Quando se fala sobre Cuba, são poucas as vezes em que o debate se resume em algumas palavras amenas. A figura de Che Guevara que, ao longo dos anos, tornou-se um amálgama simbólico capaz de incorporar os mais diversos significados, evoca, com uma simples imagem de seu rosto, as mais diversas reações. Além disso, a ideia de muitos é de que a ilha “parou no tempo”, como se processos históricos e mudanças estivessem alheios a ela.

Desbravar a experiência cubana é, então, uma tarefa que exige considerar, ao mesmo tempo, as complexidades e fricções que representam qualquer sociedade humana, e as particularidades da realidade cubana. Achismos ou absolutismos nunca são bem-vindos em debates sérios, mas quando se trata de Cuba, tais ideias devem permanecer nas profundezas do Atlântico.

Olhar atrás da cortina do palco, para além daquilo que é encenado ao público, ou imposto por ele, é o caminho para entendermos nossa realidade. No caso de Che Guevara, para além da figura de líder combatente revolucionária, ele foi também o responsável por ajudar a organizar e estruturar parte do processo de industrialização cubano pós-revolução, enfrentando um embargo comercial imposto pelos Estados Unidos, e tendo pela frente o desafio de construir um Estado socialista a partir de um país pouco industrializado, papel fundamental para a consolidação do novo governo.

Guevara fez parte dos esforços para organizar um país que detinha pouco controle sob sua indústria, administrado até a revolução por empresas americanas, e conseguiu, através de uma abordagem heterodoxa em relação às medidas econômicas soviéticas, desenvolver o parque industrial cubano e sua administração, enfrentando as limitações geográficas e econômicas, ajudando a consolidar um governo que vive há mais de 70 anos.

As dificuldades cubanas e as ligações com os Estados Unidos

Durante a primeira metade do século XX, segundo Joana Salém Vasconcelos1, o "controle estadunidense sobre a economia cubana talvez tenha sido um dos casos mais axiomáticos do neocolonialismo da história latino-americana”. As relações econômicas entre os dois países caracterizavam-se pela implementação de tratados que beneficiam a importação de bens cubanos aos Estados Unidos, como o açúcar e o tabaco, e ao mesmo tempo limitavam a exportação desses itens a outros países.

Antes da revolução, Cuba estava em uma posição de quase total dependência tecnológica e industrial aos Estados Unidos. A base científica, por exemplo, tanto laboratoriais quanto incentivos à pesquisa, eram, segundo Tirso W. Sáenz2,“um mostruário de frascos e desconexos esforços”, havia um abismo entre a produção nacional e a produção estrangeira, em que a limitação imposta ao desenvolvimento industrial cubano direcionava para um vínculo compulsório com as empresas estrangeiras.

Com o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba, o governo precisava de um aliado para manter a agenda de desenvolvimento, e para estabelecer relações não só econômicas e comerciais, mas também políticas, assim, a aproximação com a URSS foi fundamental. Através de empréstimos e a troca de tecnologias e equipamentos, Cuba deu os primeiros passos para a independência industrial.

Em 1963 é formalizado o bloqueio total das relações econômicas e políticas entre Cuba e os Estados Unidos, culminando em 1964 com a aprovação, pela Organização dos Estados Americanos, de um bloqueio econômico multilateral. Com isso, se em 1958 quase 70% das exportações cubanas tinham como destino os Estados Unidos, em 1963 a União Soviética representava 40% e a China cerca de 15%1, ou seja, a dependência relativa ao comércio exterior de commodities foi substituída de um país para um bloco, mas agora, o governo revolucionário detinha o controle das exportações.

Contudo, a dependência cubana não estava relacionada apenas à exportação de produtos agrícolas, a questão tecnológica e industrial também representava um problema para o governo. A aquisição de equipamentos industriais soviéticos apresentava suas próprias complicações, questões específicas de adaptabilidade com a realidade cubana e com as diferentes técnicas entre os dois países. Problemas como a diferença das voltagens, qualidade de certos equipamentos, que não conseguiam sustentar o clima úmido e quente de Cuba, e acabam enferrujando, representavam dificuldades específicas nos primeiros anos do governo revolucionário2.

Um exemplo recorrente eram as peças de reposição para as indústrias locais. Antes de 1959, elas eram fabricadas nos Estados Unidos e mandadas para Cuba quando necessário, devido à complexidade tecnológica para serem fabricadas, resultando em uma deficiência tecnológica no país latino-americano, e tornando o trabalho pós-revolucionário muito árduo, já que as indústrias locais não podiam mais contar com o mercado estadunidense2.

Assim, o novo governo iniciava seus trabalhos com a tarefa de não só mudar a mentalidade nacional em prol de um modelo coletivo e solidário, em que o trabalho era visto como parte de algo maior e comunitário, mas também preparar Cuba para sustentar um desenvolvimento industrial que fosse capaz que conceder as condições necessárias para a manutenção da revolução.

Che Guevara, o economista e administrador

A posição de Guevara como intelectual e administrador da economia cubana era caracterizada pela flexibilidade e a concepção heterodoxa de postulados referentes à construção de uma economia planificada aos rumos do que ocorrera na União Soviética3.

Isso significava que, além da aceitação de ideias inicialmente conflitantes com o paradigma revolucionário e socialista do novo governo, o líder revolucionário utilizou a própria lógica de administração e condução das fábricas americanas em sua reestruturação industrial, ao invés de buscar uma adaptação da cartilha econômica soviética.

Guevara buscou adaptar o que já estava em curso na ilha e que funcionava para os americanos. A descentralização da atividade econômica e a gestão econômica eram pilares essenciais para entendermos o modelo defendido por Guevara, em que o controle seria conduzido pelos trabalhadores e gerenciado pelos conselhos de fábricas4.

Quanto às políticas econômicas que Che Guevara institui a partir de 1961, quando assumiu o controle do Banco Nacional de Cuba, diante do cenário de fuga de grande parte dos funcionários das altas hierarquias para Miami, Guevara reuniu um grupo de assessores da América Latina, muitos deles conectados a CEPAL, para ajudá-lo no desenvolvimento de um plano econômico planificado que pudesse atender as especificidades nacionais de Cuba3.

A centralidade da figura de Guevara continuou durante os seus anos como Ministro da Indústria, em 19615, com um esforço para estar ciente de qualquer decisão tomada, e nenhuma medida importante poderia ser tomada sem sua aprovação ou consentimento.

O contexto industrial em Cuba pós-revolução

A infraestrutura cubana era controlada anteriormente por empresas estrangeiras, havendo uma grave falta de mão de obra especializada A difícil tarefa do novo governo era justamente conseguir organizar essa planta industrial de forma planificada, contanto com o entusiasmo de cubanos e estrangeiros dispostos a contribuir com o projeto revolucionário.

Apesar do entusiasmo e a criatividade empregada para resolver problemas práticos, iniciativas como a Direção de Automatização e Eletrônica, criada em 19625, e o Instituto Cubano para o Desenvolvimento da Indústria Química, criado em 19635, foram dois grandes fracassos no sentido produtivo, pois a dificuldade em acessar tecnologia estrangeira, a dependência em peças, principalmente soviéticas, e a pouca especialização dos trabalhadores, representaram desafios que empenho e criatividade não seriam capazes de vencer.

Cuba tinha quase 1 milhão de analfabetos, e o ensino médio e técnico era escasso, assim como a educação superior, que não conseguia atender as demandas desenvolvimentistas da revolução2. Além disso, houve um grande êxodo de pessoas que trabalhavam no setor técnico, como no setor petrolífero, importante setor estratégico, em que já em fevereiro de 1961 cerca de 75% de engenheiros haviam fugido do país2.

Um cenário em que, mais do que a falta de capital, o principal problema para a transição econômica em Cuba era relativo à tecnologia, seu acesso à ela e o emprego dela por trabalhadores especializados.

De acordo com um relatório estadunidense que analisa o impacto econômico das sanções em Cuba, feito em 2011, o impacto das sanções econômicas, nos anos 60, não representaram um grande golpe na receita comercial cubana, pois seu principal produto de exportação, o açúcar, passou apenas para outros compradores6, o bloqueio tinha um efeito muito mais no setor tecnológico e social do que econômico, e Guevara compreendia isso, tanto que seus esforços como chefe dos departamentos ligados à indústria eram de investir do progresso tecnológico, mesmo com as defasagens e inferioridade dos produtos soviéticos.

O desenvolvimento cubano não poderia acontecer além da sombra de um país que pudesse comprar e vender tudo aquilo que Cuba necessitava, e nesse caso, as limitações soviéticas eram, indiretamente, as limitações cubanas, visto que o desenvolvimento tecnológico na ilha dependia muito de produtos estrangeiros e de conhecimento especializado construído fora da ilha, no "eixo norte”.

A complexidade da história econômica cubana perpassa várias esferas de análises que não podem ser estudadas separadamente, como as relações internacionais entre Cuba, os Estados Unidos e a União Soviética, as políticas econômicas de planificação, as dificuldades tecnológicas e a ideologia socialista que reunia personagens engajados na construção de uma revolução a 140km do bastião do capitalismo mundial.

Os estudos econômicos sobre os primeiros anos da construção econômica em Cuba devem considerar, além das discussões e análises sobre a teoria do valor e as diferenças entre o modelo cubano e o soviético, a importância de Che Guevara na construção e formulação deste modelo, e isso implica em analisar não só os estudos e escritos sobre o assunto, mas as decisões práticas tomadas pelo líder e qual o efeito destas, pois, analisar este período da economia cubana é, em grande medida, analisar a própria história e o envolvimento de Guevara nesta construção governamental.

A construção do plano econômico de Cuba foi moldada na tentativa de conter os efeitos do bloqueio relativos à autonomia industrial cubana, visto que em termos da balança econômica, a União Soviética substituiu os Estados Unidos como mercado importador e exportador. O impacto residia na construção e produtividade industrial e tecnológica, já que toda a planta fabril da ilha era formada por peças estadunidenses.

Cuba sentiu, com maior veemência, as consequências do bloqueio no âmbito tecnológico, com a falta de acesso a peças industriais, tecnologia e até mesmo pessoal especializado para o trabalho nos setores especializados. O plano econômico revolucionário respondia, ao mesmo tempo, a uma nova concepção de trabalho e sociedade, e a soluções para contornar este problema, algo que Guevara estava ciente, pois considerava o setor tecnológico a chave para a autonomia industrial cubana.

Cuba é ainda hoje um espelho que reflete as mais diversas concepções, e, de certa forma, Guevara também representa este papel, talvez porque seja difícil desvencilhar um do outro, são lados de uma mesma moeda, e por isso, muitas vezes são analisados somente em sua superfície. Sendo assim, escavar esta primeira camada, e perceber as complexidades que habitam a ilha e o revolucionário, faz-se necessário toda vez que desejamos desviar da simples estampa de camiseta e da banal resposta política que habitam o lugar comum.

Notas

1 Vasconcelos, Joana Salém. Cuba e a dependência externa: passado e presente. In: Rebale, v.6, n.1. jan./abr. 2016, p. 107-143.
2 Sáenz, Tirso W. O ministro Che Guevara: testemunho de um colaborador. Rio de Janeiro: Garamond. 2005.
3 Pericás, Luiz Bernardo. Che Guevara y el debate económico en Cuba. Havana: Casa de las Américas, 2014.
4 Baiardi, A. ; Mendes, J. . A Heterodoxia No Pensamento Econômico De Ernesto Che Guevara. In: 4º Colóquio Marx e Engels, 2005, Campinas. Anais do 4º Colóquio Marx e Engels. Campinas : Centro de Estudos Marxistas, CEMARX, 2005. v. 1. p. 1-12.
5 Sáenz, Tirso W. Che Guevara e sua Contribuição ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico em Cuba. In: Revista de Estudos e Pesquisas sobre as Américas V.13 N.3, 2019. p. 37-66.
6 U.S. International Trade Comission. The Economic Impact of U.S. Sanctions With Respect to Cuba. Washington, DC: U.S. International Trade Commission, 2011.