Louis Rélleivaux mal acreditava em quão satisfatória havia sido aquela entrevista. De mais de uma fonte, ele já tinha ouvido que Eugène Hyndormais era uma pessoa bastante acessível, mas não imaginava que fosse tanto. Estava encantado em poder apresentar aquele projeto à editora e até, quem sabe, ser um escritor por ela publicado regularmente.
A volta para casa em seu Asbenark hatch seria cheia de pensamentos ao volante. Assim que entrou no carro, pareou a multimídia com o Spotify do celular, colocou La Vestale de Mercadante para ouvir (faltavam apenas algumas faixas até o final) e saiu do estacionamento da editora. Na primeira avenida, já se pôs a pensar.
E se eu fizer bastante sucesso com esse livro?… E se virasse até uma trilogia?… Uma tetralogia?… Ou uma série de livros?… Eu poderia comprar um apartamento maior, trocar de carro… Eu adoro este, mas um roadster não seria má ideia… Poderia também viajar um pouco, inclusive para me inspirar… E, claro, mandar um pouco mais de dinheiro para meus pais… E se este livro for um marco para a literatura lanesana?… Eu poderia ajudar ainda mais nos estudos lanesanos sobre Egiptologia, talvez?… E se…
As inúmeras hipóteses continuaram a passar por sua mente até a porta de seu apartamento, cerca de meia hora e várias ruas e avenidas depois. Apenas quando teve de procurar pela chave nos bolsos é que voltou ao presente – haviam ficado no carro. Passados quinze minutos, enfim entrava em casa.
Morava sozinho desde que se mudara de Lanesville, onde se formara. Trabalhava num emprego de meio período, para pagar as contas. Os pais e os irmãos haviam ficado na Capital, um tanto distante dali, mas planejava visitá-los novamente em breve. Solteiro, tinha apenas um gato, Pláton, que foi até seu tutor para recebê-lo.
O apartamento, um quarto e sala (C1, segundo a tipologia do reino) no quinto andar de um prédio não muito afastado do Centro, era mais do que suficiente para alguém que viva só – ou melhor, apenas com um animal de estimação. Era bem iluminado e o quarto era grande o suficiente para montar um pequeno escritório, onde costumava escrever. Sobre a bancada, um PC de mesa (não gostava de notebooks) e alguns livros que estava lendo no momento – dois romances policiais (um de Agatha Christie e outro de Philippe Duroy), a Poética, de Aristóteles, e Relendo Hugo, de Edgard Vicarty.
Depois de afagar seu gato, guardar a carteira e colocar o celular para carregar, sentou-se à bancada e começou a listar tudo de que precisaria para começar a escrever, especialmente as pesquisas que teria de fazer a partir da semana seguinte. Já estava se preparando para várias horas na Bibliothèque Royale, então entrou no catálogo on-line para reservar alguns dos livros que utilizaria, como os de Egiptologia.
Terminadas a pesquisa e a reserva, pediu alguma coisa leve para jantar. Quarenta minutos depois, já havia recebido o pedido e estava à mesa, comendo – até decidiu abrir um vinho, para “comemorar”. Quando terminou, lembrou-se de uma panna cotta com geleia de mirtilo que estava na geladeira. Como era um dia mais do que especial, deliciou-se com a sobremesa.
A sonolência chegou em meia hora. Pegou Pláton no colo e o deixou na cama. Feita sua higiene pessoal, deitou-se com o gato aninhado a seu lado. Com um sorriso no rosto, pensando no desenrolar daquela proposta, enfim dormiu.
A manhã seguinte passou como sempre: desjejum rápido, trabalho num bistrot próximo e, depois do almoço, a volta para casa. A tarde, porém, seria mais trabalhosa – mas de uma forma diferente e até “esperançosa”.
Decidiu ir de metrô à biblioteca. Seriam poucas estações até seu destino, sem a necessidade de baldeação. Quando chegou, sentiu-se como se estivesse no início de uma aventura, uma jornada, algo quase mágico.
Construída no final do século XVIII, a Bibliothèque Royale de Dunquerqueville é um verdadeiro templo à cultura e ao saber. Segue o padrão arquitetônico criado em 1756 durante o reinado (1750-1792) de Philippe II, com a planta em cruz simétrica e fachada neoclássica – lembrando muito o Panthéon de Paris, por também ter sido projetada por Jacques-Germain Soufflot. Localizada na parte norte da Place des Arts, a biblioteca ocupa um espaço imenso e abriga o maior acervo do reino – maior até que o da Bibliothèque Royale de Lanesville. No alto, entre as imensas colunas da entrada, está o brasão dos Lanes-Dunquerque, a Família Real, dando suas boas-vindas a quem quer que deseje adentrar.
Louis passou alguns instantes observando a beleza daquele prédio histórico, cuja revitalização terminara pouco antes da pandemia. Subia as escadarias percebendo alguns detalhes que lhe pareciam novos. Ao chegar à porta automática principal, respirou fundo e entrou assim que ela se abriu.
O interior da monumental construção convidou-o novamente à observação e à admiração. O teto muito alto e a imensa cúpula central eram verdadeiras obras de arte deixadas por Soufflot. Posteriormente, o projeto seria encabeçado pelo arquiteto terrano Gérard Rytonny, que continuaria as propostas do francês e tornaria ainda mais grandiosa a obra final.
O rapaz se aproximou do balcão central de atendimento e, após ter mostrado sua carteira da biblioteca, pediu os livros que havia reservado. Como alguns deles não poderiam ser emprestados, a simpática atendente levou-o até um dos grandes gabinetes de leitura, onde ele poderia ficar à vontade para consultá-los. Quando fosse sair, poderia levar consigo os demais exemplares que reservara.
E assim foi: sentou-se numa confortável cadeira com alguns volumes da Grande Encyclopédie Lanesane em mãos – naquele momento, os que tratavam de Egiptologia. É bem verdade que havia as versões on-line, mas Louis, apesar da pouca idade, tinha o gosto pela consulta em livros físicos, herdado dos avós – fôra, inclusive, um dos motivos para ter se tornado escritor.
O tempo passou rápido: já eram quase duas horas de pesquisas. Havia levado seu tablet e fazia várias anotações no bloco de notas do aparelho – até alguns hieróglifos se arriscara a copiar. Estava tão concentrado que não percebeu a aproximação de um recém-chegado, que comentou:
—Parece que alguém decidiu mergulhar fundo na Egiptologia hoje!
Com um leve susto, o rapaz se voltou para quem fizera o comentário.
—É verdade! – e, ao ver de quem se tratava, teve uma grata surpresa: era ninguém menos que o Prof. Dr. Hakeem al-Najib, o famoso egiptólogo, arqueólogo e professor universitário terrano de origem egípcia.
Alto, com porte elegante e os traços bastante típicos da região onde seus pais nasceram, o Prof. Al-Najib aparentava ter bem menos que os quase oitenta anos de idade. Apesar de já aposentado, continuava dando algumas aulas e orientando poucos alunos na Université de Dunquerqueville, tendo entrado num programa do governo que privilegia alguns profissionais – professores, artistas e cientistas, por exemplo –, com um incentivo àqueles que desejem continuar contribuindo com a sociedade.
—Acho que conheço o senhor, monsieur…?
—Rélleivaux, Louis Rélleivaux. Fiz duas matérias suas na faculdade.
—Sempre me lembro de um rosto, mas já nem sempre dos nomes… – sorriu do próprio gracejo – Então decidiu continuar os estudos de Egiptologia?
—Sim! Não só pelo fascínio que o Egito sempre me causou, principalmente depois de ter estado lá, mas por causa de um projeto literário de que estou participando. Ou melhor, que estou iniciando. Na verdade, ambos, talvez… Não sei se posso falar muito a respeito, mas acredito que não haja problema. Inclusive, seria ótimo poder entrevistar alguém da área! O senhor estaria disponível e disposto, Prof. Al-Najib?
—Claro! É um prazer poder ajudar jovens interessados nessa cultura tão rica. – consultou a hora em um smartwatch, o que contrastava enormemente com sua figura quase antiga (Louis pensou que ele ainda teria um elegante relógio de bolso) – São quase quatro horas. Aceita um café para conversarmos mais a respeito? Por minha conta.
—Aceito – e fico lisonjeado! – o rapaz recolheu os volumes e os devolveu à atendente, dizendo que pegaria os demais livros reservados na saída. O Prof. Al-Najib o acompanhou e foram em seguida ao café da biblioteca, localizado num jardim interno da construção.
Quando se sentaram, o professor percebeu que Louis demorava a escolher, talvez um pouco constrangido. Então falou, com voz serena:
—Como eu disse, é meu convidado. Fique à vontade para escolher.
O rapaz sorriu e agradeceu. Acabou pedindo apenas um café-crème e um croissant. O professor escolheu um espresso duplo e um blansaïme, doce típico terrano.
—Conte-me mais sobre esse projeto, por favor. O que puder, claro.
Louis foi se empolgando aos poucos e contou os detalhes que achou necessários, sobre a entrevista com Eugène Hyndormais e seu projeto de um mundo a partir da influência cultural do Egito, e não de Grécia e Roma.
O professor ouvia a tudo com interesse sincero, bebericando seu café e reagindo com expressões de aprovação nos momentos certos. Quando Louis terminou sua explanação e perguntou o que seu interlocutor achava, houve uma pausa, até que o Prof. Al-Najib se manifestou:
—Achei muitíssimo interessante seu projeto, sem sombra de dúvida! Será um trabalho que pedirá muito empenho e também muita imaginação, mas, pelo que está me dizendo – e, principalmente, como está me dizendo –,é bastante claro que o senhor chegará a ótimos resultados. Tanto é que vou enviar ao seu endereço minha trilogia sobre o Egito, já esgotada há algum tempo, acerca dos mais diversos assuntos – política, religião, artes, ciência etc.
O rapaz ficou muitíssimo satisfeito com a reação do professor, que demonstrava confirmar o caminho certo.
—O senhor entende que uma História paralela desse nível alteraria completamente o mundo, não. M. Rélleivaux? Não bastaria apenas criar situações com características egípcias (na arquitetura ou no vestir, por exemplo): as mudanças seriam muito mais profundas. A esta hora certamente não estaríamos conversando em francês – acredito que nem existiria, pelo menos não como o conhecemos –, mas em alguma língua que possivelmente usasse versões modernas de hieróglifos e viria do copta, não do latim ou do grego.
Louis parou por um momento: não havia pensado nisso. De fato, não adiantaria apenas "ocidentalizar" o Egito, com características estéticas e até nomes que remetessem àquele país em seu apogeu, mas teria de pensar em questões fundamentais, como os idiomas.
—Seriam muito diferentes as artes, as ciências… – continuou o professor – Talvez tivéssemos a Medicina, digamos, mais imbuída de conceitos próprios do Misticismo – e que seria o horror dos materialistas atuais! – riu do novo gracejo, desta vez acompanhado pelo rapaz, que se acalmara um pouco depois do “choque” de constatar o sem-número de alterações que seu projeto traria.
—Agradeço muitíssimo pelos seus comentários, Prof. Al-Najib! Eu realmente não havia pensado de forma tão profunda.
—Não há de quê! Tenho apenas uma sugestão: converse com mais alguns profissionais – linguistas, músicos etc. – e pergunte a eles como acham que poderia ser esse mundo alternativo. Acredito que terá ainda mais bases e fontes para continuar seu projeto, tornando-o cada vez mais verossímil. Mas dê a essas informações o seu estilo, sem cair em mero enciclopedismo.
Novamente agradeceu pelos conselhos preciosos do sábio professor. Depois que pediram a conta, Louis passou seu endereço e se despediram. Na saída, pegou os livros que havia reservado e achou melhor pedir um Uber para voltar para casa – desse modo evitaria o metrô mais cheio, por serem quase 18h00. Ainda assim, levou pouco mais de uma hora até seu apartamento, mas valeu a pena, depois de um dia tão proveitoso.
No dia seguinte, receberia de presente a trilogia prometida pelo Prof. Al-Najib, além de outro livro de sua autoria sobre o Egito, ambos com dedicatórias em letra elegante, parecida com a caligrafia árabe, que desejavam muito sucesso na empreitada.















