Que a Literatura é a “Antropologia das Antropologias” (Fernando Cristóvão) porque nela toda a cultura comunitária converge, se sinaliza e se reinterpreta discursivamente é um facto já consensualmente aceite.
Esse é, aliás, um dos factores da emergência do Literaturismo e do Turismo Literário e/ou Artístico, em geral, derivado do Grand Tour europeu (sécs. XVII-XIX, mais atento ao legado da Antiguidade Clássica e do renascimento)1, onde as Casas Museu, as Casas Memória e as rotas patrimoniais (literárias e outras) são as protagonistas mais evidentes, sendo certo que a sinalização dos lugares de nascimento, morte e vida de personalidades e a toponímia das ruas é um dos procedimentos mais familiares decorrentes desse desejo de melhor compreendermos a “alma dos lugares” e os “lugares da alma” das personalidades que mais nos interessam, o seu imaginário, sem, com isso, cairmos no velho Positivismo…
No fundo, como o faz o viajante garrettiano das Viagens na Minha Terra (1846)2, subindo o rio do tempo (Tejo) em direcção ao que já lá não está ou, pelo menos, já lá não está assim (pois não resta “nem o mais leve, nem o mais apagado vestígio da antiga origem”, p. 137): os monumentos fundadores da nação nascida da aliança entre a cruz e a espada, “os monumentos das duas religiões [a igreja de Santa Maria da Alcáçova e o Palácio do rei fundador], /…/ dizendo mais claro que os livros, que os escritos, que as tradições, o pensamento das idades que os ergueram, e que ali os deixaram gravados sem saber o que faziam.” (p. 133).
Viagem que lembra as arqueológicas descobertas de alguma “grande metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada, mas que desapareceu da face da Terra e só deixou o monumento de suas construções gigantescas” (p. 132). E faz mais: propõe um “modo de ler” (cap. XXVI) e de escrever nos locais adequados, quer para reforçar a tragicidade dos factos (no caso dos que alegadamente aí tivessem ocorrido), quer para melhor se apreender o “espírito do lugar”, quer para se obter alguma “pasmosa miragem poética” (p. 126) gerada pela leitura.
Anteriores, mas encenando essa relação íntima entre a experiência da viagem e a da reflexão e escrita sobre o que ela ia proporcionando, temos vasto caudal com a Itália e a sua herança cultural em destaque… The Voyage of Italy ou A Compleat Journey through Italy, de Richard Lassels (1603-1668), Remarks on Several Parts of Italy (1672-1719), de Joseph Addison, que valorizava a leitura dos clássicos como guia para a compreensão do que se ia vendo, Viagem a Itália 1786-1788, de Johann Wolfgang von Goethe, que nos oferece uma experiência de erudição, etc.. Montesquieu, p. ex., preparou a sua viagem a Itália (1728-1729) consultando Nouveau voyage d'Italie (1691), de Misson, Les délices de l'Italie (1707), de Rogissart e Havard e a tradução francesa de Remarks (1722). E a ficção pode mesmo dominar a experiência da viagem, como acontece em The Life and Opinions of Tristram Shandy (1761-67) e A Sentimental Journey, Through France and Italy (1768), em que Laurence Sterne embebe de ficcionalidade a narrativa da viagem a Nápoles (1765) e parodia o subgénero.
Outros, mais localizados, contemporâneos e pontoados de acontecimentos da década de 1920, como o Paris é uma festa, de Hemingway, começou a ser escrito em Cuba em 1957, mas só foi finalizado em 1960, um ano antes da morte. Tudo isso chegando aos nossos dias, p. ex., com as brilhantes Crónicas Italianas (2021), de António Mega Ferreira, premiadas pela APE.
Enfim, nesta rota, todo o conhecimento (das artes, letras e ciências, erudito e tradicional) conflui e se funde na narrativa de um modo que influirá decisivamente no actual turismo literário, antecipando alguns dos seus aspectos.
Naturalmente, nessa imbricação entre arte, história e geografia, não nos surpreende a cartografia do nosso imaginário através da composição de rotas de viagem, itinerários cristalizando todo um imaginário específico: as de peregrinação (o Caminho de Santiago, p. ex., do séc. IX, a Jerusalém, que se simboliza e miniaturiza nos Montes Sacros3), as místicas e enigmáticas (o Caminho ou a Linha Sagrada de São Miguel Arcanjo, da Irlanda a Israel, com 7 santuários a ele dedicados)4, as de objectos mágicos (a do Graal, de Jerusalém à Península Ibérica), as dos Contos de Fadas (com destaque para a alemã, com c. 600 Km e 60 municípios entre Hanau, onde nasceram Jacob e Wilhelm Grimm, e Bremen, do conto “Os músicos de Bremen”), e tantas outras relacionando elementos temática ou estilisticamente (a do Românico, do Gótico, etc.) afins.
E que dizer dos roteiros “Escritores a Norte”, “Passeios literários por Lisboa” e “A Viagem do Elefante”, projectos de literaturismo que nos fazem ver Portugal através das letras? Ou a Lisboa dos Descobrimentos, de Eça de Queirós, de Pessoa e de Saramago? Ou, enfim, os Roteiros literários dos Açores?
Exemplos dessa imbricação ecocrítica e literária são, dentre outros, o projecto LITESCAPE.PT – Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental5 , “uma ferramenta para o turismo literário”6, coordenado por Natália Constâncio e Daniel Alves, que nos mostra a evolução desse panorama a partir do séc. XIX e a colecção “Literatura e Ambiente” dirigida por Ana Cristina Carvalho, do conselho editorial/científico da Lit&Tour – International Jorunal of Literature and Turism Research e C@striana, que coordena cada volume com diferentes colegas (Albertina Raposo, Ana Lavrador Silva, Ana Luísa Luz, Cristina Costa Vieira, Isabel Fernandes Alves, Lau Zanchi, Maria da Graça Saraiva, Natália Constâncio), série com um plano de 5 volumes dedicados a Portugal (Alentejo; Beiras; Minho, Douro e Trás-os-Montes; Ribatejo e Estremadura; Algarves)7, mas a que outros de associam8.
Ou, na actualidade internacional, os roteiros turísticos de Dan Brown de que já falei em crónica anterior9.
Com outro escopo, mas também guias de visitas fascinantes ao nosso imaginário através de “lugares de memória”, lembro a colecção Lugares Mágicos de Portugal (2009-10), de Paulo Pereira, que nos levam das “Paisagens Arcaicas” e do “Espírito da Terra” aos “Montes Sagrados, Altos Lugares e Santuários” e aos “Cabos do Mundo e Finisterras”, pelas “Arquitecturas Sagradas” e pelos “Templários e Templarismos”, em busca dos “Paraísos Perdidos e Terras Prometidas” e das “Idades do Ouro”.
Igualmente fascinante é usar guias turísticos de perspectiva mais insólita, como acontece com Lisboa e Sintra esotéricas, que também têm blogues10 e obras afins. As livrarias esotéricas fornecem um manancial…
Casas-museu e casas-memória
Sedutoras pela evocação dos escritores e da escrita das obras que lemos com deleite, eis alguns exemplos: Júlio Dinis (Ovar), Miguel Torga (Coimbra), Fernando Namora (Condeixa-a-Nova) e o Prémio Nobel Egas Moniz (Estarreja), médicos-escritores, Eugénio de Andrade (Fundão), Vergílio Ferreira (Gouveia) e, novamente, Miguel Torga, Prémios Camões, Vasco de Lima Couto (Constância), poeta e ator da Companhia Amélia Rey Colaço, João Cochofel (“Casa da Escrita” ou Casa do Arco, Coimbra), poeta neo-realista, e Afonso Lopes Vieira (S. Pedro de Moel), autor de Romance de Amadis, José Régio (Vila do Conde e Portalegre).
Em Lisboa, além de outras, lembro a Casa-Museu Amália Rodrigues11, lugar de fado transmitido semanalmente na televisão, a Casa-Museu Anastácio Gonçalves12 e o Museu Medeiros e Almeida13, mas também irresistível é o Grémio Literário, habitado pela memória do convívio dos escritores e outras figuras da elite do séc. XIX.
Numas, viveram, por outras passaram, e, noutras ainda, escreveram. Numas, há objectos e mobiliário com que conviveram, noutras, há bibliotecas, em algumas, organizam roteiros literários, noutras…
Se o séc. XIX destaca as casas de Camilo Castelo Branco (S. Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão) e de Eça de Queirós (Fundação Eça de Queiroz / Museu da Casa de Tormes – Vale do Douro, onde o escritor só passou uns dias), o séc. XX destacará as de Ferreira de Castro (Sintra), da Fundação José Saramago (Lisboa), onde não viveu o escritor, mas se cultiva a sua memória, e a de Fernando Pessoa (a última da sua vida).
Enfim, a crónica vai longa e a atmosfera induz a viajar. Vamos em frente! Na próxima, esperam-nos as fadas!
Notas
1 A designação parece ter surgido no “Prefácio ao Leitor” de The Voyage of Italy ou A Compleat Journey through Italy, de Richard Lassels (1603-1668). Cf. síntese.
2 Almeida Garrett. Viagens na Minha Terra (ebook), Porto, Porto Editora, Biblioteca Digital, s.d. Por comodidade, as referências das páginas serão consagradas a seguir às citações.
3 O caso mais elaborado será, talvez, o do Bom Jesus do Monte, em Braga, com a sua complexa escadaria de 583 degraus com a Via Sacra, os Cinco Sentidos, as Três Virtudes Teologais (Fé, Esperança e Caridade), o Terreiro dos Evangelistas e a Igreja, conjunto que, observado de longe, compõe um cálice consagratório da comunhão do peregrino com Deus. Recorde-se que os Montes Sacros (as “Novas Jerusaléns”, os lugares da “Cruz” e da Paixão de Cristo) foram o sucedâneo possível para peregrinações nacionais após a perda de Jerusalém: destaquem-se os do Piemonte e da Lombardia e os homólogos marianos do Bom Jesus de Braga (no Sameiro, de Leiria, de Mangualde e da serra da Lousã).
4 Em imagens: o enigmático caminho de São Miguel Arcanjo.
5 LITESCAPE.PT -Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental como uma ferramenta para o turismo literário.
6 Daniel Alves, Natália Constâncio, et al, Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental. Com imensas obras, alguns percursos.
7 Já publicados: Alentejo(s). Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2021); Beira(s). Imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2023); Ribatejo e Estremadura: imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2024); Minho, Douro e Trás-os-Montes: imagens do ambiente natural e humano na literatura de ficção (2024).
8 Sintra (2010); Terra nativa: natureza e paisagem humanizada em Ferreira de Castro (2017); Amazónia: reflexos do lugar nas literaturas portuguesa e brasileira (2020).
9 Aventura especulativa? Passeios pelos bosques destas ficções.
10 Lisboa Esotérica, e, respectivamente.
11 Casa-museu: O desejo de Amália.
12 Casa-museu: Dr. Anastacio Goncalves.
13 Casa-museu: Medeiros e Almeida.




![No fundo, como o faz o viajante garrettiano das Viagens na Minha Terra (1846), subindo o rio do tempo (Tejo) em direcção ao que já lá não está ou, pelo menos, já lá não está assim (pois não resta “nem o mais leve, nem o mais apagado vestígio da antiga origem”, p. 137): os monumentos fundadores da nação nascida da aliança entre a cruz e a espada, “os monumentos das duas religiões [a igreja de Santa Maria da Alcáçova e o Palácio do rei fundador], /…/ dizendo mais claro que os livros, que os escritos, que as tradições, o pensamento das idades que os ergueram, e que ali os deixaram gravados sem saber o que faziam.” (p. 133)](http://media.meer.com/attachments/ebc049569e52e093d6783b89dc72930d0367b5c4/store/fill/410/615/db6d5f7337519d56efb3f732fd8f30bf7abac7d2eded39febc96b210d20b/No-fundo-como-o-faz-o-viajante-garrettiano-das-Viagens-na-Minha-Terra-1846-subindo-o-rio-do.jpg)










