Há algo de profundamente inquietante em ser criança no século XXI. Em um tempo em que tudo é medido, monitorado, normatizado e diagnosticado, a infância — esse território sagrado da imaginação, do corpo em movimento livre, da experiência sem finalidade — tornou-se um campo minado de exigências e controles. Não se trata mais de crescer, mas de performar o crescimento dentro dos padrões impostos pelo mercado, pela escola e, muitas vezes, pela própria família. A criança de hoje não brinca: cumpre funções. Não experimenta o tédio: é entretida. Não se move ao acaso: é corrigida.

Vivemos uma infância sob cerco. Um cerco que se disfarça de cuidado, mas que aprisiona. Um cerco que se apresenta como proteção, mas que sufoca. E talvez o mais perverso desse cerco seja a patologização da vida infantil — o ato de transformar em transtorno aquilo que, muitas vezes, é apenas expressão legítima da subjetividade, fase do desenvolvimento, forma de estar no mundo. Há uma medicalização silenciosa e crescente das infâncias, travestida de zelo, que elimina a possibilidade de a criança ser apenas... criança.

Toda inquietude virou hiperatividade. Toda timidez virou fobia social. Toda resistência virou transtorno opositor. A “birra”, antes parte do vocabulário comum da vida cotidiana, agora é sintoma clínico. O choro, ao invés de ser escutado e acolhido, é medicado. E o silêncio — que às vezes guarda um mundo interno vasto, poético e criativo — é tratado como ausência, como falha, como algo a ser preenchido por especialistas.

Não nego aqui os sofrimentos reais e diagnósticos. Muito pelo contrário: há, sim, crianças adoecidas por um mundo que exige delas o que nem adultos conseguem sustentar. Há dores profundas que merecem escuta, acolhimento e intervenção ética. Mas é preciso cuidado para que o olhar clínico não se transforme em olhar policial, e a escuta terapêutica não vire sentença. Mesmo diante de diagnósticos consistentes, o foco deve ser o desenvolvimento da potência, a construção de suportes e de vínculos, e não o que tantas vezes se observa hoje: tentativas — a custos altíssimos, inclusive subjetivos — de adestrar aquilo que as crianças têm de mais genuíno, sua espontaneidade.

A patologização da infância serve, em muitos aspectos, a um projeto maior: o de adaptar corpos e mentes a uma lógica produtivista, tecnocrática e performática. Crianças que não se adaptam à escola são diagnosticadas. Crianças que questionam regras são punidas com rótulos que as definem de forma estigmatizante. E, assim, a diferença vai sendo enquadrada, o desvio vai sendo medicalizado, e a potência criativa da infância vai se apagando, pouco a pouco, quase imperceptivelmente.

O que estamos fazendo com nossas crianças quando lhes negamos o direito de serem errantes, ruidosas, distraídas, fantasiosas, contraditórias? Que infância é essa que exige desempenho, produtividade, foco e controle emocional desde os três anos de idade? Que tipo de sociedade estamos moldando quando esperamos que crianças se comportem como adultos robotizados, enquanto adultos vivem em desequilíbrio, emocionalmente desregulados, agindo como autômatos?

Há uma desumanização sutil em curso — e ela começa cedo. Começa na fila da creche, com currículos escolares que antecipam a alfabetização em nome da “eficiência pedagógica”. Prossegue nas consultas médicas que, diante de qualquer desvio da norma, prescrevem remédios para comportamentos que, há poucas décadas, seriam considerados simplesmente traços da infância. E se cristaliza nos discursos que culpabilizam famílias, sobretudo as mais pobres, por “crianças-problema”, ignorando os contextos sociais, políticos e econômicos que atravessam essas infâncias e as moldam de forma desigual.

É impossível descolar essa discussão das desigualdades estruturais. A infância é também uma questão de classe, de raça, de território. As infâncias não são vividas da mesma forma em bairros ricos e nas periferias. O diagnóstico, muitas vezes, carrega o peso do preconceito, da exclusão, da necropolítica que define quais vidas merecem cuidado e quais serão descartadas ou punidas.

Por isso, precisamos radicalizar a escuta. Precisamos de uma escuta que não queira corrigir, mas compreender. Uma escuta que não silencie, mas convide à expressão. Uma escuta que reconheça o choro como linguagem, a birra como comunicação, o jogo como forma legítima de conhecimento. Precisamos defender uma escuta que valorize a brincadeira não como um passatempo fútil, mas como uma epistemologia infantil, uma forma de elaboração e reinvenção do mundo.

Resgatar a infância é um ato político. É dizer não à lógica do capital que exige aceleração constante e rendimento a todo custo. É afirmar que o brincar é um direito, não um luxo reservado a poucos. É defender que a escola seja um território de acolhimento, de escuta sensível e de produção de sentido, e não uma máquina de normatização. É sustentar que a diferença não é um problema a ser corrigido, mas uma riqueza a ser cultivada e respeitada.

Talvez seja necessário reaprender com as próprias crianças. Elas ainda sabem que o mundo pode ser reinventado com um pedaço de pau, um papel colorido, uma música desafinada. Elas ainda acreditam que monstros existem, que voar é possível, que o tempo pode parar numa tarde de chuva. É essa sabedoria ancestral que estamos perdendo — e, com ela, perdemos também parte essencial da nossa humanidade.

A infância não é um problema. A infância é uma possibilidade. Mas, para que ela exista em sua plenitude, precisamos desmontar as engrenagens que a oprimem. Precisamos devolver às crianças o tempo, o corpo, a rua, o silêncio, a fantasia, o afeto. E, sobretudo, precisamos ter a coragem de enfrentar o que nos tornamos enquanto adultos — para que elas não precisem carregar, tão cedo, os pesos que são nossos.

Porque, no fim das contas, o que está em jogo não é apenas a infância das crianças, mas a nossa própria capacidade de sonhar e construir um mundo diferente.