Apetece-me começar com uma questão provocatória: o que fraterniza obras tão diferentes como o livro de contos O Escorpião (2025), de José Viale Moutinho, o histórico Romance de Dom Dinis – El Rey Que (Nom) Fez Tudo Quanto Quis (2022; 2ª ed., 2025), de Natália Constâncio, e as pinturas O Casal Arnolfini (1434), de Jan van Eyck, Autorretrato (ou Auto-Retrato aos Vinte e Oito ou Autorretrato com Casaco de Pele, 1500), de Albrecht Dürer, As Meninas (1656), de Diego Velázquez, e Os Pastores da Arcádia/"Et in Arcadia Ego" (1837-38), de Nicolas Poussin?
A auto-inscrição autoral. Uma auto-inscrição onde a ficção se gera, génese da ficção, ou, parafraseando Marthe Robert, Romance das origens, origens do romance (1972).
Lembro por ordem cronológica as pinturas: Jan van Eyck inscreve no espelho por trás do casal a afirmação Johannes de Eyck fuit hic (Jan van Eyck esteve aqui), Albrecht Dürer representa-se entre um seu monograma e a legenda Albertus Durerus Noricus / ipsum me propriis sic effin / gebam coloribus aetatis / anno XXVIII (Assim eu, Albrecht Dürer de Nuremberg, me pintei com cores duradouras aos 28 anos), Diego Velázquez autorretrata-se a pintar As Meninas (1656) e Nicolas Poussin intitula o quadro de acordo com tumular inscrição enigmática Et in Arcadia Ego (1837-38) convocatória de outra a Dáfnis dedicada numa Arcádia descrita por Virgílio1, que, por sua vez, evoca cenários dos Idílios de Teócrito… etc.
Também os fraterniza a luz intensa que ilumina essa auto-inscrição, evidenciando-a, “alucinando-nos” com ela a leitura, percepção que é. Auto-inscrição datada e localizada na página e/ou na geografia.
Mas contrasta-os, à partida, dentre muitos aspectos: a imposição absolutizadora e exclusivista do artigo definido no título de Viale Moutinho e a suspensiva ausência de qualquer artigo no de Natália Constâncio. Ambos luminosos sinais que explorarei noutro lugar, mas que não resisto a referir desde já, uma vez que a realidade [ficcional] não é o que parece, de acordo com o título do físico Carlo Rovelli (2014), como aqui veremos.
Observemos, então, a auto-inscrição iluminada nos contos de José Viale Moutinho (agora, distinguido com o Grande Prémio do CONTO Branquinho da Fonseca APE/ Câmara Municipal de Cascais e Fundação D. Luís I) e no romance de Natália Constâncio (cuja 2ª edição foi lançada em 24/6/2025 na Biblioteca do Palácio das Galveias).
O Escorpião (2025), de José Viale Moutinho
O Escorpião [OE] (Porto, Editora Exclamação, 2025). 74 textos. A Arte Breve da narrativa entre o conto e o microconto, o contoário oral e o erudito, dialogante com diversificado intertexto (do literário ao pictórico), identificado ou aludido, com dedicatários ou não, oscilando da previsibilidade à imprevisibilidade, da grande angular ao punctum (Roland Barthes) que a sinaliza…
A capa traz-nos a vermelho e negro, não uma imagem stendhaliana, mas um símbolo de estranheza, periculosidade e letalidade, imagem zoomórfica da transformação: o Escorpião. Maiusculado, atravessado na diagonal, exibindo as tenazes e enrolando o ponto de exclamação da editora com a cauda, terminando em ferrão esticado. Lembrando-se entre a Astrologia e a Astronomia, o enigma e a paixão, a morte e o renascimento, a destruição e a renovação, o mistério e a intuição, o ataque e a defesa… intenso em qualquer das modalidades. Figuração da arte e do seu autor, síntese oferecendo-se como heráldica “chave” para o seu entendimento.
Sob o estímulo dessa sugestão, suspeitamos uma história camuflada sob camadas de outras, justificando-as, reunindo-as, legitimando-as e atraindo-nos para a tapeçaria assim heraldicamente brasonada. Tapeçaria cujo número de contos talvez evoque, ultrapassando-a, a lenda da Septuaginta de 72 versões da tradução da Bíblia em outros tantos dias (segundo a Carta de Aristeias, alegadamente de alguém da corte de Ptolomeu II Filadelfo a um tal Filócrates). Tapeçaria pretendendo-se biblioteca, um livro de ficções…
Perscrutêmo-la brevemente através de alguns dos seus títulos.
Diante do Escorpião-capa-brasão-centro do livro, "O leitor atento" sente-se entre "A admissão e a morte", "Visita hesitante" em "Visita ao castelo desaparecido" ou à "Torre de quem lá vai não volta" temendo "Um crime", receoso, quiçá, de sentir "O capacete furado por uma bala" ou por "Uma pedra silenciosa" e de se tornar "Aquele que desapareceu" numa "Execução consumada". Medo de "Apocalíptico assassínio seguido de suicídio".
"Contra o portão da viela do anjo" ou diante d’"O lago do sonho", esta "História com suspeito dentro" a "Andar pelo nevoeiro" com "Passos nocturnos" a diferentes "Velocidades" elaborará "As voltas de um certo mundo" até que reencontramos "O escorpião", "O objecto do (des)interesse", alfinete atravessando totemicamente o volume, pois, como declara num título: "O centro do mundo sou eu".
Encapsulado, protagonista de um mundo sitiado e circunscrito na “torre de vidro” ou “redoma” da palavra e da vida, o Escorpião sinaliza a violência, a surpresa, o enigmatismo e a renovação desse mundo ambíguo e implodi-lo-á deixando, com isso, a sua lição existencial e ficcional sobre a fragilidade “demasiad[a]” de tudo e a fatalidade irremediável da morte, conclusão inelutável da vida:
Irritado, o escorpião escancarou as mandíbulas e engoliu boa parte do deserto, desencantando o gigante com um safanão e este, quebrada a redoma, esmagou o artrópode com um golpe hábil de uma das suas botas ferradas.
(OE, p. 112)
Trata-se de uma imagem poderosa constituindo, afinal, um memento mori da ficção, da existência e do símbolo que insinua, também, este contoário na moderna renovação da ars moriendi ocidental.
Há sempre um escorpião na casa de cada um. Os cautelosos guardam-no numa pequena torre de vidro, numa redoma com um deserto sem nome. Pena é que seja demasiado frágil.
(OE, p. 112)
Assim, José Viale Moutinho, "O eterno voador", qual "Poeta fingidor" ou "Job e a sombra", entre "A busca e a chave", percorre "As estações de sempre" d’ "A rua onde [s]e procur[a]", oferecendo-nos este "Conto do trovador repousando" n’"O Escorpião" sob "[a] luz que vem do sol".
No fim desta "Construção do destino" na letra contística, temos um "Contrato nupcial" ou um "Desencontro secreto"?
Na verdade, a ficção (sintetizando eu neste singular o plural dos contos) encerra-se sobre si própria. Antes de mais, autodefinindo-se como “apenas um traço amarelo e letras de alfabeto desconhecido” (65) de um “[Eu que] aqui estou” (OE, p. 64) em sucessivas auto-inscrições2 desde o retrato a cinza em incipit até à sua ausência na sombra, aventura banhada pela “luz do sol [que] provoca alucinações, "tantas e tão perigosas” (OE, p. 64). Depois, anunciando o seu fim:
Abandono-me no centro do mundo e quando alguém me fala, sorrio e digo com o ar mais convencido:
- Evidentemente, o centro do mundo sou eu...
Se o meu interlocutor se atrever a duvidar, acrescentarei:
- … ainda sou eu, evidentemente.”(OE, p. 99)
Romance de Dom Dinis (2022, 2ª edição 2025), de Natália Constâncio
In memoriam. JMM e MGR.
Um beijo ténue desprendeu-se-lhe dos lábios e osculou a face da rainha, iluminada por um raio opalino e tímido que espreitava da janela.
(Natália Constâncio)
O Romance de Dom Dinis – El Rey Que (Nom) Fez Tudo Quanto Quis (2022), de Natália Constâncio, surge agora, em boa hora, em segunda edição (Lisboa, Colibri, 20253).
Apesar de o ter prefaciado há uns anos, não resisto a revisitá-lo. E, se as visitas obrigam a alguns protocolos, os regressos já permitem maior liberdade… que passo a aproveitar.
No romance de Natália Constâncio, data e local (“Roma / 1674”) criam o mundo ficcional onde tudo se animará sob a acção de um “Ego” que se declara “romeira, não peregrina” (p. 17). É o gesto totémico que Mircea Eliade diz definir um centro e, com ele, o mundo4.
Nesta cartografia, o sagrado é a vida de um par régio onde o rei biografado se ilumina: o espaço da intimidade existencial que a narradora-romeira perscruta e tenta adivinhar. O profano, somos nós, observadores curiosos. Entre sagrado e profano, desenvolve-se a documentação arquivística, a viagem e a romagem (inicialmente, “deambulação”).
Cerzindo as margens entre sagrado e profano, a “romeira”, quiçá versão feminina e actual do que acompanhámos no séc. XIX em Viagens na Minha Terra (1846), desenvolve a sua investigação e a sua escrita, busca penetrar as barreiras do tempo e da intimidade. E partilha connosco o que vai descobrindo: a sua romagem fá-la folhear fontes documentais bibliográficas (v. bibliografia final), ouvir outras e fantasiar algumas. Leitura e escuta fornecem-lhe flashes, pormenores, focais circunstancialmente condicionadas oscilando entre desvelar, velar e transmutar. Tecendo-os com o seu fio de Ariadne, vai produzindo a tapeçaria penelopeana que nos chegará em livro, este: Romance de Dom Dinis – El Rey Que (Nom) Fez Tudo Quanto Quis [RDD]. Livro que não é um novo túmulo em Arcádia, mas uma espécie de máquina do mundo de Dinis & Isabel: qual nova Tétis, a “romeira” mostra-no-la, “nautas” que somos da navegação da leitura.
No limiar da viagem, a Chiesa di Sant'Antonio dei Portoghesi será o templo onde começa o ritual do romance ou o romance ritual, insinuando a memória da espantosa abertura do Leopardo (1958, p. p.), de Lampedusa, uma missa a partir da qual as personagens parecem adquirir vida destacando-se progressivamente das figuras mitológicas dos afrescos e tapeçarias da sala.
É ali que a “romeira”, interpelada, é identificada por um retrato inserido no
grande pingente dourado que sobressai do meu colar: de um lado, o retrato de D. Dinis, segurando a espada com a mão direita; do outro, a rainha D. Isabel de Aragão. A dividir a imagem, um delineado de pétalas de rosa com a inscrição: DIONISIVSI.PORT.REX ETELISABETHA REGINA. 1290.
(RDD, p. 20)
É o retrato que lhe oferecera a avó paterna, que o recebera da sua, herança de uma bisavó, e assim sucessivamente até ao segredo que tudo selava. Retrato que, ainda na igreja romana de Sto. António dos Portugueses, motivará que lhe mostrem o da Rainha Santa Isabel com as míticas rosas alegadamente da autoria da monja Clarissa Chiara di Burano. Dupla impossibilidade, convenhamos: Chiara d'Offreducci de Assis (1193-1253), fundadora da Ordem das Clarissas (com S. Francisco de Assis) cujo hábito Isabel de Aragão envergou após a viuvez, não foi pintora e faleceu antes de Isabel de Aragão nascer…
Trata-se, assim, de uma mise en abîme que codifica a própria ficção e a (des)vela sob sucessivas camadas de imaginação que se vai alimentando dos documentos (fontes acessíveis ou inventadas, “rolinhos”, “pergaminhos” ou…) e dos testemunhos, um labirinto a que não falta a A Cidade das Damas, de Cristina de Pisan, sugerindo também essa topografia de sensibilidade que a nossa “romeira” atravessa em busca de uma Rainha Santa, dos seus amores sagrados e profanos, em especial daquele que a unia ao seu Rei-Poeta…
Eu-romeira, em 1674 e em Roma, na centralidade artística e política europeia, faz-se ver “tocada pelos raios de sol, numa luminosidade avassaladora” (p. 15) como um anjo saindo das pinturas bizantinamente espiritualizadas a ouro… ficção de ficções que outras produz e aqui borda a luz intemporal os fragmentos de um discurso amoroso de uma Natália Constâncio apaixonada por Dinis & Isabel que com o primeiro intitula o romance e vê nomeada a rua em que vive…
(Re)leia-se!
Referências
1 Je suis ce Daphnis connu dans les forêts et jusques aux astres,/ berger d'un beau troupeau, moins beau que le berger. Cf. tradução francesa de Virgílio em Bucoliques - V (M. Nisard, Paris, 1850), versos 42-43.
2 Com esta mesma formulação nos contos "A admissão e a morte", "Visita ao castelo desaparecido" e "Tanta luz que vem do sol".
3 Esta é a edição que aqui cito e onde localizo as citações.
4 Mircea Eliade. O sagrado e o profano, São Paulo: Martins Fontes, 1992.