Ela não gostava de ler. Lia o que era exigido na aula e com perfeição (ou satisfatoriamente, penso eu, já que nunca havia sido chamada à escola para conversar com sua professora). Gostava de visitar sebos, entusiasmava-se ao olhar os livros da prateleira, pedia que os comprasse para ler. Mas era tudo fogo de palha. Simplesmente não os lia e ponto. Eu já havia desistido de indicar livros dos quais eu (ingenuamente) achasse que ela poderia gostar e já aceitava a ironia de ser professora de letras/literatura e não ter conseguido atiçar o gosto pela leitura na própria filha. Mas quem era eu na fila do pão ou da livraria a essa altura?
Há um tempo eu lia muitas coisas, para o trabalho, para o planejamento de um curso, de uma aula, de uma apresentação, para a disciplina do curso x, especialização y, mestrado z e qualquer outra necessidade impreterível. E assim muitas listas de leitura para quando eu tivesse um tempinho eram mentalmente criadas e esquecidas na correria da rotina. Até que chegou um momento em que eu não sabia mais o que gostava ou queria ler, apenas o que precisava ser lido.
Vivendo uma crise particular da leitura, percebi que era necessário resgatar esse hábito. Os livros dos quais me recordava com uma memória prazerosa reforçavam o lapso temporal de uma leitura verdadeiramente desejada daquelas impulsionadas mais pela necessidade ou obrigação (ainda que muitas tenham sido prazerosas). A questão é que sentia falta de me surpreender lendo livros que não estavam previstos em nenhum roteiro (talvez por isso certa resistência a grupos de leitura).
Uma das coisas que sempre me atraíram na leitura do texto literário é esse encontro pessoal, sem hora marcada, sem cobranças, sem prazos, que se assemelha a viajar sozinha, sem necessidade de avisar ninguém sobre o destino ou mudanças no trajeto. Como alguém que embarca em um trem, em um navio, em um ônibus, em uma trilha por terra, e segue sem muita certeza e controle do que vai encontrar pela frente. Num mundo saturado de resenha para tudo, como alguém que viaja sozinho gosto de ser surpreendida pelo que me aguarda na leitura.
Foi nesse tempo que, apesar das correntezas da rotina, do trabalho, embarquei em algumas viagens que iniciaram o resgate da leitora que havia se perdido. Kindred: laços de sangue, de Octavia Butler, foi uma dessas jornadas de experiências de leitura que contribuíram para o resgate. Aquele tipo de leitura que desejamos e tememos o fim da última página, pois já antevemos o desolamento em que ficamos ao terminá-la.
Outros caminhos percorridos levaram à tetralogia napolitana de Elena Ferrante, à Visita cruel do tempo, de Jennifer Egan, à leitura de O sol é para todos, de Harper Lee, para citar universos muito diversos. Assim, fui aos poucos me reconectando com leituras que dialogavam comigo, experimentando aquela sensação que é única para cada leitor, que pode ou não acontecer com esse ou aquele livro e que raramente é garantida por título, prêmio, indicação ou resenha, mas depende da relação entre leitor e o texto.
Ao passo que o que chamei de uma crise particular da leitura diminuía, a habitual sensação de culpa materna retornava arrastada pelo peso da avalanche de disciplinas cursadas, estudos, artigos e livros lidos, além dos projetos de pesquisa realizados na área de leitura e literatura. Caso não tenha ficado claro, até aqui, estamos falando não apenas de uma mãe, mas de uma profissional das letras, da língua portuguesa e da educação.
Foi nesse contexto que faço aquilo que toda mãe (e/ou professora) consciente e antenada nos estudos e pesquisas sobre a educação de seus filhos (ou alunos), rechaça com firmeza. No entanto, cedo ou tarde, seja por infelicidade, cansaço, impulso, traço cultural, ou seja lá o que for, acaba cometendo em algum momento – de crise – ou não: uma comparação.
Eis que, numa noite, digo à minha filha que ela precisava ser uma leitora, pois a filha de um conhecido, muito mais nova do que ela, havia lido A revolução dos bichos numa versão em história em quadrinhos, assim como lia muitos outros livros avançados para sua idade. Como escreveu Alberto Caeiro1, “Há, não comparemos coisa nenhuma; olhemos [...] Comparar uma coisa com outra é esquecer essa coisa”. No entanto as palavras já haviam tomado lugar no mundo, mas para minha surpresa o efeito delas soou como um desafio. Na mesma noite, a menina leu de uma sentada o texto de Orwell que havia em minha estante. E o mais legal dessa história: ela gostou! A semente de uma leitora finalmente havia germinado, no seu tempo particular.
A partir disso, não era mais eu insistindo para que lesse, mas ela narrando entusiasmada o que encontrava nos livros que ela mesma decidia ler. Foi assim que me contou espontaneamente suas impressões sobre Cai o pano, de Agatha Christie, O jardim secreto, de Frances Hodgson, sobre alguns livros que iniciou, mas acabou desistindo no percurso, até chegar ao Universo de Harry Potter e mais tarde ao de Percy Jackson.
Aos poucos realizamos algumas trocas, sem cobranças, comentei sobre livros dos quais eu gostava e propus a ela a leitura. Com 12 anos, ela então leu Vidas Secas, de Graciliano Ramos, entendeu o enredo geral da história, pontuou a dificuldade da linguagem e achou triste a sina de Baleia. Depois, lançamos um desafio uma à outra. Ela leria o primeiro livro que li na graduação, A metamorfose, de Franz Kafka2, a partir do qual se abriu um horizonte de outras leituras para mim, enquanto eu iniciaria a leitura da série de Percy Jackson e os Olimpianos e, em seguida, a de Harry Potter.
Foi assim que me vi numa cena bonita numa manhã nublada, diante do mar. A trilha era feita pelo barulho das ondas e do vento frio, imbuído da chuva fina que arrepiava os pelos das partes do corpo descobertas pelo guarda-sol. Ela lia os últimos momentos de Gregor Samsa, com um misto de indignação e perplexidade sobre o desfecho da história, o destino do protagonista e o comportamento dos demais personagens.
Lembrei-me da sensação que tive ao ler o livro pela primeira vez e mais tarde quando escrevi sobre ele para o trabalho de conclusão do curso, naquela época com ela já dentro da barriga. O vento frio e chuvoso que assoprava junto à leitura da última página ampliava não apenas o desconforto físico, mas também o estranhamento que sentimos na leitura de A metamorfose. Lembro de haver terminado a leitura do texto de Kafka com uma sensação desoladora, que posso descrever como o próprio narrador relata em uma passagem do texto: “Não se ouviu a porta bater de volta; sem dúvida deixaram-na aberta, como costuma acontecer nas casas em que aconteceu uma grande desgraça”.
Lá estava eu novamente, 12 anos depois, ouvindo a história de Gregor Samsa, lida pelo ser gerado dentro de mim. Não pude deixar de pensar numa metáfora de casulo, na metamorfose da maternidade, mas também nas transformações do leitor a cada leitura. Enfim, ela se transformara numa leitora que sentia e se conectava com o texto, enquanto eu me tornava outra. Agora, “'Respirava com mais liberdade” (Kafka), a liberdade de ler o que bem desejar.
Notas
1 Pessoa, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Ática, 2013.
2 Kafka, Franz. A metamorfose. Edição em português, 1915.