A escravidão é, sem dúvida, uma das mais dolorosas heranças da humanidade. No entanto, sua análise muitas vezes se restringe a abordagens ideológicas, que simplificam o fenômeno e reduzem sua compreensão a dicotomias fáceis: opressores europeus e vítimas africanas. Essa visão, embora não desprovida de verdade, negligencia a complexidade histórica das redes escravagistas, os múltiplos agentes envolvidos e, sobretudo, apaga da memória coletiva outros sistemas de dominação igualmente brutais, como a escravidão árabe-muçulmana. Tidiane N'Diaye, em Le Génocide Voilé, nos convida a repensar a história sob uma perspectiva mais abrangente e corajosa — uma que não tema desagradar ideologias dominantes.
O pano de fundo histórico: África antes da chegada europeia
Muito antes da chegada dos europeus ao continente africano, a escravidão já era uma instituição consolidada em várias regiões. Povos africanos guerreavam entre si, e o costume de transformar prisioneiros de guerra em servos ou escravos era amplamente aceito. Tais práticas não eram vistas necessariamente como imorais; elas faziam parte da lógica interna de sociedades tribais em que a vitória conferia direitos sobre os vencidos.
O comércio transaariano, ativo desde a Antiguidade e intensificado com a expansão islâmica no século VII, consolidou uma rota comercial que atravessava o Saara, ligando a África subsaariana ao mundo árabe-muçulmano. Além de ouro, sal e marfim, um dos principais produtos desse comércio era o ser humano. Os escravos eram capturados em expedições ou vendidos por chefes tribais em troca de armas, cavalos, tecidos e especiarias.
A escravidão, portanto, não era uma imposição externa ao continente, mas parte de seu tecido político-econômico. É nesse contexto que N'Diaye propõe uma revisão das narrativas que colocam os africanos exclusivamente na posição de vítimas passivas.
A escravidão muçulmana: sistema, volume e brutalidade
Tidiane N’Diaye analisa com minúcia o que considera um verdadeiro genocídio: o tráfico transaariano e oriental, promovido por povos muçulmanos ao longo de mais de treze séculos. Esse sistema de escravidão, iniciado com a expansão islâmica, não apenas precede o tráfico atlântico como o supera em longevidade e em algumas formas de crueldade.
Diferente do tráfico transatlântico, que levou cerca de 12 a 13 milhões de africanos para as Américas, o tráfico árabe-muçulmano é estimado entre 17 e 20 milhões de pessoas, embora o número possa ser ainda maior, considerando o apagamento físico e histórico de seus vestígios. Segundo N’Diaye, esse sistema foi mais seletivo: preferia jovens do sexo masculino, fortes, para o trabalho militar ou doméstico, e mulheres para servirem como concubinas.
O destino desses escravizados era, muitas vezes, a castração. Os homens capturados eram submetidos à mutilação genital — uma prática de alto risco, com elevadas taxas de mortalidade. O objetivo era garantir submissão total e evitar descendência. Essa política sistemática de esterilização implicou o desaparecimento quase completo das linhagens africanas nos territórios sob domínio muçulmano.
Castração, apagamento e silêncio historiográfico
A castração em larga escala não é apenas uma prática cruel, mas um indício de uma política deliberada de apagamento cultural e biológico. Ao contrário do que se observa no continente americano — onde comunidades afrodescendentes preservaram línguas, religiões e práticas culturais —, o tráfico muçulmano operou como uma máquina de desaparecimento. Quase não há vestígios vivos desses escravizados nos países islâmicos, o que torna o trabalho historiográfico ainda mais difícil.
Para N’Diaye, esse silêncio não é acidental. A academia ocidental, segundo ele, desenvolveu uma sensibilidade seletiva: denuncia com vigor a escravidão europeia, mas trata com parcimônia a escravidão árabe. Isso, diz o autor, decorre de uma culpabilização ideológica exclusiva do Ocidente, que acaba por relativizar ou silenciar outras formas de opressão histórica.
A responsabilidade compartilhada: agentes africanos no comércio de escravos
Talvez um dos pontos mais polêmicos — e mais necessários — do trabalho de N’Diaye seja a ênfase no papel ativo das elites africanas no tráfico de escravos. Povos como os Ashanti, os Yoruba, os Dahomey e muitos outros capturavam rivais em guerras tribais e os vendiam aos mercadores muçulmanos e, posteriormente, aos europeus. Alguns desses reinos chegaram a se especializar nesse comércio, desenvolvendo uma economia baseada na captura e venda de seres humanos.
Esse aspecto é comumente omitido em discursos contemporâneos sobre a escravidão, como se os africanos tivessem sido apenas vítimas da malícia europeia. No entanto, ao reconhecer a cumplicidade de chefes tribais, não se busca diminuir a responsabilidade dos europeus, mas sim apresentar uma visão mais honesta e integral do fenômeno.
Ao ignorar essas participações, segundo N'Diaye, incorremos na mesma armadilha ideológica que fingimos combater: a manipulação seletiva da história.
A escravidão atlântica: volume, horror e visibilidade histórica
A escravidão transatlântica, iniciada no século XVI, foi marcada por sua brutalidade, racismo institucionalizado e impactos duradouros. Cerca de 12 milhões de africanos foram sequestrados de suas terras e levados às Américas em navios negreiros. A travessia do Atlântico, conhecida como “passagem média”, ceifou milhões de vidas em razão das péssimas condições sanitárias, da desnutrição e da violência física. Os que sobreviviam à viagem eram forçados a trabalhar em plantações de açúcar, algodão, café e tabaco, muitas vezes até a morte. A escravidão tornou-se a base do capitalismo colonial e gerou fortunas imensas para metrópoles europeias como Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Holanda.
No entanto, há uma diferença fundamental entre os dois sistemas. A escravidão atlântica deixou uma herança demográfica e cultural incontornável. A cultura afro-brasileira, afro-cubana, afro-americana é hoje uma força viva, com manifestações religiosas, musicais e linguísticas que moldaram o continente americano. A luta por direitos civis e a resistência negra formaram movimentos históricos marcantes. Esse legado não permite que a escravidão europeia seja esquecida — e é justo que assim seja.
Mas N’Diaye se pergunta: por que o mesmo não acontece com a escravidão muçulmana? Por que essa tragédia é tão pouco lembrada, estudada ou tematizada nos currículos escolares, nos meios de comunicação e nas pautas antirracistas?
Uma crítica à seletividade da memória
N’Diaye sustenta que essa assimetria no tratamento da escravidão é fruto de uma escolha ideológica. A história, para ele, foi convertida em um tribunal moral onde o europeu branco é o réu perpétuo e as demais civilizações são poupadas, independentemente de seus atos históricos.
Essa seletividade na memória histórica impede o reconhecimento pleno das vítimas da escravidão árabe-muçulmana e cria uma hierarquia de sofrimentos — o que, paradoxalmente, contradiz o ideal humanista que fundamenta o discurso dos direitos humanos.
O autor defende que a justiça histórica não pode ser seletiva. Todas as formas de escravidão merecem igual repúdio, todas as vítimas merecem igual reconhecimento, e todos os responsáveis — diretos ou indiretos — devem ser lembrados.
O silêncio das instituições e o risco da instrumentalização
Um dos maiores perigos, segundo N’Diaye, é a politização da história. Quando a escravidão é tratada como ferramenta de luta ideológica, e não como um objeto de estudo sério, perde-se a capacidade de aprender com o passado. A narrativa se torna dogma, e os fatos que não se encaixam nela são simplesmente apagados. É nesse ponto que N’Diaye fala de um “genocídio velado”: não apenas físico, pela castração dos escravizados, mas também intelectual, pela omissão deliberada de sua memória.
Conclusão da Parte I: A coragem de lembrar o que se quer esquecer
Tidiane N'Diaye nos convoca a abandonar o conforto das narrativas maniqueístas. Sua obra, marcada por uma lucidez incômoda, nos lembra que a verdade histórica nem sempre se encaixa nas agendas ideológicas. A escravidão africana foi um processo vasto, que envolveu múltiplos atores e resultou em tragédias que ainda ressoam — tanto no corpo social das ex-colônias quanto na mente daqueles que hoje tentam compreendê-la.
Reconhecer que a história é feita de zonas cinzentas — onde vítimas e algozes podem trocar de lugar conforme o tempo e o contexto — é um passo fundamental para uma consciência histórica mais madura. N’Diaye não busca inocentar o Ocidente, mas exigir que todas as partes envolvidas sejam analisadas com o mesmo rigor e honestidade.
Esse esforço é essencial para que a memória das vítimas não seja instrumentalizada ou hierarquizada. E talvez, a partir dessa consciência mais crítica, seja possível reavaliar temas contemporâneos como a reparação, o racismo estrutural e a própria ideia de "dívida histórica" — mas isso será explorado com mais profundidade na Parte II, com a contribuição de Richard Davies e sua análise sobre a escravidão de cristãos nas mãos de senhores muçulmanos.