Boaventura De Sousa Santos
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Boaventura De Sousa Santos

Boaventura de Sousa Santos é, sem dúvida, o mais proeminente cientista social actualmente em actividade no mundo lusófono e a sua obra é publicada e estudada em todo o mundo. As suas abordagens científicas multifacetadas têm sido inspiradoras para várias gerações de investigadores das ciências sociais e humanas, não só em Portugal, no Brasil e nos países africanos de língua portuguesa, mas também em muitos outros lugares, praticamente em todos os continentes. As suas propostas epistemológicas arrojadas e a sua combinação abrangente de investigação empírica exaustiva e perspectivas teóricas inovadoras abriram novos e estimulantes caminhos de investigação e conduziram a muitos conhecimentos originais, em particular sobre as especificidades das sociedades periféricas e semiperiféricas. Os instrumentos analíticos proporcionados pelo seu quadro teórico permitem evitar a cegueira epistemológica que afecta as abordagens tradicionais em relação às características específicas destas sociedades. À medida que a sua obra, já traduzida em várias línguas, alcança um público cada vez mais vasto, a sua influência está a espalhar-se progressivamente por todo o mundo.

Nascido a 15 de novembro de 1940, Boaventura de Sousa Santos, depois de se ter licenciado em Direito na Universidade de Coimbra e de ter feito estudos de pós-graduação na Freie Universität de Berlim, doutorou-se em Sociologia do Direito na Universidade de Yale, em 1973. A sua tese de doutoramento, baseada num trabalho de campo realizado nas favelas do Rio de Janeiro, levou a sua abordagem do direito para além das fronteiras do Estado (na sua racionalidade moderna, monopolista e exclusivista) como um processo que actua a vários níveis da vida social, permitindo-lhe assim repensar o Estado de direito como uma forma específica de regulação social num contexto mais amplo de pluralismo jurídico. A partir deste momento de formação, inicia uma procura constante de conhecimentos, com base numa abordagem interdisciplinar alargada, recorrendo à sociologia do direito, mas também, cada vez mais, à filosofia, à antropologia, à economia, aos estudos culturais, etc.

É Professor Catedrático de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, jubilado, onde foi responsável pela criação das ciências sociais como disciplina académica no início da década de 1970. Desempenhou funções de professor convidado em várias universidades do mundo. Em 1978, Boaventura de Sousa Santos fundou o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, do qual foi diretor até 2019, sendo atualmente Diretor Emérito. Sob a sua direção, o Centro desenvolveu-se extraordinariamente em amplitude e profundidade nos últimos quarenta anos. Atraiu estudantes internacionais interessados em epistemologias e temas de investigação inovadores, construindo pontes entre as comunidades académicas europeias e as comunidades académicas do Sul global. No início dos anos 2000, após a sua experiência crucial na partilha da fundação do Fórum Social Mundial, desenvolveu uma abordagem epistemológica – as epistemologias do Sul – que se tornou um importante atractivo para estudantes, em particular do Sul e do Norte globais. Mais sobre isto abaixo.

Entre muitas outras iniciativas, Boaventura de Sousa Santos também fundou, em 1984, o Centro de Documentação 25 de abril da Universidade de Coimbra, Portugal, um arquivo de documentação relativa à Revolução Portuguesa de 1974, que se tornou imediatamente um recurso rico e vital para qualquer pessoa interessada em estudar em profundidade a sociedade e a história portuguesas contemporâneas. Boaventura de Sousa Santos tem sido um dos mais influentes pensadores e activistas do Fórum Social Mundial (FSM) desde a sua criação em 2001. Um desenvolvimento natural do pensamento e ativismo de Santos foi a sua proposta, no FSM de 2003, de criar a Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), especificamente dedicada ao diálogo intercultural e interétnico. Nas primeiras reuniões do Fórum Social Mundial, facilmente se identificaram dois problemas que, se não fossem abordados, impediriam as articulações que o FSM estava a exigir e que procurava levar a cabo tanto a nível transnacional como nacional. Os dois problemas eram: o fosso entre teoria e prática e a falta de interconhecimento entre os movimentos sociais, uma falta que gerava desconfiança e facilitava a disseminação de preconceitos reciprocamente aviltantes. O desfasamento entre a teoria e a prática teve consequências negativas tanto para os movimentos sociais e ONG genuinamente progressistas como para as universidades e centros de investigação, onde tradicionalmente se produzem teorias sociais científicas. Tanto os dirigentes como os activistas dos movimentos sociais e das ONG sentiram a falta de teorias que os ajudassem a refletir analiticamente sobre as suas práticas e a clarificar os seus métodos e objectivos. Por outro lado, os cientistas sociais/académicos/artistas progressistas, isolados destas novas práticas e agentes, sentiram-se incapazes de contribuir para essa reflexão e clarificação. Podiam até dificultar as coisas, insistindo em conceitos e teorias que não se adequavam a essas novas realidades. A UPMS foi proposta para ajudar a ultrapassar o desfasamento entre a teoria e a prática, promovendo encontros entre aqueles que se dedicavam principalmente à prática da mudança social e aqueles que se dedicavam principalmente à produção teórica. Após numerosos debates, as oficinas da UPMS tiveram início em 2007.

Com base no seu conceito-chave de ecologias de saberes, Santos reuniu um grupo de cientistas sociais, filósofos, artistas e activistas empenhados, de diferentes movimentos sociais, para debater os estereótipos mútuos que afectam as suas interacções e tentar substituí-los por argumentos razoáveis de convergências e divergências para a definição de possíveis alianças. A UPMSS reuniu-se em vários países da América Latina (Argentina, Perú, Colômbia, Brasil), na Índia, em Portugal e em Espanha. Santos tem uma vasta experiência na liderança de equipas de investigação internacionais, tendo coordenado um grande número de projectos de investigação em vários países. Entre 1999 e 2001 dirigiu o projeto "Reinventar a Emancipação Social: Towards New Manifestos", financiado pela Fundação MacArthur e envolvendo investigadores sociais do Sul Global. Mais recentemente, o seu trabalho tem-se dedicado a examinar os limites impostos pelo esgotamento de uma conceção eurocêntrica da realidade e do conhecimento científico, apelando a uma superação daquilo a que chamou as "linhas abissais da modernidade". Uma materialização significativa desta proposta epistemológica teve lugar no âmbito do projeto "Alice - Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas" (2011-2016), coordenado por Boaventura de Sousa Santos. Com financiamento do Conselho Europeu de Investigação, o "Projeto Alice" desenvolveu investigação em 4 continentes, envolvendo 134 investigadores de todo o mundo, reunidos em torno das "Epistemologias do Sul", um quadro teórico e metodológico criado por Boaventura de Sousa Santos, apostado na aquisição de uma compreensão alargada e cosmopolita da realidade social, baseada na inesgotável diversidade de experiências no mundo. Deste projeto resultam vários livros colectivos que estão a ser publicados em português, espanhol, inglês e italiano.

Segundo Santos, as epistemologias do Sul são um vasto e diversificado campo de investigação que questiona as correntes epistemológicas e teóricas e analíticas que dominaram globalmente nos últimos trezentos anos e que ele designa por epistemologias do Norte. Especialmente nos últimos cinquenta anos, têm-se registado muitos questionamentos a estas epistemologias. O questionamento proposto pelas epistemologias do Sul está presente desde que as epistemologias do Norte se constituíram e se expandiram globalmente. A designação "epistemologias do Sul" é recente, mas a sua prática é antiga. As epistemologias do Sul têm como premissa a ideia de que o capitalismo está intrinsecamente ligado ao colonialismo e ao patriarcado. Tanto o colonialismo como o patriarcado existiam antes do capitalismo moderno, mas foram reconfigurados pelo capitalismo de modo a servir a dominação e a exploração modernas. O colonialismo não terminou com a independência política das colónias. Apenas alterou o seu funcionamento. Está hoje mais vivo do que nunca e as suas manifestações incluem: racismo, trabalho análogo ao trabalho escravo, desapropriação de povos indígenas e camponeses das suas terras ancestrais para dar lugar a projectos de desenvolvimento capitalista, colonialismo interno, colonialismo energético, imigração e deportação, dívida externa, etc. Tanto o colonialismo como o patriarcado legitimam o trabalho altamente desvalorizado e o trabalho não remunerado, sem os quais o capitalismo não se pode sustentar.

As ideias centrais das epistemologias do Sul são: a linha abissal e os diferentes tipos de exclusão social que ela cria; a sociologia das ausências e a sociologia das emergências; a ecologia dos saberes e a tradução intercultural; e a artesania das práticas.

A linha abissal. No coração do imaginário modernista está a ideia da humanidade como uma totalidade construída sobre um projeto comum: os direitos humanos universais. Esse imaginário humanista, herdeiro do humanismo renascentista, é incapaz de compreender que, uma vez combinado com o colonialismo e o patriarcado, o capitalismo seria intrinsecamente incapaz de abandonar o conceito de sub-humano como parte integrante da humanidade, ou seja, a ideia de que existem alguns grupos sociais cuja existência social não pode ser regida pelos direitos humanos universais, simplesmente porque são considerados não plenamente humanos. Na base da diferença epistemológica está uma diferença ontológica. Inspirado em Frantz Fanon, Santos distingue entre sociabilidade metropolitana (onde os seres humanos são tratados como seres plenamente humanos, com direito ao Estado de direito, à democracia, ao Estado liberal, aos direitos humanos) e sociabilidade colonial (onde os seres humanos são tratados como sub-humanos e, como tal, sujeitos à violência, à apropriação e à despossessão). A linha abissal que divide as duas sociabilidades é ao mesmo tempo radical e radicalmente invisível aos olhos modernistas e norte-cêntricos.

A sociologia das ausências e a sociologia das emergências. A sociologia das ausências identifica as formas e os meios através dos quais a linha abissal produz a inexistência, a invisibilidade radical e a irrelevância. A sociologia das ausências é a investigação sobre as formas como as sociedades capitalistas modernas produzem exclusões abissais, considerando certos grupos de pessoas e formas de vida social como inexistentes, invisíveis, radicalmente inferiores ou radicalmente perigosos, em suma, como descartáveis ou ameaçadores. Uma tal investigação centra-se nas cinco monoculturas que caracterizaram o conhecimento eurocêntrico moderno: a monocultura do conhecimento válido (ciência moderna), a monocultura do tempo linear, a monocultura da classificação social (diferença implicando hierarquia como em humanidade/natureza, homem/mulher, branco/negro), a monocultura da superioridade do universal e do global sobre o local e o particular, e a monocultura da produtividade capitalista (produtividade medida num único ciclo e não num ciclo múltiplo de produção). Estas monoculturas têm sido responsáveis pela produção massiva de ausências nas sociedades modernas, a ausência (invisibilidade, irrelevância) de grupos sociais e modos de vida social respectivamente rotulados como ignorantes, primitivos, inferiores, locais ou improdutivos.

A sociologia das emergências diz respeito à valorização simbólica, analítica e política dos modos de ser e de saber tornados presentes do outro lado da linha abissal pela sociologia das ausências. Enquanto a sociologia das ausências aborda a negatividade de tais exclusões, a sociologia das emergências aborda a positividade de tais exclusões, na medida em que capta as vítimas da exclusão no processo de pôr de lado a vitimização e de se tornarem pessoas resistentes que praticam formas de ser e de saber na sua luta contra a dominação. Desta forma, desnaturalizam e deslegitimam mecanismos específicos de opressão. A sociologia das emergências centra-se em novas potencialidades e possibilidades de transformação social anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal que emergem no vasto campo da experiência social anteriormente descartada e agora recuperada. Com a resistência e a luta, surgem novas avaliações das condições e experiências vividas que ressignificam as subjectividades individuais e colectivas. Elas constituem o que Ernst Bloch designou como o "ainda não". São os elementos constitutivos da política da esperança.

Santos distingue três tipos de emergências: ruínas-semente, apropriações contra-hegemónicas e zonas libertadas. As ruínas-sementes são um presente ausente, memória e futuro alternativo ao mesmo tempo. Representam tudo aquilo que os grupos sociais reconhecem como concepções, filosofias e práticas originais e autênticas, que, apesar de terem sido historicamente derrotadas pelo capitalismo moderno e pelo colonialismo, permanecem vivas na sua memória e nas fendas mais recônditas do seu quotidiano alienado. São estas as fontes da sua dignidade e da esperança num futuro pós-capitalista e pós-colonial. Como acontece com as ruínas em geral, também aqui há alguma nostalgia de um passado anterior ao sofrimento injusto e à destruição causados pelo capitalismo e pelo colonialismo, bem como pelo patriarcado reconfigurado pelos outros dois. Essa nostalgia é, no entanto, vivida num modo anti-nostálgico, meramente como orientação para um futuro que escapa ao colapso das alternativas eurocêntricas, precisamente porque sempre esteve fora dessas alternativas. Pode consistir, de facto, na invocação de um mundo pré-moderno, mas tal invocação é moderna, pois significa aspirar a uma modernidade diferente. Estamos, portanto, perante ruínas que estão vivas, não porque são "visitadas" por pessoas vivas, mas porque são "vividas" por pessoas que estão bem vivas na sua prática de resistência e de luta por um futuro alternativo. São, portanto, ruínas e sementes ao mesmo tempo. Representam o paradoxo existencial de todos os grupos sociais que foram vítimas da cartografia do pensamento abissal moderno por estarem "localizados" do outro lado da linha abissal, o lado da sociabilidade colonial. Para responder à pergunta – Podemos construir um património comum alargado com base na alteridade? – precisamos de conceitos não eurocêntricos como swaraj, swadeshi, ubuntu, sumak kawsay e pachamama.

As apropriações contra-hegemónicas constituem outro tipo de emergência. Refere-se a conceitos, filosofias e práticas desenvolvidos por grupos sociais dominantes para reproduzir a dominação, mas que são apropriados por grupos sociais oprimidos e depois ressignificados, reconfigurados, refundados, subvertidos e selectiva e criativamente alterados de modo a serem transformados em instrumentos de luta contra a dominação. Exemplos de tais apropriações incluem o direito, os direitos humanos, a democracia, a Constituição. A este respeito, Santos abordou duas questões: "pode o direito ser emancipatório?" e "existe um constitucionalismo transformador?"

O terceiro tipo de emergência consiste nas zonas libertadas. Trata-se de espaços que se organizam segundo princípios e regras radicalmente opostos aos que prevalecem nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais. As zonas libertadas são comunidades consensuais, baseadas na participação de todos os seus membros. Têm um carácter performativo, prefigurativo e educativo. Consideram-se utopias realistas, ou melhor, heterotopias. O seu objetivo é criar, aqui e agora, um tipo diferente de sociedade, uma sociedade liberta das formas de dominação que prevalecem atualmente. Podem surgir no contexto de processos de luta mais amplos ou resultar de iniciativas isoladas destinadas a experimentar formas alternativas de construir colectividades. Vistas de fora, as zonas libertadas parecem combinar a experiência social com a experimentação social. Daí a dimensão educativa que as caracteriza: concebem-se como processos de autoeducação. Tanto nas zonas rurais como nas zonas urbanas existem hoje muitas zonas libertadas, a maior parte delas de pequenas dimensões, algumas de longa duração, outras relativamente efémeras. As comunidades neozapatistas da Serra Lacandona, no sul do México, que se tornaram famosas internacionalmente depois de 1994, podem ser consideradas zonas libertadas, oferecendo assim um vasto campo para a sociologia das emergências. O movimento dos indignados que ocorreu depois de 2011 deu origem, por vezes, à constituição de zonas libertadas, algumas das quais subsistiram como formas de vida cooperativa e associativa muito depois de o movimento ter terminado. Rojava, as regiões autónomas do Curdistão sírio, também pode ser considerada uma zona libertada organizada segundo princípios anarquistas, autonomistas, antiautoritários e feministas. A grande maioria das zonas libertadas, em particular as que são compostas por jovens urbanos, deriva de um sentimento de impaciência histórica. Cansados de esperar por uma sociedade mais justa, pequenos grupos organizam-se para viver experimentalmente, ou seja, para viver hoje como se fosse o futuro a que aspiram e porque não querem esperar mais. É aqui que reside o seu carácter prefigurativo. Numa altura em que a ideologia do neoliberalismo proclama que o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado são o modo de vida natural, as zonas libertadas desmentem-no, mesmo que apenas nas áreas restritas em que ocorrem. A emergência reside no carácter performativo e prefigurativo da rebelião.

A ecologia dos saberes e a tradução intercultural. A ecologia de saberes e a tradução intercultural são as ferramentas que convertem a diversidade de saberes tornada visível pela sociologia das ausências e pela sociologia das emergências num recurso potenciador que, ao tornar possível uma inteligibilidade alargada dos contextos de opressão e resistência, permite articulações mais amplas e profundas entre lutas que combinam de diferentes formas as várias dimensões ou tipos de dominação. A ecologia de saberes compreende dois momentos. O primeiro consiste em identificar os principais corpos de conhecimento que, se forem postos em discussão numa dada luta social, podem realçar dimensões importantes de uma luta ou resistência concreta: contexto, queixas, grupos sociais envolvidos ou afectados, riscos e oportunidades, etc. Esta diversidade é muito menos fascinante no terreno da luta do que na teoria. Pode, de facto, ser paralisante. Pode provocar uma cacofonia de ideias e perspectivas que são totalmente incompreensíveis para alguns dos grupos envolvidos, aumentando assim a opacidade tanto em relação ao "que está em jogo" como ao "que deve ser feito". Pode também conduzir a uma sobrecarga de análises teóricas, políticas e culturais que se situam entre a excessiva lucidez intelectual e a excessiva prudência e ineficácia. Tendo isto em conta, a ecologia dos saberes deve ser complementada com a tradução intercultural e inter-política. Esta última tem como objetivo específico reforçar a inteligibilidade recíproca sem dissolver a identidade, ajudando assim a identificar complementaridades e contradições, pontos comuns e visões alternativas. Estas clarificações são importantes para colocar em terreno sólido decisões sobre alianças entre grupos sociais e articulações de lutas e para definir iniciativas concretas tanto em termos das suas possibilidades como dos seus limites. A artesania das práticas. Dadas as formas desiguais e interligadas em que se articulam os três modos modernos de dominação, nenhuma luta social, por mais forte que seja, pode ser bem sucedida se se concentrar apenas num desses modos de dominação. Por muito forte que seja a luta das mulheres contra o patriarcado, nunca alcançará um êxito significativo se lutar apenas contra o patriarcado, sem ter em conta que o patriarcado, tal como o colonialismo, é hoje uma componente intrínseca da dominação capitalista. Além disso, assim concebida, essa luta pode acabar por reivindicar o êxito ou a vitória de um resultado que, de facto, implica maior opressão para outros grupos sociais, nomeadamente os que são vítimas da dominação capitalista ou colonialista. O mesmo se pode dizer de uma luta conduzida por trabalhadores que se centra apenas na sua luta contra o capitalismo, ou de uma luta de vítimas do racismo que se centra exclusivamente no colonialismo.

Daí a necessidade de construir articulações entre todos os diferentes tipos de lutas e resistências. A construção de alianças é sempre complexa e depende de muitos factores. Os instrumentos ou recursos das epistemologias do Sul analisados acima criam as condições para que essas articulações sejam possíveis. A forma particular como elas ocorrem no terreno exige um tipo de trabalho político semelhante ao trabalho artesanal e ao artesanato. O artesão não trabalha com modelos padronizados; o artesão nunca produz duas peças exatamente iguais: a lógica da construção artesanal não é mecânica; é, antes, a repetição-como-criação. Os processos, as ferramentas e os materiais impõem algumas condições, mas deixam margem para uma significativa margem de liberdade e criatividade. A verdade é que o trabalho político subjacente às articulações entre lutas, quando sob as epistemologias do Sul, tem muitas afinidades com o trabalho artesanal. O mesmo se passa com o trabalho cognitivo (científico e não científico) a realizar para reforçar e alargar esse trabalho político.

A partir desta breve descrição das epistemologias do Sul, as seguintes orientações gerais são fundamentais:

1 - Aprender que o Sul epistémico existe; aprender a ir para o Sul; aprender do Sul e com o Sul. 2 - Este Sul epistémico foi construído pelas classes e grupos sociais que, ao longo de três séculos, resistiram e lutaram contra os três principais modos modernos de dominação: capitalismo, colonialismo e hetero-patriarcado. 3 - O conhecimento nascido ou utilizado nestas lutas sociais tem sido sistematicamente ignorado ou reprimido pelas instituições encarregadas de produzir e legitimar o único conhecimento considerado válido e relevante, a ciência moderna, nomeadamente as universidades. 4 - A exclusão epistémica está na origem da exclusão social. Não há justiça social global sem justiça epistémica global. 5 - A compreensão do mundo é muito mais ampla do que a compreensão ocidental do mundo. 6 - As epistemologias do Sul não são um movimento anti-ciência. A ciência moderna é um conhecimento válido, mas não é o único conhecimento válido. O enriquecimento mútuo da ciência e de outros saberes deve, portanto, ser encorajado para construir ecologias de saberes, muitas vezes através da tradução intercultural. 7 - O objetivo das epistemologias do Sul é contribuir para o reforço das lutas de resistência contra o capitalismo, o colonialismo e o hetero-patriarcado e as dominações satélites em que muitas vezes se baseiam (casta, incapacidade, idade, religião, política, etc.). 8. As alianças e as articulações são uma tarefa histórica exigente porque diferentes lutas mobilizam diferentes grupos sociais e requerem diferentes meios de luta. Como intelectual público influente, Santos é um colaborador regular da imprensa, em diferentes países. Foi galardoado com vários prémios reconhecidos internacionalmente, mais recentemente o Frantz Fanon Lifetime Achievement Award da Caribbean Philosophical Association (2022), mas também o Prémio de Ciência e Tecnologia do México (2010), o Prémio Kalven Jr. da Law and Society Association (2010) e o Prémio de Investigação e Desenvolvimento da Universidade de Lisboa (2010). Prémio da Law and Society Association (2011), o Prémio Adam Podgórecki da International Sociological Association (2009), o Prémio Jabuti, na área das Ciências Humanas e da Educação, Brasil (2001), e o Prémio Gulbenkian de Ciência, Portugal (1996). Recebeu ainda 21 títulos honorários de universidades de todo o mundo. Os brilhantes contributos de Santos para a renovação das ciências sociais e, de um modo mais geral, para a reconfiguração do conhecimento nas ciências sociais, humanas e naturais, o seu papel na criação de condições para um diálogo académico e científico renovado, baseado no pleno reconhecimento, para além da divisão Norte-Sul, bem como o seu compromisso de longa data para com o desenvolvimento de uma ciência socialmente responsável, destacam-se como realizações de grande alcance no processo em curso de reconstrução do conhecimento nas suas múltiplas formas num mundo em rápida mudança. Boaventura de Sousa Santos tem escrito e publicado amplamente sobre as questões da globalização, sociologia do direito e do Estado, epistemologia, movimentos sociais e Fórum Social Mundial, em português, espanhol, inglês, italiano, francês, alemão, chinês, dinamarquês, romeno, polaco, árabe e coreano.

Entre os seus vários livros em português:

Livros individuais

  • Estado e Sociedade em Portugal (1974−2024) nos cinquenta anos do 25 de Abril. Coimbra: edições 70, 2024.
  • Descolonizar: Abrindo a História do Presente. Coedição Editora Autêntica/Editora Boitempo, 2022.
  • A gramática do tempo. Para uma nova cultura política – Nova edição revista e aumentada. Coimbra: Edições 70, 2022. Também publicado no Brasil, pela Editora Autêntica, 2021.
  • O futuro começa agora. Da pandemia à utopia. São Paulo: Boitempo, 2021. Também publicado em Portugal, pelas Edições 70, 2020.
  • Na Oficina do Sociólogo Artesão. Aulas magistrais 2011-2016. Coimbra: Edições Almedina, 2020. Também publicado no Brasil, Editora Cortez, 2018.
  • Esquerdas do mundo, uni-vos! Coimbra: Almedina, 2019. Também publicado no Brasil, pela Editora Boitempo, 2018.
  • O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. Também publicado em Portugal, pela Editora Almedina, 2018.
  • Construindo as Epistemologias do Sul. Antologia. Dois Volumes. Buenos Aires: CLACSO, 2018.
  • Pneumatóforo. Escritos Políticos, 1981-2018. Coimbra: Almedina, 2018.
  • As bifurcações da ordem. Revolução, cidade, campo e indignação. Coimbra: Almedina, 2017. Também publicado no Brasil, pela Editora Cortez, 2016; pela Editora Lumen Juris, 2ª Edição, 2021.
  • A difícil democracia. Reinventar as esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016.
  • A justiça popular em Cabo Verde. Coimbra: Almedina, 2015. Também publicado no Brasil, pela Editora Cortez, 2014; pela Editora Lumen Juris, 2ª Edição, 2021.
  • O direito dos oprimidos. Coimbra: Editora Almedina, 2014. Também publicado no Brasil, pela Editora Cortez, 2015; pela Editora Lumen Juris, 2ª Edição, 2021.
  • A cor do tempo quando foge. Uma história do presente – crônicas 1986-2013. São Paulo: Editora Cortez, 2014.
  • Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. Coimbra: Editora Almedina, 2013. Também publicado no Brasil, pela Cortez Editora, 2013.
  • Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade - 9ª edição, revista e aumentada. Coimbra: Almedina, 2013. Também publicado no Brasil, pela Editora Cortez (14ª edição, revista e aumentada).
  • A cor do tempo quando foge - vol. 2. Crónicas 2001-2011. Coimbra: Almedina, 2012.
  • Portugal. Ensaio contra a autoflagelação. Coimbra: Almedina, 2011. Também publicado no Brasil, pela Editora Cortez. Segunda edição aumentada, em 2012.
  • Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Editora Cortez, 2007.
  • Poderá o direito ser emancipatório? Vitória: Faculdade de Direito e Fundação Boiteux, 2007.
  • Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
  • A gramática do tempo. Para uma nova cultura política. Porto: Afrontamento, 2006. Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 2006 (2ª edição).
  • Fórum Social Mundial: Manual de Uso. São Paulo: Cortez Editora. Também publicado em Portugal, Porto: Afrontamento, 2005.
  • A Universidade no Séc. XXI: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade. São Paulo: Cortez Editora, 2004 (3ª edição).
  • Democracia e Participação: O Caso do Orçamento Participativo de Porto Alegre. Porto: Afrontamento, 2002.
  • A Cor do Tempo Quando Foge. Crónicas 1985-2000. Porto: Afrontamento, 2001.
  • A Crítica da Razão Indolente: Contra o Desperdício da Experiência. Porto: Afrontamento, 2000 (2ª edição). Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 2000 (7ª edição).
  • Reinventar a democracia. Lisboa, Gradiva (2ª edição), 1998.
  • Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade. Porto: Afrontamento (8ª edição), 1994. Prémio Pen Club Português (Ensaio). Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 1995 (12ª edição).
  • Estado e Sociedade em Portugal (1974-1988). Porto: Afrontamento, 1990 (3ª edição).
  • Introdução a uma Ciência Pós-Moderna. Porto: Afrontamento, 1989 (6ª edição). Também publicado no Brasil, São Paulo: Graal (3ª edição),
  • Um Discurso sobre as Ciências. Porto, Afrontamento, 1988 (15ª edição); Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 2003 (7ª edição em 2010).

Organizados ou co-organizados

  • (Com Maria Paula Meneses) Os Saberes Nascidos na Luta - Construindo as Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições 70, 2024.
  • (Com Teresa Cunha) Economias de Bem Viver. Contra o desperdício das experiências. Coimbra: Edições 70, 2022.
  • (Com Ailton Krenak e Helena Silvestre) O sistema e o antissistema. Três ensaios, três mundos no mesmo mundo. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
  • (Com Cecília MacDowell Santos e Bruno Sena Martins) Quem precisa dos Direitos Humanos? Precariedades, diferenças, interculturalidades. Coimbra: Almedina Coimbra: Edições 70, 2019.
  • (Com Bruno Sena Martins) O pluriverso dos direitos humanos. A diversidade das lutas pela dignidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. Também publicado em Portugal, pelas Edições 70, 2019.
  • (Com José Manuel Mendes) Demodiversidade. Imaginar Novas Possibilidades Democráticas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. Também publicado em Portugal, pelas Edições 70, 2017.
  • (Com Marilena Chaui) Direitos humanos, democracia e desenvolvimento. São Paulo: Cortez Editora, 2013.
  • (Com José Octávio Serra Van-Dúnem) Sociedade e Estado em construção: desafios do direito e da democracia em Angola. Luanda e justiça: pluralismo jurídico numa sociedade em transformação - Vol. I. Coimbra: Almedina, 2012.
  • (Com Ana Cristina Santos, Madalena Duarte, Carlos Barradas e Magda Alves) Cometi um crime? Representações sobre a (i)legalidade do aborto. Porto: Edições Afrontamento, 2010.
  • (Organizador com Maria Paula Meneses), Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2009. Também publicado no Brasil, pela Editora Cortez, 2010.
  • (Com Conceição Gomes, Madalena Duarte e Maria Ioannis Baganha) Tráfico de Mulheres em Portugal para fins de exploração sexual. Lisboa: Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2009.
  • (Com Naomar de Almeida Filho), A universidade no século XXI. Para uma universidade nova. Coimbra: Edições, Almedina, 2008.
  • (Org.) As vozes do mundo. Porto: Afrontamento, 2008. Também publicado no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
  • (Org.) Trabalhar o mundo: os caminhos do novo internacionalismo operário. Porto: Afrontamento. Também publicado no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • (Org.) Semear outras soluções: os caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Porto: Afrontamento. Também publicado no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
  • (Org.) A fita do tempo da revolução: a noite que mudou Portugal. Porto: Afrontamento, 2004.
  • (Com Teresa Cruz e Silva), Moçambique e a Reinvenção da Emancipação Social. Maputo: Centro de Formação Jurídica e Judiciária, 2004.
  • (Com João Carlos Trindade) Conflito e transformação social: uma paisagem das justiças em Moçambique. Porto: Afrontamento, 2003.
  • (Org.) Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003; Também publicado em Portugal, Porto: Edições Afrontamento, 2004.
  • (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente: Um discurso sobre as ciências revisitado. Porto: Edições Afrontamento, 2003; Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez, 2004 (2ª edição em 2006).
  • (Org.) Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; Também publicado em Portugal, Porto: Edições Afrontamento, 2003.
  • (Org.) Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002; Também publicado em Portugal, Porto: Edições Afrontamento, 2003.
  • (Org.) Globalização: Fatalidade ou Utopia? Porto: Afrontamento, 2001 (3ª edição em 2005). Também publicado no Brasil, São Paulo: Editora Cortez (2ª edição).
  • (Com Conceição Gomes) Macau: O Pequeníssimo Dragão. Porto: Afrontamento, 1998.
  • (Com Maria Bento, Maldonado Gonelha, Alfredo Bruto da Costa) Uma visão solidária da reforma da Segurança Social. União das Mutualidades Portuguesas, Centro de Estudos Sociais, 1998.
  • (Com Maria Manuela Cruzeiro e Maria Natércia Coimbra) O Pulsar da Revolução: Cronologia da Revolução de 25 de Abril (1973-1976). Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Porto: Afrontamento, 1997 (2ª edição).
  • (Com Maria Manuel Leitão Marques, João Pedroso e Pedro Lopes Ferreira) Os Tribunais nas Sociedades Contemporâneas: O Caso Português. Porto: Afrontamento, 1996 (2ª edição); Prémio Gulbenkian de Ciência 1996.
  • (Org.) Portugal — Um Retrato Singular. Porto: Afrontamento, 1993 (2ª edição).

Boaventura de Sousa Santos também é poeta, com vários livros publicados, e escreve letras para rap, como mostra o seu livro Rap Global (Rio de Janeiro, Aeroplano, 2010; Confraria do Vento, 2019).

Artigos por Boaventura De Sousa Santos

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