Nos períodos de grande polarização social e política, as designações, os conceitos, as ideologias são sujeitas a grande turbulência semântica. A confusão criada é intencional, e é um dos instrumentos privilegiados da guerra de propaganda para manipular a opinião pública. Dilucidar o que o labirinto da propaganda pretende esconder nas bombásticas revelações que faz incessantemente não é tarefa fácil. A dificuldade é tanto maior quanto as mentiras são frequentemente misturadas com meias-verdades. Vejamos alguns exemplos.

Extremismos

Faz parte da guerra de propaganda transformar o adversário que se quer alvejar em extremista. O extremismo surge frequentemente associado a fundamentalismo, dogmatismo etc. O extremista é sempre o outro. Assim, o terrorismo é considerado extremismo, mas o terrorismo de Estado é considerado segurança nacional.

Ao extremismo contrapõe-se a moderação e o centrismo. Nos países de democracia liberal manipulam-se dois extremismos contrapostos, a extrema-esquerda e a extrema-direita. Entre elas, está a moderação e o centrismo. Existem, sem dúvida, forças convencionalmente designadas de extrema-esquerda e de extrema-direita, as primeiras estando hoje em vias de extinção e as segundas, em vias de ascensão. Mas em termos de influência política nos nossos dias, o maior extremismo é o centrismo, o extremo-centrismo.

A (des)ordem económica imposta pelo neoliberalismo global é constituída por uma ortodoxia económica tão dogmática e fundamentalista que impede aos Estados periféricos ou semiperiféricos qualquer margem de autonomia. Qualquer movimento no sentido de uma maior justiça social é radicalmente punido pelos bancos centrais ou pelas agências internacionais.

Aliás, aqui reside outra das manipulações da linguagem: os bancos centrais são “independentes” para poderem estar na estrita dependência do neoliberalismo global. A polarização é assim entre três extremismos, e não entre dois, e aqui reside boa parte da confusão nas opções dos cidadãos. Por outras palavras, a moderação desapareceu da cena política mundial no momento em que é entronizada como virtude política pela propaganda do conformismo.

Esquerda e direita

A polarização entre esquerda e direita é a grande marcadora das divisões ideológicas desde a Revolução Francesa e permanece vigente na Europa e nas zonas de influência político-cultural da Europa, na América latina, na Índia (em parte) e nas ex-colónias de total supremacia branca: EUA, Canada, Nova Zelândia e Austrália. Em África, é muito menos vigente, e está praticamente ausente em muitas regiões da Ásia.

Nestas regiões, as polarizações políticas existem, mas são designadas doutra forma. A guerra de propaganda assume neste domínio duas versões: ou não há distinção entre esquerda e direita, ou troca os significados aos significantes e considera de esquerda o que sempre foi considerado de direita, e de direita o que sempre foi considerado de esquerda. Este é o domínio das meias-verdades.

De facto, as diferenças entre esquerda e direita têm-se vindo a atenuar. É essa uma das razões por que a extrema-direita assume hoje bandeiras que eram tradicionalmente da esquerda sem que ninguém se sobressalte. O caso extremo é o das recentes eleições no Reino Unido. O partido trabalhista ganhou as eleições por esmagadora maioria. No entanto, ao contrário do que seria de esperar, as diferenças entre os dois partidos não são muito grandes sobretudo no plano internacional. Por exemplo, ambos são fervorosos seguidores do neoliberalismo, ambos são adeptos da continuação da guerra da Ucrânia e ambos continuam a fornecer armas a Israel. Este é apenas um caso extremo de algo que está a acontecer noutros países.

Nestas condições, os eleitores estão condenados a votar em eleições (enquanto acreditarem nelas) como voto de protesto. Votando de protesto em protesto, de frustração em frustração. Até quanto a aguentará democracia ser apenas um instrumento de protesto. Sempre que há diferença entre a esquerda e a direita no plano das opções políticas é hoje preciso muito mais cuidado analítico que antes. Por exemplo, na Europa, a grande maioria do que se convenciona ser esquerda está a favor da continuação da guerra da Ucrânia, apoia o militarismo, não se mobiliza para a luta pela paz, deixou de falar de capitalismo e aposta num neoliberalismo de rosto humano (algo impossível de imaginar).

Onde as diferenças existem e são importantes são as seguintes: imigração, luta ecológica, defesa da população LGBTQI+, direitos reprodutivos das mulheres, concepções de família. São temas importantíssimos e exigiram muitas lutas para serem conseguidos. Mas não são tudo. Não investem na luta anticapitalista nem na luta anticolonialista, que foram das lutas fundadoras da esquerda. Sem estas, nenhuma das outras terá êxito sustentável. Basta ver o que está a acontecer com o direito ao aborto nos EUA. Em conclusão, a confusão entre esquerda e direita é em parte culpa das organizações que se reclamam dessas designações.

Libertação e dependência

Este binarismo teve uma evolução semântica desde meados do século XIX. Aplicou-se inicialmente no período do colonialismo histórico e na resistência contra ele. O oposto de libertação começou por ser colonialismo, mas à medida que as colónias se foram tornando politicamente independentes a aspiração da independência reduziu-se aos termos da dependência a que a ex-colónias foram sujeitas.

Estes termos (contratos desiguais, monopólios de empresas do país colonizador, dependência financeira, continuação da exploração dos recursos naturais) constituíram o que se chamou neocolonialismo (Kwame Nkrumah, 1965) ou colonialismo sem adjetivos, para o distinguir do colonialismo histórico (ocupação territorial por uma potência estrangeira). Hoje, o binarismo libertação /dependência assume vários significados, mas todos disfarçam a ausência de libertação e a substituição de uma dependência por outra.

Assim, a guerra da propaganda diz-nos que a Europa se libertou da dependência da Rússia no que respeita ao fornecimento do gás natural e do petróleo para esconder o facto de que a Europa se tornou dependente dos EUA, pagando por aqueles produtos um preço quatro ou cinco vezes mais alto do que o que pagava à Rússia, o que está na origem do actual declínio económico da Europa. A organização dos BRICS+ tende a ser uma tentativa de fuga a esta alternância, mas nada garante que a dependência da China não esteja no horizonte.

A paz e a guerra

É hoje consensual entre os historiadores norte-americanos que o país esteve quase sempre em guerra desde a sua fundação. Isto não impede a propaganda de converter os EUA no grande arauto da paz, garante da paz mundial, cujas intervenções bélicas no mundo foram sempre para garantir a paz.

A mentira é evidente, mas ela só é desacreditada se a guerra de propaganda tiver êxito em identificar quem são os inimigos da paz que ameaçam o mundo com a guerra total. Esses países são, antes de mais nada, a Rússia, que, segundo a guerra de propaganda, invadiu a Ucrânia como primeiro passo para invadir e conquistar toda a Europa. O facto de a Rússia nunca ter invadido a Europa e ter sido invadida duas vezes, uma por Napoleão e outra por Hitler, não interessa a esta narrativa. Mas o país mais ameaçador é de longe a China, como ficou consagrado na última cimeira da NATO – uma ameaça global à paz.

O facto de todos os produtos que os convidados estavam a utilizar durante a cimeira, de canetas e lenços de papel até microfones, instalações sonoras, pratos e talheres terem sido fabricados na China não teve qualquer relevância. Tão pouco tem relevância que nenhum país do Sul global acredite nesta narrativa e pense que a Rússia ou a China estão sedentos de guerra. Sabem bem que o contrário é verdade. Sedento de guerra está o deep state dos EUA e o complexo-militar industrial que hoje o sustenta. Esta manipulação é tão radical que aqueles que no Norte global defendem a paz são suspeitos, considerados “terroristas da paz”, passe a contradição nos termos.

Desta inversão propagandística emergem outras para lhe dar credibilidade. Assim, a NATO é considerada uma aliança defensiva, quando todos sabemos que só o foi durante a Guerra Fria e que, a partir da queda do Muro de Berlim, se transformou numa aliança ofensiva com um sinistro historial, da Jugoslávia à Líbia e à Síria, e que agora, desmentindo o seu próprio nome (aliança do Atlântico Norte), se está expandindo para a África, a Austrália e o Mar da China.

A outra inversão paralela é a substituição do conceito de desenvolvimento pelo conceito de segurança nacional. As missões norte-americanas em África visam predominantemente a segurança nacional (curiosamente, se é nacional, por que razão são estrangeiros a exigirem que os países “ajudados” garantam a sua segurança?).

Por sua vez, a palavra “ajuda ao desenvolvimento” quase desapareceu do vocabulário internacional. A própria questão das migrações é tratada como uma questão de segurança (certamente para os países para onde se tenta imigrar, não para os países donde se emigra).

Sionismo e anti-semitismo

Uma das áreas centrais da guerra de propaganda ocidental é fazer equivaler a crítica do sionismo ao antissemitismo. Como o antissemitismo é hoje considerado crime em alguns países, criticar o sionismo equivale a cometar um crime. Não interessa à guerra de propaganda que os dois termos signifiquem coisas muito diferentes, que muitos judeus sejam antissionistas.

O importante é defender Israel faça o que fizer, seja ou não um Estado pária, esteja ou não a cometer o mais selvagem e bárbaro genocídio depois do que foi cometido conta os judeus sob o comando de Hitler. E aqui surgem outras manipulações da propaganda. Para esta, é impossível comparar o Holocausto com o genocídio de Gaza, porque Holocausto há só um e não pode haver mais nenhum.

Na mentira que a guerra de propaganda quer inculcar escondem-se duas realidades, uma velha outra tragicamente nova. A primeira é que Israel está ao serviço do imperialismo norte-americano no Medio Oriente, ou melhor, na Ásia ocidental. É uma peça fundamental para uma eventual guerra com a única potência que lhes pode fazer frente na região, o Irão.

Aliás, o papel que os neoconservadores norte-americanos quiseram reservar para a Ucrânia foi o de ser o Israel da Europa, um país capaz de acabar com a pretensão de relativa autonomia que a Europa pretendeu ter depois de 1945. A segunda é que o Holocausto deixou de ter o monopólio dos piores crimes dos últimos cem anos cometidos pelos Europeus. Daqui em diante haverá dois holocaustos, mesmo que a um deles chamemos genocídio. Ambos resultam do mesmo crime europeu, ainda que no segundo a Europa tenha sido entusiasticamente secundada pelos EUA.