Mal nascemos temos direito a um certificado de existência! E logo depois impingem-nos uma série de vacinas mas esquecem-se de nos vacinar contra os Papeis! E mais papel daqui, mais papel dali até limpamos os nossos preciosos lábios a guardanapos de papel! E tem mais, os nossos vírus mais preciosos podem circular da nossa língua para os selos da nossa preciosa correspondência! Cartas, postais, cartões de visita...Somos mais uma vez nós, estampados em pedacinhos de papel colorido! Facturando emoções, sorrisos e angústias!
O papel é cúmplice dos nossos gestos mais íntimos e é o carrasco dos nossos sonhos mais altos! É que as notas voam sem deixar rasto; saltitam das nossas mãos para outras, incógnitas: é o Fado do dinheiro! Porém, também o nosso Fado é timbrado a papel:
Baptizamos de papel passado.
Casamos de papel passado.
Divorciamos de papel passado.
Morremos de papel passado.
Resumindo e concluindo, fazemos e desfazemos com papeis, mais ou menos honrados, lacrados, selados, perfumados, lacrimejados! Até confidente pode tornar-se o papel! Basta fazermos de um caderno o nosso Diário Perfeito ou Testamento mais certeiro.
Com o papel podemos dar a volta ao mundo, em forma de bilhetes de avião, e TGV num segundo! É o papel mágico que nos faz tomar o pequeno-almoço em Paris e o jantar romanticamente em Veneza. Mas atenção que o papel pode multar as nossas fraquezas ou pelo contrário surpreender-nos com um Jackpot de última hora!
Ser Artista! Surpreender o papel em branco!
Fazer arte é fazer o fantástico, o nunca claramente visto, o encoberto, o impossível. Assim acontece a arte e os artistas.
Desenhem árvores nunca vistas, aviões com outras formas, muitas e desvairadas nuvens e escrevam aquilo que nunca pensaram poder escrever! O inconfessável é matéria prima de arte!
Sonhem com casas diferentes, de materiais diferentes. Façam flores de pedra e de música e um jardim de pétalas de algodão doce!
Abram auto-estradas do imaginário com imagens transcendentes do corpo humano e o automóvel passará a ser diferente. Trinquem a metamorfose com os lábios do desejo transformado e transformador e os híbridos vão acontecer!
Somos todos primeiras edições, raras, rabiscadas por outros, lidos por outros tantos...somos valiosos e únicos, livros abertos, por vezes com encadernações de luxo...somos selos simbólicos no envelope da História!
Mas também somos prefaciadores de muitas vidas; introduzimo-nos nelas, ora como um penso rápido, ora como cicatriz na alma...depende do nosso esforço emocional.
É que o mais importante na gramática da Vida é o complemento indirecto! Porquê? Porque são as pessoas, a Pessoa Tu que vai partilhar conosco alguma coisa, vai fazer, vai beijar, vai agir de algum modo com a Pessoa Eu!
E os bilhetinhos surgem, as cartas, os postais no meio de um livro!
Naquele instante mágico em que tiramos o livro da prateleira da livraria ou da biblioteca ou da estante lá de casa, ora porque o título nos seduziu, ora porque revisitamos uma memória preciosa, ora porque ele chamou por nós de algum modo, nós, leitores, começamos, de imediato a criar imagens, e portanto, a ilustrá-lo!
Pergunto-me se os livros têm respiração própria? Se as personagens se sentem sepultadas em vida?
Entre páginas e páginas comprimidas… se renascem sempre que cada um de nós, leitor, abre esse livro? Se assim for, o leitor é um deus, tem o poder de dar vida e de matar personagens; tal como o escritor que as faz nascer quando as nomeia ou as mata, quando põe um ponto final na história pessoal delas!
Maravilhoso.
Adoro esta metáfora de papel.
Cada obra é uma variação imaginativa sobre o tempo; é uma viagem nesse tempo.
A história de uma personagem, em analogia com a nossa própria história, é pautada pelo tempo do mundo mas é vivida temporalmente por cada um e nesse tempo real, fórmulas linguísticas como “conta-me a tua história”; “Isso são histórias!”; “É sempre a mesma história!”.
Fazem parte do nosso quotidiano fazendo-nos consciencializar a importância das narrativas no nosso mundo. Não só das narrativas mas da função da ficção; vejamos o que diz Ricoeur a este respeito:
A função da ficção é (…) indivisivelmente reveladora e transformadora em relação à prática quotidiana; reveladora no sentido em que traz à luz traços dissimulados, mas já desenhados no coração da nossa experiência práxica; transformadora, neste sentido de uma vida, assim examinada, é uma vida mudada, uma vida outra. Atingimos aqui o ponto em que descobrir e inventar são indiscerníveis
(Ricoeur 1985: 229)
A construção de um mundo fictício, imaginário, visa proporcionar a distância necessária à revelação e transformação da nossa vivência quotidiana.
O entrecruzamento entre o mundo da obra e o mundo do leitor amplia a subjectividade deste último e enriquece-o nos domínios capitais da sua relação com a realidade.
Se virmos bem, em parte somos de carne e osso, todavia parte de nós fica na História através do papel. Aí somos tal qual as árvores: morremos de pé!!!