À humanidade sempre fascinou saber, querer ver, como se vive em terras alheias e distantes. É como se, desde que o mundo é mundo, precisássemos de um parâmetro para calibrar nossos próprios sucessos e infortúnios.
Creio que do mesmo modo que hoje se cogitam infinitas possibilidades de formas de vida nas imensidões do espaço astronômico, desconhecer as próprias medidas da Terra estendia o mundo imaginário da antiguidade em dimensões propícias a toda sorte de maravilhas e monstruosidades. Penso que só com o advento dos impérios, de uma hegemonia sobre territórios continentais, o estreitamento das fronteiras, é que fomos chegando ao denominador comum de que constituíamos uma mesma espécie habitante de um espaço contínuo.
As aventuras dos argonautas, assim como as da Eneida, por exemplo, indicam uma cosmovisão psicológica ainda fantástica; uma espécie de “ficção científica” avant la lettre, para seus contemporâneos. Enquanto que, pouco mais tarde, em Heródoto ou em Sêneca a descrição de costumes bizarros já começa a soar como uma espécie de relativismo cultural protoantropológico.
De modo paralelo, encontrar uma alternativa à constrição desse orbe escasso e profano foi o que redimiu Virgílio, Boécio ou Dante entre os homens. Antes que as grandes viagens “por mares nunca d’antes navegados” reacendessem aquele antigo fascínio, relegado à teologia ou degenerado em entretenimento, as lendárias viagens de Marco Polo talvez tenham sido seus últimos rescaldos. Mesmo com Camões e Magalhães, o que restou em seguida foi um prato cheio para hipotéticas utopias e distopias, como as de More e Hobbes.
Essa omissa série de antigos narradores de histórias, reais ou fictícias, cujos extravios ou vaidades deram causa ao registro de agonias e esplendores, poderia constituir um esboço para uma possível bibliografia que engolfaria o relato do náufrago alemão Hans Staden. Mas creio que muito pouco do conteúdo mítico, literário ou filosófico dessa bibliografia lhe valha como referência senão verbal ou meramente cronológica.
Hans Staden viveu e sobreviveu acidentalmente, por premência; seu itinerário compõe uma espécie de via crucis marítima entre o mercenário e o devoto à medida em que sua exígua biografia pregressa se distancia dos seus atos na voz testemunhal do seu relato, a qual assume um tom entre o escarmento e a gratidão derradeira.
Seu estilo é quase o de uma confissão. Seus detratores podem alegar que seu livro foi apenas mais um artifício para a sua farsa aventureira, mas quando se termina de lê-lo a sensação é a de que esse formato lhe foi um meio útil mas a contragosto. Que seus pesadelos, seus canibais, seu degredo, seu êxtase religioso, tudo lhe foi demasiado visceral para a futilidade de qualquer vanglória.
Como na vida, ao longo dela, daquilo que lemos ou que nos contam podemos intuir sua verdade ou falsidade não somente através dos eventos ou impressões que o texto encadeia. Parece que, no mais das vezes, o que de fato nos convence reside numa espécie de metalinguagem, em algo anterior, em uma certeza que apenas esperamos constatar.
O relato de Hans Staden, por mais excêntrico que seja, traz essa prévia e íntima confidência. Por trás das páginas há o eco de que ele teria preferido nos falar à viva voz. Tocado em seu genuíno fervor pela constante iminência da morte, Duas Viagens ao Brasil (título póstumo que lhe atribuíram seus sucessivos editores) é um também libelo de esperança e fé diante da fatalidade e da barbárie.
Post scriptum
Para desclassificá-lo, a ele e a seu relato, os primeiros apanágios que os dicionários biográficos atuais perfilam após seu nome são “aventureiro” e “mercenário”, como se no séc. XVI, aliás, tanto quanto hoje, o indivíduo fosse totalmente soberano ao eleger suas predileções e seus atributos morais ou estéticos.
Hans Staden teria rido, para não chorar, diante da estética literária autodenominada “antropofágica” moderna, um pueril jogo de palavras de crianças, como se diz, criadas com vó. E seu testemunho, se torna incompreensível se fingirmos ignorar suas circunstâncias, assim como as condições de vida de Cunhambebe, seu indeciso algoz tupinambá, que lhe declarou uma vez não sem empáfia segurando uma perna humana chamuscada: iawá esché1.
Notas
1 Tradução livre do tupi-guarani: “não sou gente, sou um bicho”.