Por mais que a morte de um Papa seja um fato esperado no curso natural da vida, a recente partida de Francisco deixou o mundo em um comovido e reflexivo silêncio. Jorge Mário Bergoglio, o jesuíta argentino que adotou o nome de Francisco em 2013, foi mais do que o primeiro Papa sul-americano. Ele foi um sinal de que os tempos estavam mudando e que a Igreja, mesmo que tardiamente, percebeu que precisava se aproximar do mundo real, de suas dores, desigualdades e demandas. Um tempo que clama por empatia, por simplicidade, por uma Igreja de portas abertas para todos. Bergoglio, ao ser o primeiro Papa a escolher o nome inspirado em São Francisco de Assis, sinalizou uma linha de conduta e assumiu um projeto espiritual e político que moldaria toda a sua atuação à frente da Igreja Católica.
São Francisco de Assis, nasceu na Itália do século XII e personificou uma das maiores revoluções espirituais da história cristã. Filho de um rico comerciante, abandonou tudo para viver entre os pobres. Amou a natureza e todas as suas criaturas, vivenciando radicalmente o Evangelho. Seu gesto de beijar um leproso, sua pregação aos pássaros e sua recusa ao poder e às ambições eclesiásticas quase o tornaram um herege pela Igreja.
Francisco de Assis foi um homem revolucionário. Pregava o Novo em um tempo em que a Tradição era o valor essencial. O Cristianismo de sua época era carregado por imagens do Diabo, do pecado, das penitências, dos castigos, da tristeza. Francisco apresentou um Cristianismo alegre, leve, humano, solidário, piedoso, baseado no amor, na igualdade e em Deus presente em todas as coisas e seres por Ele criados. É reconhecido como um ícone atemporal da humildade, do acolhimento a todos indiscriminadamente, da paz e da defesa dos mais necessitados.
Inspirado por esse exemplo, o Papa Francisco escolheu também os caminhos da periferia e, desde seus primeiros gestos, encarnou a espiritualidade franciscana. Recusou os trajes de ouro, escolheu a hospedaria simples em vez do Palácio Apostólico, lavou os pés de refugiados muçulmanos. Pregou uma Igreja mais próxima dos verdadeiros valores cristãos e mais distante do reacionário tribunal moral. Lutou contra o clericalismo, denunciou o capitalismo selvagem, defendeu os migrantes, o meio ambiente, as mulheres, os povos originários. Levantou pautas e valores gravemente ameaçados nos dias atuais e, por isso, foi atacado em vida e após a sua morte.
A extrema direita fez de Francisco um inimigo simbólico. Nas redes sociais, circularam absurdos que tentavam pintá-lo como Comunista. Entretanto, teorias delirantes não se sustentam ao serem confrontadas com os Evangelhos e com a autêntica prática cristã dos dois Franciscos que simplesmente seguiram à risca os ensinamentos de Jesus: amar o próximo, dividir o pão, acolher o estrangeiro e os discriminados pelo preconceito da sociedade, cuidar dos pobres. Se esses valores estão mais próximos da Esquerda Progressista, isso não tornou o Papa Francisco um Comunista.
É curioso e revelador que justamente aqueles que mais se autoproclamam “defensores da fé cristã” sejam os que mais distorcem seu conteúdo. Promovem o ódio contra minorias e migrantes, fazem discursos que estimulam a violência, espalham falsidades com desenvoltura, sustentam sistemas de concentração de renda e exclusão social, e chamam de “defesa da família” o preconceito disfarçado e até explícito.
Nesse contexto polarizado, a morte do Papa Francisco deixou um receio de retrocessos. A eleição de um Papa norte-americano despertou curiosidade e, para muitos, o temor de alinhamento com Donald Trump e tudo que ele representa. Mas, na medida em que sua biografia e seus pensamentos foram sendo divulgados, a esperança renasceu. O norte-americano é também um cidadão peruano e viveu na América Latina, entre os mais necessitados, grande parte de sua vida missionária. Em seu primeiro discurso como Papa não utlizou sua língua materna e sim o Espanhol.
O cardeal Robert Francis Prevost, agora Papa Leão XIV, escolheu um nome carregado de significados históricos. O último Papa com esse nome, Leão XIII (1878–1903), foi inovador em seu tempo e procurou conciliar a tradição da Igreja com a dura realidade vivida pelos fiéis. Foi o grande articulador da Doutrina Social da Igreja. Em sua Encíclica Rerum Novarum (1891), defendeu a dignidade do trabalho, a Justiça Social e os direitos dos trabalhadores baseados na justiça e na equidade.
Mas a escolha do nome Leão é significativa não só pela referência a esse passado transformador, mas também pelo momento em que vivemos. O novo Papa vem da mesma nação que hoje abriga uma das figuras políticas mais controversas do mundo: o presidente Donald Trump. O contraste entre o espírito pastoral e progressista de Francisco e o nacionalismo agressivo e preconceituoso de Trump foi marcante nos últimos anos. Agora, com um Papa norte-americano no trono de Pedro, o mundo se pergunta: será ele uma voz que conseguirá frear os delírios autoritários da Direita em seu país de origem? Leão XIV poderá ser um antídoto espiritual contra os extremismos que voltaram a assombrar a Democracia e a Paz no mundo e no Brasil?
É cedo para saber, mas os sinais são promissores. Leão XIV parece assumir a missão de continuar o legado de Francisco. Já demonstrou usar outra linguagem, talvez com maior firmeza doutrinária, mas sem recuar na essência: a defesa dos pobres, dos discriminados, do diálogo, da paz.
De Francisco herdamos a ternura, o abraço às periferias, a coragem de ser simples e abrir à Igreja aos novos tempos. De Leão esperamos a continuidade dessa árdua missão de seu antecessor, além da firmeza e do combate sereno aos valores sombrios do presente: o consumismo, o populismo, o negacionismo, o preconceito, o falso moralismo, o individualismo e a indiferença às necessidades humanas.
Esperamos que a transição entre esses dois papados não seja marcada pela ruptura, mas pela continuidade dinâmica. Em tempos de guerra, desinformação e medo, a figura do Papa ainda permanece como uma das poucas referências morais globais capazes de tocar corações além das fronteiras da fé e das religiões. Portanto, que os dois Franciscos inspirem Leão XIV em sua jornada.