Bertha Maria Júlia Lutz representa muito mais do que o símbolo da conquista do voto feminino no Brasil. Ela foi a síntese perfeita entre o rigor científico e o ativismo político, entre a paixão pela descoberta e o compromisso com a justiça social. Sua vida foi um projeto consciente de demonstração de que a inteligência não tem gênero, de que a curiosidade científica é um impulso humano universal e de que a exclusão das mulheres dos espaços de saber e poder constituía não apenas uma injustiça moral, mas um erro estratégico catastrófico para qualquer nação que aspirasse à modernidade.

Para compreender a magnitude de sua contribuição, é necessário mergulhar nas múltiplas dimensões de sua trajetória: a zoóloga meticulosa, a estrategista política sagaz, a diplomata visionária e a intelectual que soube traduzir as complexidades acadêmicas em projetos tangíveis de emancipação.

Origens e formação

Nascida em 1894, em São Paulo, Bertha cresceu em um ambiente que moldou seu caráter inquieto e sua mente brilhante. Filha do pioneiro da medicina tropical Dr. Adolfo Lutz e da enfermeira inglesa Amy Fowler, foi criada em um lar onde a ciência era linguagem corrente, o método experimental era valorizado e a busca pelo conhecimento era vista como a mais nobre das vocações.

Seu pai, diretor do Instituto Bacteriológico de São Paulo, era não apenas um cientista renomado, mas um humanista que acreditava no poder transformador da ciência aplicada ao bem-estar coletivo. Crescer à sombra de uma figura tão monumental poderia ter sido intimidador, mas para Bertha funcionou como estímulo. Ela não queria ser apenas “a filha de Adolfo Lutz”; queria ser Bertha Lutz, com suas próprias conquistas.

Foi essa busca por autonomia intelectual que a levou a Paris, para estudar na prestigiada Universidade de Sorbonne. Em uma época em que as universidades brasileiras ainda eram praticamente inacessíveis para mulheres, Bertha encontrou na França um ambiente relativamente mais aberto ao talento feminino. Formou-se em Ciências Naturais em 1918, mas sua educação não se limitou às salas de aula.

No Museu Nacional de História Natural de Paris descobriu sua verdadeira paixão: a herpetologia, com foco especial nos anfíbios anuros. Sob a orientação de eminentes zoólogos, aprendeu técnicas de taxidermia, dissecação e classificação taxonômica. Seu trabalho final, um estudo minucioso sobre a fauna brasileira, já revelava seu compromisso de colher conhecimento no exterior para aplicá-lo na compreensão do próprio país.

A cientista dos anfíbios

De volta ao Brasil, em 1919, prestou concurso e ingressou no Museu Nacional do Rio de Janeiro, a instituição científica mais importante do país. O cargo, de caráter técnico, a colocou no coração da produção científica nacional. Rapidamente se destacou e tornou-se chefe da Seção de Zoologia — sendo uma das primeiras mulheres a ocupar um cargo de chefia no serviço público federal, feito notável para a época.

Sua atuação foi marcada por energia incansável. Reorganizou coleções inteiras, incorporou novas técnicas de conservação e catalogação, e realizou expedições de campo enfrentando desafios logísticos e ambientais para ampliar o conhecimento sobre a biodiversidade brasileira. Nessas viagens, não raro percorria áreas inóspitas, dialogava com comunidades locais e enfrentava condições precárias, movida apenas pela paixão pela ciência.

Publicou diversos artigos em periódicos científicos nacionais e internacionais e contribuiu para a descrição de novas espécies. Seus estudos sobre a morfologia, distribuição geográfica e comportamento de sapos, rãs e pererecas brasileiras tornaram-se referência para pesquisadores no Brasil e no exterior. Em 1935, sua reputação era tamanha que representou o Brasil no 12º Congresso Internacional de Zoologia, em Lisboa, onde apresentou um trabalho sobre a distribuição geográfica de anfíbios no Brasil — consolidando-se como autoridade mundial em sua área.

Essa dimensão científica de Bertha Lutz é frequentemente eclipsada por sua atuação política, mas não deveria ser. Ao mesmo tempo em que coletava anfíbios, catalogava espécies e escrevia artigos, ela demonstrava que mulheres podiam ser protagonistas da ciência, mesmo em um ambiente institucional dominado por homens.

A estrategista política

Paralelamente à carreira científica, Bertha desenvolvia outra frente de batalha: a luta pelos direitos das mulheres. Para ela, a ciência não existia em torre de marfim. Era ferramenta de progresso humano, e esse progresso era impossível com metade da população excluída da vida intelectual, da educação superior, do mercado de trabalho qualificado e, principalmente, da política.

Em 1922, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). O lema da organização — “Ciência e Trabalho” — deixava claro o propósito: conquistar direitos, mas também preparar as mulheres para exercê-los com excelência. A FBPF oferecia cursos de capacitação intelectual e política, que iam de direito constitucional a técnicas de oratória, de noções de economia a higiene pública. Muitas mulheres passaram por ali, fortalecendo-se para ocupar espaços que antes lhes eram negados.

Para Bertha, o voto não seria suficiente. Era necessário formar uma geração de mulheres informadas, críticas e preparadas para ocupar espaços de decisão. Sua campanha pelo sufrágio foi estratégica, moderna e articulada com exemplos internacionais. Em 1932, a vitória chegou com a conquista do voto feminino no Brasil. Mas, para Bertha, aquela era apenas uma batalha vencida em uma guerra muito mais longa.

Ela também foi deputada federal suplente, assumindo o mandato em 1936. No Congresso, defendeu a ampliação dos direitos das mulheres, a proteção ao trabalho feminino e infantil e a igualdade de oportunidades. Embora seu tempo como parlamentar tenha sido breve, seu impacto foi duradouro.

A diplomata visionária

Sua trajetória logo ganhou projeção internacional. Em 1945, integrou a delegação brasileira na Conferência de São Francisco, que fundou a Organização das Nações Unidas. Entre centenas de homens, Bertha era uma das poucas mulheres presentes — e certamente uma das mais ativas.

Nesse palco global, uniu-se a outras delegadas — entre elas Eleanor Roosevelt, Minerva Bernardino (República Dominicana) e Isabel de Vidal (Uruguai) — para garantir que a igualdade de direitos entre homens e mulheres fosse incluída como princípio fundador da nova organização. Sua atuação foi decisiva para a redação da Carta da ONU e para a criação da Comissão sobre o Estatuto da Mulher, que até hoje atua na promoção dos direitos femininos em escala mundial.

Bertha compreendia que paz, desenvolvimento e igualdade de gênero não eram agendas separadas, mas dimensões interdependentes. Essa visão, avançada para sua época, ecoa ainda hoje nas discussões sobre sustentabilidade, democracia e direitos humanos.

Legado imortal

O legado de Bertha Lutz transcende categorias. Foi cientista que abriu caminho para as mulheres em um campo dominado por homens, provando com sua própria excelência que o talento não tem gênero. Foi ativista que transformou a luta pelos direitos das mulheres em argumento racional e estratégico para o progresso social. Foi diplomata que colocou o Brasil na vanguarda da igualdade de gênero no cenário internacional.

A tragédia do incêndio que destruiu o Museu Nacional em 2018 consumiu parte de seu acervo e de suas anotações, uma perda irreparável para a ciência e para a memória histórica. Mas o que as chamas não puderam destruir foi a força de suas ideias e o poder de seu exemplo.

Bertha Lutz permanece como farol que ilumina o caminho de uma sociedade mais justa e inclusiva. Sua vida nos recorda que a busca pelo conhecimento e a luta pela igualdade são indissociáveis. Mais do que pelo direito de votar, ela lutou pelo direito de pensar, de descobrir e de pertencer plenamente à história. Seu exemplo continua atual e necessário. Em um mundo que ainda discute a sub-representação feminina na ciência, na política e na diplomacia, lembrar de Bertha Lutz é lembrar que cada avanço só foi possível porque mulheres como ela ousaram desafiar séculos de tradição. Ela nos ensina que transformar a realidade não é um ato súbito, mas um processo contínuo de resistência, inteligência e coragem.