Fui dar uma volta, era cedo, tão cedo que o próprio dia dormia. Quis sair do meu canto sem que ninguém me visse, antes do próprio mundo abrir o olho ramelento. Saí, e caminhei, pela estrada de chão vermelho. A pouco e pouco, cada passada coloria a minha parca memória cinzenta. Deparei-me que os buracos da minha infância ainda estavam esburacados; pouca coisa do meu tempo perdurava, mas ali estavam as cicatrizes do mundo. Tão envelhecidas quanto eu.

“Envelhecemos no tempo”, converso com o vento.

Só eu caminho nesta estrada, a avenida da vida. Das árvores secas de Inverno às primeiras brotas da Primavera, tudo um ciclo, menos eu, a única excepção: um ciclo sem volta. Caminho enquanto observo os meus pés, esquerdo e direito, numa marcha síncrona e automática que me fazem andar em frente desconhecendo o destino. Desconheço-o tanto quanto a estrada, que de tanto ser caminhada se tornou esquecida. Lembro-me de nada; deslembrando uma outra vida por onde caminhava para ir descobrir o mundo.

Como me lembro dos meus amigos de escola; como me sentia dessincronizado por esses meus pares que cresciam enquanto eu mingava. “Justino, tu tens que acompanhar os teus colegas porque senão ficas para trás!”, ri-me dessa voz que brotou dos recantos apagados da minha memória. Olho em volta e encontro a escola primária, a minha, onde eu também estudei. Era ela que me falava, o próprio edifício.

“O caminho era curto da minha casa à escola, ou será que andei muito?”, até a distância o tempo apaga.

Parado, observei religiosamente aquele edifício, era mais pequena do que me lembrava, mas continuava alta, imponente, enquanto escutava as vozes agudas de brincadeiras infantis.

O recreio era sempre o recreio, independente e livre, numa juventude onde não se conta o tempo. As crianças são sempre crianças. A brincadeira é sempre brincadeira. Por isso aquela escola permanecia na sua imponente e rejuvenescida estrutura atravessando o tempo.

Dei-me conta que observava aquelas vidas, aquela instituição que ensina sobre a vida - absorto do resto, lembrava-me dos meus movimentos e das minhas brincadeiras repetidas por aquelas gentes iguais ao meu tempo. Cada criança, com todas as cores do barro, se parecia comigo. O meu, aquele mesmo barro, enrijecido pela vida. Pela morte. Pela infinidade do tempo.

“Perdi a luz, talvez mesmo o caminho.”

As crianças aproximavam-se das grades e olhavam-me, eu continuava imóvel com o olhar fixo num infinito descontinuado. O cheiro, as árvores, o chão, a madeira, os sons, tudo de um tempo ultrapassado. “Justino?” Olhava as paredes com falhas de tinta, o esqueleto à mostra, as telhas musgadas, o tempo. “Justino?” Olhava as minhas costelas enaltecidas, o meu esqueleto, o meu cabelo escasso, o meu tempo.

“Justino das Almas?”

Foi à terceira chamada que me deparei com uma senhora, cabelo grisalho, óculos de massa, bengala e cachimbo. Foi o fumo que me acordou. - Olá, professora. Estou aqui. Presente! – respondi automático a uma voz que nem a lembrança tinha memória, mas estava lá, perdida. “Justino ... meu querido aluno.”

Foi nessa ternura que compreendi quem tinha à minha frente: era a minha professora, a mesma, mesmo cheiro, mesmo andar, mesma voz, mesma pessoa – em carne e osso.

-Professora Ivone!, que bem que a vejo. Nada muda no seu tempo, n’é?

Os olhos dela olhavam-me. Molhavam-se em maré baixa de águas salgadas. As mesmas águas que molhavam os meus.

-Eu continuo a ensinar pequenas pessoas. Os anos não passam por mim, meu menino Justino, só as crianças.

-Bem vejo. E não há maior alegria, encontrá-la aqui. Vejo que das minhas memórias todas estas paredes são o seu corpo, todos os ensinamentos as suas respirações. Eu já estou kokwana, deixei que o tempo passasse por mim.

-Cá eu, meu menino, vejo apenas o teu olhar negro, a tua doçura, o que é teu. Nada desse corpo te pertence, isso tudo que envelhece é roupa, não é vida. Aí, continuas o menino que conheço - tinha a mão no meu peito.

Ela, aquela senhora, ensina. A sua sina é essa. Nada que ela não diga nos faz desaprender. Tudo nos faz pensar, tudo nos faz lembrar. Tudo nos faz desesquecer que nós somos todos da mesma cor do barro. Senhora Ivone, minha professora, profeta dos ensinamentos, continuo a escrever, no papel do meu chão, a mesma letra que me ensinou. Escrevo com toda a paciência que requer os meus pensamentos deambulados pelo (des)mundo meu.

A professora Ivone, não saía da área da escola, mesmo que o portão estivesse aberto. Aquela professora era a escola, a edificação educacional. Ela acertava os óculos, molhava os lábios, procurava estacionamento para as mãos, as pernas, finas e arqueadas, cobertas por uma saia comprida, um colar de crochet trançado, comprido; mas, aquele olhar, atravessador, olhava-me por dentro. Estava eu, nu, na minha pureza recém-nascida, aos olhos dela.

Ela sorria, convidativamente: - Vem cá! Entra, vou-te mostrar os teus colegas.

Eu entrei, sem pensar. O meu corpo curvado, as minhas mãos calejadas, o meu pouco cabelo, o meu pé descalço, era independente ao meu sentimento de criança que vivia aquele preciso momento. As pequenas pessoas seguiam- na para o interior do edifício, atropelando-se umas às outras, seguindo a rainha. Eu seguia atrás - igual a todas aquelas gentes.

O edifício era antigo, mas hirto; descascava, mas continha personalidade; as madeiras rangiam, mas com uma voz imponente. As escadas moldadas pelas pegadas do futuro. O corrimão amaciado por sedentos de conhecimento. Tudo aquilo era metade passado, metade futuro. Eu, olhava em redor, revia os meus olhares infantis. Os meus sonhos e os meus desconhecimentos.

Ao cimo, no primeiro andar, na porta grande, verde e gasta, à esquerda: a sala. Chão de madeira, ao fundo alguns armários, à direita as janelas, o cheiro do giz entranhado no tempo.

-Minhas pequenas pessoas, hoje vos trago um colega novo.

Os olhos esbugalhados e curiosos encaravam-me. Deixavam-me bem do avesso – como o meu primeiro dia de escola.

-O nome dele é Justino e ele vai contar-vos uma história.

(um breve silêncio curioso)

Um dia, Justino, eu, estudei nesta escola, nada no tempo mudou a não ser em mim. Poderia ter sido tudo e acabei sendo eu, apenas. Vivi distante do mundo, perto do meu pai, ajudando-o como sabia e como ia aprendendo, como me ia ensinando. O meu pai era coveiro.

-Coveiro?

-O que é coveiro? – falavam entre eles.

-Coveiro enterra as pessoas. – respondeu-lhe o outro ao lado.

-O teu pai era coveiro?

-Sim, continuei, O meu pai era o último a dizer adeus às pessoas antes de as semear.

-As pessoas não se semeiam, não são plantas.

-As pessoas são histórias e como as plantas, também florescem. O meu pai ensinou-me a ouvir estas histórias, a ouvi-los. Ensinou-me que nós somos os últimos mensageiros.

-Wow ... – todos eles em conjunto.

De repente, da pouca coragem, ou até mesmo da vergonha da minha história, comecei a sentir-me respeitado - olhavam-me com toda a atenção como se mais nada existisse naquele mundo pequeno deles -, e a memória do meu pai de um olhar triste e cansado tornara-se num olhar iluminado de quem me passava um testemunho.

A professora Ivone encontrou-me no meu olhar perdido – a sabedoria dela sabia que a procurava -, piscou-me o olho, dando-me assim a coragem de prosseguir.

Aquelas crianças admiravam-me. Eu, logo eu, um esquecido amigo dos esquecidos.

Continuei: assim saí da escola, porque o meu pai precisava de mim para semear as gentes que partiam.

-Então ... saíste da escola para mandar mensagens às pessoas que morriam? – interrompiam-me. - Ri-me com o comentário.

-Ele não manda mensagens, pá. Ele fala com os mortos.

O meu pai ficou muito velho e não tinha mais forças para o fazer. Então, eu tive de abandonar a escola para o ajudar. Mas sabem o que aconteceu? – perguntei.

(um silêncio) Os olhos deles olhavam-me com as mil perguntas da infância, da descoberta.

Aprendi que eu conseguia falar com as pessoas que mais ninguém conseguia ouvir. Ali, na minha casa, envelheci com elas, mas aprendi muitas coisas.

-Professora, professora?

-Deixem o Justino acabar.

A professora Ivone ensina-vos algo todos os dias, não é? Eu, aprendo com outros professores. Todos os que semeava, brotavam com conhecimentos e histórias de outros locais, de outras terras. E sabem o que aprendi?

(outro silêncio de olhos atentos e esbugalhados)

Aprendi que nunca vamos deixar de aprender. Quando choramos pelas pessoas, quando sentimos saudades, quando sonhamos com elas, ou nos lembramos dessas pessoas, eles continuam vivendo. Somos nós que os mantemos vivos.

O meu pai ensinou-me que semear é poder manter as histórias vivas. Aprender é continuar a viver. Começar a viver. O saber não tem lugar. E eu sei de coisas esquecidas; de segredos escondidos, enterrados; de paixões e aventuras desconhecidas. Eu semeio quem parte, para florescer os segredos e todas estas histórias que aprendo.

-Professora, eu quero ser coveiro!

-Eu também.

-Também eu!

-És como um pirata de histórias! – riram-se todos.

A professora Ivone aproximou-se de mim, o sorriso dela era o mesmo de sempre, quando eu era tão ou mais pequeno que aquelas pequenas pessoas. Abraçou-me demoradamente, apertadamente, e sussurrou-me ao ouvido: Eu sempre acreditei em ti! Obrigado, meu menino dos caracóis.

Nesse dia voltei para casa, sentindo-me pequeno, menino, com toda uma vida pela frente. Visitar aquele meu passado, encontrar aquela minha professora, a minha escola e aperceber-me que, também eu, sou parede daquele edifício: um edifício feito de barro, o mesmo que nós somos feitos.

Com esta sensação de visita ao meu passado, senti uma saudade física, um nome, um corpo, um cheiro. Cheguei a casa ainda sorrindo e reconheci imediatamente quem me chamava.

Visitei a campa do meu pai, o ukhule crescia, porque também esse amuleto fora semeado em conjunto com todos aqueles que continuam a contar as suas histórias.