesus teria estabelecido uma nova aliança divina com um novo povo, a Igreja.
Independente da visão predominante, todas essas versões da história moldaram profundamente todas as culturas que entraram em contato com ela. Depois da destruição de sua terra natal pelos romanos, os judeus só permaneceram como um povo com identidade própria devido a sua cresça no Deus Único que os diferenciava dos demais povos mediterrâneos politeístas.
Ainda que tenham devastado a comunidade judaica, os romanos eventualmente adotaram uma variação de sua fé, abraçando o cristianismo, a doutrina foi passada para os medievais que construíram toda a sua sociedade ao redor do credo cristão. Por sua vez, os povos da época deram origem a cultura ocidental moderna que bebeu fortemente da fé cristã.
Do mesmo modo, Maomé ajudou a moldar a cultura árabe, permitindo seu crescimento e expansão, assim se dispersando pelo oriente médio e criando a sociedade islâmica que se estende do norte da África até o Paquistão. Mesmo os códigos legais desses países foram em alguns casos inspirados pela sharia, a lei islâmica medieval.
No entanto, mais do que rituais ou crenças, havia um lado pouco conhecido dentro da fé abraâmica, um lado político. As religiões monoteístas apareceram num contexto social específico, o oriente médio do final da antiguidade, uma época violenta e de injustiças, e os sábios, sacerdotes e profetas que construíram seus dogmas foram marcados por esse legado cultural.
Para os observadores da era moderna, separados por milênios do contexto original, pode ser difícil observar o subtexto político que os textos sagrados apresentavam. Mas entendendo melhor o mundo da época pode ser mais bem compreendido a preocupação social das narrativas religiosas.
A cultura do oriente médio antigo era dominada pelas religiões pagãs. O paganismo não tem um dogma específico, sendo um grande conglomerado de cultos diversos cada um para uma época e local específico. As marcas principais do paganismo eram o politeísmo, aceitando a existência de várias divindades de poder limitado, a ênfase no ritual, mais importante do acreditar nos deuses era demonstrar reverencia aos deuses; e diversidade, os pagãos nunca se preocuparam em criar uma crença centrais para determinar sua fé.
Não raro dentro de uma comunidade pagã, novos deuses eram introduzidos, ou deuses parecidos eram fundidos em um único deus, ou mesmo um deus que perdeu relevância era rebaixado dentro da mitologia a um papel menor, como de um herói ou semideus. Mortais que tiveram vidas grandiosas eram constantemente transformados em divindades.
Politicamente o paganismo era profundamente elitista, defendendo a hierarquia social e a obediência. Para o pagãos, os deuses haviam criado o ser humano apenas para servi-los. O mito sumério relata como os deuses de posição baixa cansados de trabalhar pediram que os líderes do panteão criassem uma raça de servos para substitui-los, e assim surgiu o ser humano. Cidades eram dedicadas a deuses padroeiros que eram os verdadeiro governantes das comunidades ao qual os cidadãos deviam reverenciar e obedecer.
A relação entre seres humanos espelhava a relação com o divino. Dentro da espécie humana não eram todos iguais, existindo os que eram destinados a serem obedientes e os que nasceram para governar. Para os nórdicos, o deus Heimdall teria criado a hierarquia humana, pois ao se alojar na casa de três mortais teria sido recebido de modo diferente por cada família. Os que o trataram com dignidade deram origem à nobreza, a família que o tratou com frieza foi ancestral dos cidadãos comuns, e do lar em que o deus foi maltratado vieram os escravos.
Mesmo intelectuais achavam isso natural. Aristóteles considerava ético que os gregos tinham o direito de escravizar os demais povos, pois como os bárbaros viviam em sociedades despóticas estavam acostumados a obedecer e não usavam a mente, portanto a escravidão não era diferente de seu mundo.
O próprio mundo divino era hierarquizado com os deuses possuindo autoridades diferentes; dos pequenos espíritos da natureza, para as divindades governantes do mundo, até as maiores entidades inatingível para o homem comum. Do mesmo modo que os monarcas eram inalcançáveis para seus súditos.
Não raro o governante tinha uma comunhão particular com os deuses. Os faraós do Egito eram identificados com os deuses Hórus e Osiris, os criadores do reino das pirâmides, sendo os próprios monarcas, o deus Hórus encarnado na terra. Já os monarcas gregos declaravam terem o sangue de semideuses em suas veias. O famoso Leônidas, rei de Esparta, acreditava ser da família do próprio Hércules.
Os monoteístas tinham uma visão diferente. As sociedades que se comunicavam com um único Deus viam os homens (e em menor escala as mulheres) como filhos de Deus e, portanto, tendo uma criação divina igualitária, o que os afastava da sociedade de seres superiores e inferiores do paganismo. As culturas monoteístas possuíam suas próprias hierarquias sociais, mas sua ideologia pregava uma forma de igualdade moral que não estava presente no resto do mundo da época.
Isso pode ser percebido em boa parte das histórias do antigo testamento. Os primeiros hebreus formavam uma comunidade da pastores que vivia na região marginal de vários grandes impérios da idade do Ferro: O Egito, A Babilônia e a Assíria. A vida nessas comunidade pastorais não era fácil, sendo muito pobres e precisando interagir com as culturas agrarias para sobreviver. Entretanto, em seu estilo de vida simples, os pastores possuíam mais liberdade e igualdade do que seus contemporâneos vivendo sobre o julgo de um imperador ou faraó.
Não era raro camponeses oprimidos fugirem dos impérios agrícolas para se juntarem a comunidades de pastores. Como narrado na história do Êxodo. O conflito de culturas e de ideologias entre os agricultores e pastores foi parte da política da história antiga e foi melhor representado pela história de Caim e Abel, Caim um agricultor foi preterido por seu irmão um pastor (do mesmo modo que os judeus eram favorecidos por Deus). Caim furioso matou seu irmão, sinal da violência da sociedade, Deus decepcionado com seu seguidor, deixou-lhe uma marca e mandou que partisse para criar a civilização, mostrando a origem perversa do mundo agrário.
Após, o surgimento da civilização, o rei conquistador Nimrod, envaidecido por suas vitórias, decide criar uma torre que atinja o céu para mostra seu poder. Deus furioso com a torre de Babel manda uma maldição fazendo os trabalhadores começarem a falar em várias línguas impedindo a conclusão da Obra. Nimrod é obviamente uma referência aos reis conquistadores mesopotâmicos, especialmente Sargon de Akkad que foi divinizado depois de morto por seu neto. A torre de Babel é um deboche aos Zigurates, os enormes palácios que serviam com templo aos deuses e centros de poder.
A cultura hebraica começou como uma comunidade pastoral igualitária. Mas para enfrentar seus inimigos teve que se converter em um reino agrícola. A passagem para a monarquia é representada ao mesmo tempo como uma benção e um castigo divino para os hebreus. Por um lado, os protegendo de seus inimigos, mas simultaneamente os condenando a viver um regime tirânico e injusto.
Mesmo depois da formação dos reinos de Israel e Judá, o espírito igualitário não desapareceu. Ainda que a religião agora estivesse nas mãos da classe sacerdotal dos levitas (membro da tribo de Levi que apoiaram Moisés), a religiosidade popular continuou dando origem a profetas que desafiavam as autoridades e demonstravam uma fé mais próxima do povo. Os sacerdotes tentaram reagir decretando que a era dos profetas estava encerrada e novos enviados não apareceriam.
Os reinos dos judeus teriam vida curta, pois não puderam resistir à pressão dos impérios vizinhos. Mas a preocupação social não desapareceu, após a conquista do levante pelos babilônicos, os judeus exilados na mesopotâmia escreveram o livro de Jó que retrata o sofrimento de um homem mesmo tendo sido fiel a Deus toda a sua vida. Uma metáfora para as angústias que o próprio povo judeu sentia sendo fiel a Deus mesmo exilado de sua terra.
Eventualmente, o território judeu passou para os gregos e depois para os romanos. Durante esse período cresceu entre os hebreus um movimento religioso conhecido como o apocaliticismo, segundo o qual o mundo havia sido sequestrado pelas forças do mal (associadas aos ricos e poderosos) mas que um contra-ataque divino reinstituiria um reino de Deus. Dentre esses apocaliticistas estava o fundador da segunda religião abraâmica: Jesus de Nazaré.
A mensagem cristã é cheia de críticas sutis as autoridades romanas que oprimiam o povo judeus (o que ajuda a entender por que era tão perseguida). A forma pelo qual os cristão se referiam a Jesus e sua mensagem era obviamente um desafio ao imperador romano, ambos eram chamados “Filhos de Deus” e sua mensagem uma “Boa nova” (no texto bíblico traduzido para evangelho) que trazia a “salvação”.
O cristianismo com seu discurso de paz e igualdade, contrastava fortemente com a fortemente hierarquizada, injusta e militarista sociedade que Roma criou sobre o mundo. Assim como no antigo testamento, o novo tem suas metáforas contra a sociedade da época. Quando Jesus encontra uma legião de demônios e os prende dentro de porcos e os manda para um desfiladeiro, era um insulto aos romanos da palestina.
Porcos são o animal sujo para os judeus, mas eram também o símbolo da legião romana que existia no oriente médio para reprimir rebeliões (comuns na pátria judaica). A possessão é um símbolo da dominação por uma força externa a sua vontade. A metáfora dos romanos demoníacos e sujos dominando os judeus era óbvia.
Ironicamente, o cristianismo acabou se dispersando entre os povos do mediterrâneo e acabou convertendo os próprios romanos. Na época, o império se encontrava em crise, e os deuses pagãos pareciam incapazes de proteger seus súditos, a solução era encontrar um deus mais poderoso que pudesse guardá-los nesse momento de vulnerabilidade.
Esse não foi o fim da jornada da fé abraâmica. Mesmo depois da conversão do império, alguns cristãos (principalmente dissidentes da fé oficial aceita pelos romanos) migraram para fora do estado em busca de um lar para catequisar os moradores. Alguns desses dissidentes costumavam apresentar peças para contar histórias da bíblia. Entre os que assistiram essas apresentações estava um comerciante árabe que continuaria o legado do monoteísmo: Maomé.
Assim como Roma, a Arábia da época era um mundo de injustiça, em que comerciantes ricos prosperavam enquanto outros viviam na pobreza. Do mesmo modo era uma terra de guerras, em que conflitos entre tribos do deserto eram travadas rotineiramente pelos escassos recursos, e a derrota poderia significar a morte por fome ou por combate. Maomé era um apocaliticista assim como Jesus, como ele buscou sanar os problemas sociais de seu povo.
Maomé institui o Zakat, dever de realizar caridades para todo o muçulmano, como forma de redistribuir riqueza dos mais privilegiados para os mais necessitados. É dever de todo fiel tentar amenizar a pobreza dos demais crentes e diminuir a desigualdade. O profeta criou uma regra obrigando todo fiel de rezar 4 vezes por dia, essas orações serviam como uma forma de legislação trabalhista, permitindo folga do trabalho para descansar do calor do deserto.
O islã também estabeleceu regras para limitar a violência, como tenta proibir batalhas entre muçulmanos, ou não permitir escravizar pessoas que fossem fiéis, assim como estabelecer meses do ano em que fossem proibidos começar guerras. Essas regras são similares as criadas pela Igreja Católica durante a idade média para diminuir os conflitos (como “A Paz de Deus”) ou proibindo escravizar outros cristãos.
Ainda que o islã seja mais patriarcal do que a religião cristã, Maomé aumentou os direitos femininos. Antes do Islã, o homem podia ter quantas esposas quisesse e suas filhas não recebiam herança. O profeta limitou a quantidade de esposas a 4 e institui que as mulheres tinham direito ao equivalente a metade da herança que seus irmãos.
Ainda que tenham uma história marcada por conflitos internos, as fés monoteístas tiveram em seu bojo uma mensagem social. Mesmo que nem sempre tenham cumprido com ela. Esse lado comunitário da crença hoje costuma ser injustamente esquecido.