Um ano depois do início da guerra da Ucrânia o balanço pode resumir-se assim: a destruição da Ucrânia, o empobrecimento e o crescente isolamento internacional da Europa, o enriquecimento excepcional das empresas de armamento e de energia fóssil (na sua maioria, norte-americanas). A cegueira informativa produzida pela mídia hegemónicos quase não deixa ver três fenómenos que podem trazer alguma esperança a quem concorde com Erasmo que uma paz imperfeita é sempre preferível a uma guerra justa – “se é que tal coisa existe”, como acrescentava o grande humanista de Roterdão. Os três fenómenos são: o emergente movimento contra a guerra e pela paz tanto na Europa como nos EUA; as declarações de militares de alta patente dos EUA e da Alemanha sobre a impossibilidade de uma solução militar para o conflito; e a disponibilidade de alguns países importantes (China, Índia e Brasil) para mediar uma solução pacífica. Qualquer destes factos é escassamente noticiado pela mídia.

Quem mais interesse tem na paz é quem mais perde com a guerra, ou seja, a Ucrânia e a Europa. Inversamente, quem menos interesse tem na paz é quem ganha mais com a guerra. Por sua vez, o que se perde e o que se ganha vai muito para além do que é mais visível. Se a Ucrânia sangra no corpo, a Europa sangra na alma. Uma anti Europa nasce dentro da Europa. A Europa das compras conjuntas de vacinas e medicamentos para garantir o bem-estar dos cidadãos dá lugar à Europa das compras conjuntas de armas para causar a morte de europeus ucranianos e russos (por agora) e aumentar o mal-estar de cidadãos empobrecidos, tanto nas condições de vida material como na sanidade espiritual. É a Europa dos anões valentões porque subservientes (Emmanuel Macron, Olaf Scholz, António Costa) contra a Europa dos gigantes ponderados porque conscientes dos riscos (François Mitterrand, Willy Brandt, Olof Palme). De facto, não é uma anti Europa, é a outra Europa, a Europa arrogantemente ignorante e colonialista, o seu lado reprimido a estilhaçar-se na cara das boas consciências.

Desde Dezembro passado o Presidente Zelensky tem vindo a promover o seu plano para a paz assente em dez pontos: segurança nuclear à volta da maior central nuclear da Europa, Zaporíjia; segurança alimentar e exportação dos cereais ucranianos; segurança energética mediante restauro da infraestrutura energética e restrições do preço da energia russa; libertação de todos os presos e deportados, incluindo presos de guerra e crianças deportadas para Rússia; restaurar a integridade territorial da Ucrânia; retirada das tropas russas e restabelecer as fronteiras com a Rússia; um tribunal especial para perseguição dos crimes de guerra cometidos pelas tropas russas; desminagem e restauro do tratamento de água; criação de uma arquitectura de segurança euro-atlântica que dê garantias à Ucrânia; confirmação do fim da guerra num documento assinado pelas partes. A reacção a este plano por parte dos países considerados aliados foi cautelosa desde o início. A diplomacia brasileira já sinalizou que alguns destes pontos não poderão ser considerados inegociáveis.

O objectivo, sem dúvida difícil, mas não impossível, é garantir a segurança da Ucrânia sem que a Rússia veja a Ucrânia transformada na linha avançada de uma força hostil, a NATO. Duas ideias ganham terreno: é preciso regressar aos acordos de Minsk sobre as zonas russófonas do Donbass, mas agora de boa fé e em obediência à Resolução 2202 do Conselho de Segurança da ONU de 17 de Fevereiro de 2015; a Crimeia é uma linha vermelha, como o Secretário de Estado americano, Anthony Blinken, reconhece. A região do Mar Negro é tão importante para os russos e a sua frota quanto o Caribe ou a região do Panamá para os Estados Unidos, e quanto o Mar do Sul da China e Formosa para a China. Expulsar a Rússia do Mar Negro é provocar uma guerra nuclear.

A guerra da Ucrânia é uma guerra por procuração entre os EUA e a Rússia; só haverá paz quando Washington e Moscovo quiserem. A Ucrânia e a Rússia estiveram prontos para um acordo de paz logo no início da guerra (Março-Abril de 2022), e a paz só não ocorreu porque a isso se opuseram os EUA e o Reino Unido. E depois disso a Ucrânia e a Rússia negociaram o acordo da exportação de cereais. Neste momento, começa a acentuar-se uma divisão no seio da administração Biden entre os que pretendem uma solução diplomática e os que insistem em aumentar ajuda militar à Ucrânia com a esperança de que a guerra seja ganha sem se chegar a uma confrontação directa entre a NATO e a Rússia e, por consequência, ao uso de armas nucleares. A segunda posição continua a ser dominante, mas a esperança em que assenta é cada vez mais ilusória. A paz constrói-se, não preparando a guerra, mas antes preparando a disponibilidade e criando a oportunidade para as palavras substituírem as armas. A política do ódio e os ataques ad hominem são próprios de um tempo que confunde causas com consequências e procura na unanimidade o refúgio da mediocridade.