A mesma vontade, o mesmo desassossego, a mesma ilusão de sempre. Há dias em que sou dado a princípios, objectivos, comissões e instrumentos protocolares, como os políticos. Noutros, enrijeço nos costumes, cinzento, cheio de dúvidas e interrogações, a pensar que o mundo foi capturado pelo longo braço neoliberal, ensinando as pessoas na arte de não ver. E concordava, nesses momentos, com o meu vizinho — sisudo, mas pensativo, recto na acção, a fingir uma frieza que nunca lhe pertencera, homem de ombros quadrados, olhar baixo, como se o peso da vida lhe tivesse sido entregue sem manual de instruções.

Nesses dias, gosto de trabalhar sobre a percepção que as pessoas têm hoje do que se passou há trinta ou quarenta anos: o seu processo de rememoração, o modo como a memória se transmite, importando, acima de tudo, a condição da sua subjectividade. Cada um guarda um arquivo desordenado dentro da cabeça, papéis amarelados por onde se revê o que nunca aconteceu bem assim.

Procuro então um lugar calmo para tomar apontamentos desta crónica. Encontro uma esplanada nas traseiras da Gulbenkian, um largo com sombra, sujo, algumas lojas fechadas pela falência, mas com o silêncio suficiente para escrever. Sento-me, peço café, saco da caneta e do bloco de notas.

A esplanada chama-se Tea and Lounge qualquer coisa, decrépita, com a casa de banho em estado lastimoso: torneiras soltas, restos de papel espalhados pelo chão, um urinol tapado com saco preto e um papel agrafado a dizer "avariado". O empregado serve-me com uma pressa ensaiada, como quem já desistiu de sorrir, e desaparece atrás do balcão a olhar para o telemóvel. No espaço de uma hora, que é quanto já levo aqui, ainda não vi ninguém entrar na papelaria Ponta Fina. Estranho nome para papelaria, hoje em dia: quase ninguém escreve à mão, muito menos à caneta, pouco se importando com a ponta da Bic. O nome permite, até, sentidos eróticos involuntários.

Ao meu lado, uma mulher vinda do cruzamento da frente caminha apressada, pára de repente, murmura qualquer coisa durante uns minutos e retoma a marcha. Demoro um pouco a perceber: parava apenas para contar os passos seguintes.

Ao lado da papelaria, uma loja de pronto-a-vestir exibe montras anémicas, cartazes de descontos entre 30 e 50 por cento. O dono, derrotado, permanece sentado no degrau da entrada. Depois passam turistas, indiferentes, e uns espécimes engraçados de classe média: ténis de marca, meias curtas a combinar com a t-shirt do crocodilo, óculos escuros, corpo direito, passo estugado. Bebem sumos naturais, preferencialmente detox, como se pudessem purificar o fígado ou a vida inteira.

Surgem também desportistas de fim-de-semana, equipados a rigor, fatos fluorescentes, bicicletas caras, a treinar — sem saberem que talvez o destino lhes reserve apenas um cancro da próstata, por excesso de esforço. E de repente ponho-me a pensar nas personagens, que revi recentemente no funeral do pai de um amigo. Gente de pouca instrução, uma vida inteira dedicada às coisas básicas.

A Joaquina Rodrigues tinha um sobrinho de quem gostava muito: esforçado, estudava e trabalhava num posto de combustíveis, acabou o curso, conseguiu entrar para um banco. Morreu três meses depois, com um cancro no estômago. Ela, entretanto, engordara e deixara estragar os dentes, as pernas ligadas até ao joelho por causa das varizes, obrigada a andar de chinelos de enfiar o dedo. Os óculos eram grossos, fundos de garrafa, a precisar de novas dioptrias. O marido fora motorista de pesados nas obras; o último patrão ficara a dever-lhe oito meses de ordenados.

A filha casara com um pedreiro que, ao cair de um escadote, partira o pulso. Estava de baixa, fazia fisioterapia em casa com as próprias ferramentas de trabalho, a simular pesos. Outro irmão perdera parte dos dedos da mão direita, em criança, quando foi apanhar canas de foguetes que não tinham rebentado totalmente.

E vinha-me também à memória a mãe desse amigo: deitada no sofá, óculos na ponta do nariz, pernas estendidas displicentemente, a ler um romance folhetinesco, sempre pronta a largar tudo para acudir a qualquer chamado dos filhos. Recordava a maneira como desistiu de viver quando percebeu o diagnóstico. A médica palpou-lhe as axilas, sentiu os gânglios salientes. Cancro. Em quinze dias deixou de comer, de tomar medicação, de lutar. Foi-se assim: muito fraca, sem resistência, como se já tivesse decidido partir.

Acabo a pensar que a memória, por vezes, traz chão apenas para pior. E, para me proteger, trauteio músicas. Sempre tive bom ouvido, mas péssimo conhecimento musical. Gostava do Peer Gynt, de Grieg, e andava sempre a cantarolar: Tanana na na na na na, tanana na na na na na naaaaa.

E percebo que talvez seja isso a memória: um refrão mal aprendido, repetido sem saber porquê, mas que insiste em voltar. Um eco imperfeito, uma sombra que se cola ao corpo mesmo quando já não há luz.