O Brasil vive uma constante disputa sobre o que é considerado cultura legítima e o que é tratado como ameaça à ordem pública. A CPI dos Pancadões, instaurada em São Paulo, é um exemplo claro de como o Estado escolhe o que merece ser preservado e o que deve ser silenciado. Os pancadões, manifestações culturais que ocorrem majoritariamente em comunidades periféricas, são acusados de atrapalhar o trânsito, incomodar com o barulho e influenciar negativamente crianças e adolescentes. No entanto, grandes eventos como o Rock in Rio e o Tomorrowland causam os mesmos impactos — congestionamentos, perturbação sonora, aglomeração — e não são alvo de comissões parlamentares. A diferença está em quem frequenta e quem organiza esses eventos.
A criminalização dos pancadões revela um racismo estrutural que não se limita à repressão policial. Ela se estende à forma como o Estado e a sociedade classificam manifestações culturais. O funk, principal gênero musical dos pancadões, é constantemente acusado de promover apologia ao crime, à sexualidade precoce e à violência. Mas o que esses artistas fazem é retratar a realidade que vivem. As letras falam de abandono, sobrevivência, desejo de ascensão e enfrentamento da violência — temas que fazem parte do cotidiano da favela. O incômodo não está no conteúdo, mas no fato de que ele escancara uma realidade que a elite prefere ignorar.
Enquanto se tenta silenciar o funk, o Estado preserva com orgulho obras literárias que perpetuam estereótipos racistas. Monteiro Lobato, autor de clássicos infantis como Caçadas de Pedrinho e Reinações de Narizinho, é um exemplo disso. Em seus livros, a personagem Tia Nastácia é descrita com termos como “macaca de carvão” e “negra de estimação”. Essas expressões não são apenas ofensivas — elas reforçam a ideia de inferioridade racial e naturalizam o racismo desde a infância. Lobato também escreveu cartas pessoais em que defendia a supremacia branca e criticava a miscigenação no Brasil. Mesmo assim, sua obra segue presente nas escolas, sem o mesmo rigor crítico que se aplica ao funk.
A justificativa para manter Lobato no currículo escolar é sempre a mesma: “Ele é parte da história da literatura brasileira”. Mas será que preservar uma memória cultural deve se sobrepor à luta contra o racismo estrutural? A literatura infantil é uma das primeiras formas de formação simbólica das crianças. Ensinar obras com conteúdo racista sem contextualização crítica é ensinar preconceito. E o mais grave: essas obras são lidas por crianças de seis, sete, oito anos — uma fase em que o senso de certo e errado ainda está em formação. Não estamos falando de jovens no ensino médio, mas da base da educação.
A CPI dos Pancadões, por sua vez, não propõe entender o contexto social dos bailes. Ela parte do princípio de que são um problema a ser eliminado. Influenciadores e cantores são convocados para prestar depoimentos, como se fossem criminosos. O Estado não quer entender o que leva jovens a se expressarem por meio do funk, mas sim calar suas vozes. É uma tentativa de apagar a cultura periférica sob o pretexto de ordem pública. E isso acontece enquanto festivais como o Tomorrowland são celebrados como experiências culturais elevadas, mesmo causando os mesmos transtornos.
O Tomorrowland, por exemplo, é um festival de música eletrônica com ingressos que ultrapassam mil reais. Ele reúne milhares de pessoas, provoca congestionamentos, barulho excessivo e ocupa grandes espaços públicos. Mas nunca foi alvo de CPI. O Rock in Rio, embora mais acessível, também segue a mesma lógica: grandes marcas, artistas internacionais, e um público majoritariamente branco e de classe média. Esses eventos são tratados como patrimônio cultural, enquanto os pancadões são vistos como ameaça. A diferença está na cor da pele e no CEP dos participantes.
A seletividade do Estado em relação à cultura revela uma hierarquia simbólica. O que vem da favela é problema; o que vem da elite é arte. E isso não se limita à música. Na literatura, o mesmo padrão se repete. Mário de Andrade, por exemplo, participou da Semana de Arte Moderna em 1922 ao lado de Oswald de Andrade e Monteiro Lobato. Mário tinha 28 anos na época e foi um dos poucos que se dedicou a estudar e valorizar a cultura popular brasileira, incluindo as manifestações afro-brasileiras. Sua obra não reproduz estereótipos racistas, ao contrário de Lobato, que mesmo com conteúdo problemático, segue sendo exaltado.
A manutenção de Lobato nas escolas e a repressão aos pancadões mostram que o Estado prefere preservar estruturas racistas do que enfrentá-las. Silenciar o funk é mais fácil do que mudar a realidade que ele retrata. E manter Lobato é mais confortável do que abrir espaço para autores negros e periféricos na educação básica. A cultura oficial continua sendo branca, elitista e excludente. E qualquer tentativa de mudança é vista como ameaça à tradição.
Se queremos de fato combater o racismo estrutural, precisamos começar pela base. Isso significa revisar o currículo escolar, incluir autores diversos, contextualizar obras problemáticas e valorizar as manifestações culturais da periferia. Significa entender que o funk não é o problema — ele é o sintoma de uma sociedade desigual. E que Monteiro Lobato não pode ser lido como se fosse neutro, porque sua obra carrega o peso de uma ideologia racista. A mudança começa quando reconhecemos que cultura também é política.















