Segundo Corrales (s/d) 1, falar de intertexto e de Literatura Comparada exige perceber que, ao lermos um texto A, estamos a ler um texto B, e este entrecruzamento de vozes percebidas ou levemente transparentes é algo que perpassa a escrita, em especial a literatura, ao longo de todos os tempos. Para com Correia (s/d), com o surgimento do Modernismo, intensificam-se as relações entre a literatura e as (outras) artes.

O presente artigo surge do facto de (termos) muito escuta(do)rmos as músicas de Lizha James (doravante LJ), com especial incidência para “Nita mukuma kwini”, título em XiChangana 2 e que significa “Onde o encontrarei”; outrossim, por termos lido alguns livros de Paulina Chiziane (doravante Chiziane), com enfoque para “Niketche”. Assim, mais do que se demonstrar, neste artigo, a relação existente entre um texto A e um texto B ao ler-se um deles, evidencia-se, igualmente, a sua intrínseca relação com a realidade social moçambicana.

LJ, autora de “Leva boy”, “Nitxati mina”, “Narcisismo”, é, para nós, uma cantora de mão cheia, pois que as suas músicas, desde a sua descoberta como cantora e exploração do seu talento, foram e são bastante consumidas e afamadas, pela beleza de suas melodias e, igualmente, pelo conteúdo nelas veiculado.

Não seria ilícito, portanto, afirmar que LJ é uma defensora das causas sociais, da mulher oprimida no lar, da classe dos desfavorecidos e muito mais, desde que se acompanhem os seus trabalhos até aos dias que correm.

Já Chiziane, autora de “Ventos do Apocalipse”, “Balada de Amor ao Vento”, “As Andorinhas” e o romance em pauta neste artigo (Niketche), é uma exímia escritora, virada a temáticas sociais e/ou antropológicas, como é o caso da poligamia; viradas para a África vs. Ocidente, curandeirismo, entre outros. Tanto que, pelo seu trabalho, a título de exemplo, é Prémio (de Literatura) José Craveirinha (2003) e Camões (2021), para além de Doutora Honoris Causa pela Universidade Pedagógica de Maputo (UP).

Estas figuras femininas, apesar de actuarem em áreas “distintas”, apresentam-nos, nestes trabalhos, um campo fértil para a exploração da temática poligamia que, hodiernamente, é muito debruçada em Literatura, Filosofia, Sociologia, Antropologia, entre outras áreas do saber.

Enquanto Niketche retracta a história de uma mulher (Rami), que é casada há duas décadas com um polícial (Tony), com quem teve filhos e descobre que este tem várias mulheres, com as quais teve, igualmente, filhos, e viu-se obrigada a viver esta realidade e, inclusive, aceitar o kutchinga 3 (purificação sexual) 4, “Nita mukuma kwini” traz-nos um sujeito poético que clama (talvez em representação de outras “várias” mulheres) por um homem que não tenha amante e/ou mais de uma esposa.

Explicitamente, Chiziane traz-nos, em Niketche, a história de uma sociedade que olha para a poligamia como uma prática normalizada e, aliás, herdada dos seus antepassados, como assevera Saly, à frente de outras esposas de Tony, quando estas procuram uma donzela para si, por se sentirem velhas:

— Um rei não pode recusar nem trono nem vassalagem. Recusar a nossa decisão é repudiar-nos. Uma mulher a mais, no lar polígamo, é sempre bem-vinda — diz a Saly (…)

(Chiziane, 2002: 321)

Ora, segundo Marcílio (s/d) , a obra “Niketche” enquadra-se, pela temática, na luta pela liberdade e pelo resgate de raízes culturais, uma vez publicada dez anos após o fim da guerra civil em Moçambique, i.e., Moçambique é um país africano, no qual a poligamia e/ou poliginia são uma prática desde a era dos nossos antepassados; portanto, a narradora (que coincide com a personagem protagonista — Rami) mostra os efeitos dessa tradição numa sociedade que se estava a modernizar 5. Não seria, então, segundo atesta Marcílio (s/d), um resgate desta não só raiz como também veia cultural?

Em contrapartida, LJ, no seu “Nita mukuma kwini”, logo no princípio, não o faz de forma explícita (acreditamos), uma vez que nos institui um sujeito poético que está em busca de respostas a determinadas perguntas: “Nita mukuma kwini lweyi wa lisima? (…) Nita mukuma kwini wokala mbuya? (…)” [Onde encontrarei (um homem) verdadeiro?' 'Onde encontrarei (um homem) sem amante?] (LJ, 2013) (grifo nosso). Ora, depreendemos, com estas interrogativas, que o sujeito poético está inserido num meio em que é raro ou quase impossível encontrar um homem que não tenha amante e/ou mais de uma esposa.

Na continuidade, o sujeito poético assevera: “(…) está a doer a cabeça de tanto ela pensar, está a doer o meu coração de tanto eu lhe sentir (…) está a doer o ouvido de tanto eu o ouvir (…)” (LJ, 2013), tudo para demonstrar saturação, desgaste… O sujeito poético vai além, ao servir-se da antítese:

Quando penso em lhe deixar, aí, vem ele me amar (…) os filhos vêm-me abraçar (…) quando penso em sair, a porta não quer abrir, quando penso em lhe fugir, lá vem ele me seguir (…) minha família não deixa (…)

(LJ, 2013)

Todavia, quando se quer tomar tal decisão, segundo o sujeito poético, a sua família não deixa. Estamos, aqui, perante uma cumplicidade da família perante esta situação. Em norma, quando a relação entre dois cônjuges não é saudável, e se senta “N” vezes para resolver os diferendos e, mesmo assim, não há solução, o melhor a fazer (achamos) é, evidentemente, a separação.

À guisa de conclusão

É por estes e mais motivos que, ao se escutar “Nita mukuma kwini”, de LJ, e ler-se “Niketche”, de Chiziane, se podem vislumbrar campos férteis para a análise e discussão da poligamia ou poliginia (em primeira esfera) e outras temáticas como a condição (ou representação?) da mulher, o “patrilinearismo”, entre outros. Por fim, importa dizer: leia um bom livro e escute uma boa música, porque, nesse casamento, não há espaço para amante(s).

Bibliografia:

Chiziane, P. (2002). Niketche – Uma história de poligamia. Lisboa: Editorial Caminho.
Correia, S. (s/d). Literatura e (outras) artes. Escola Básica 2, 3 Jorge de Montemor/ Centro de Literatura Portuguesa.
James, L.(2013) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul, Brasil.

Notas

1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul, Brasil.
2 Língua autóctone muito falada na zona Sul de Moçambique.
3 Ritual que consiste em a viúva espojar-se com o irmão mais novo do malogrado em cumprimento da tradição.
4 Pois que, por algum tempo, Tony foi considerado morto, quando estava na sua missão poligâmica.
5 Ou deixar-se levar pelos hábitos e costumes do colono (português).