Na última festinha da escola da minha afilhada, fui tomada por uma cena que me impactou de forma silenciosa, mas profunda. Era Dia da Família — aquela data em que as crianças se apresentam para os pais, avós, madrinhas e padrinhos com cantigas, coreografias e um entusiasmo muitas vezes mais comovente que afinado. Elas esperam aquele momento com brilho nos olhos, porque sabem que alguém importante estará ali, olhando exclusivamente para elas.
Mas o que viram, em sua maioria, foram telas. Quase todas as mães assistiam à apresentação através da câmera do próprio celular, como se só conseguissem enxergar seus filhos por meio da lente. Grande parte mantinha os olhos fixos na tela, como se estivessem em outra dimensão — registrando o instante para o futuro, mas ausentes do agora. De onde eu estava, os celulares erguidos lembravam escudos luminosos, como barreiras entre o real e o possível.
Com um pouco de orgulho, confesso, vi minha comadre que também filmava – esse não é o problema em questão, como acho que deixarei claro nas próximas linhas - mas não olhava para o celular. Sorria fitando os olhos de nossa pequena. A partir desse momento, fiquei a pensar sobre essa nossa relação com a tecnologia atualmente e, como boa historiadora, o impacto disso sobre o tempo que ela nos prometeu conceder.
Vivemos sob a promessa de que a tecnologia nos daria tempo. Ela lava a roupa, responde e-mails, calcula, avisa, antecipa. Mostra o caminho, marca o compromisso, busca as melhores opções. Ela nos foi vendida como aliada do tempo — e, em alguma medida, até pode ser. Mas é justamente por isso que precisamos olhar com cuidado. O tempo que ela nos “libera” não se transforma, automaticamente, em tempo de vida. O que vemos, cada vez mais, é esse tempo sendo tragado por ela mesma — por feeds infinitos, por notificações incessantes, por vídeos curtos que duram segundos, mas levam horas.
É como se estivéssemos perdendo a capacidade de viver as coisas enquanto elas acontecem. Como se só conseguíssemos acreditar que algo foi vivido se houver registro compartilhado. Um beijo na bochecha da filha, um passo no palco, um abraço no reencontro — tudo precisa ser capturado, como se nossa memória já não fosse confiável o bastante. Como se só a máquina pudesse testemunhar a nossa vida.
Essa não é uma crítica ao registro. Como alguém que precisa de fontes históricas para trabalhar, reforço sempre a importância de deixarmos nossas evidências no mundo. Porém, não se trata desse tipo de preocupação. Tais registros hoje me parecem muito mais uma ode à espetacularização da vida do que necessariamente uma preocupação com as memórias que deixamos para as próximas gerações.
Mas nesse processo, o que se perde não é apenas o instante. O que se desfaz é o vínculo. A criança que olha para a plateia e não encontra os olhos da mãe ou do pai, mas uma câmera, não se vê reconhecida. O afeto não se completa. Porque o amor, para crescer, precisa de presença — uma presença que não se reduz a estar fisicamente ali, mas a estar com o olhar, com a atenção, com o coração disponível.
A tecnologia, é claro, não é a inimiga. Ela é ferramenta. Mas como toda ferramenta, ela carrega a marca de quem a criou e a lógica do sistema em que se insere. E hoje, vivemos em um mundo que transforma tudo — até o tempo livre — em oportunidade de consumo. O tempo de pausa virou tempo de produzir conteúdo. O tempo com o outro virou tempo de expor o estar com o outro. As relações viraram cenário.
Na lógica do capital, tempo livre não é tempo para respirar — é tempo para consumir. E não se consome só mercadoria: consome-se imagem, opinião, performance. Consome-se a si mesmo. O tempo que a tecnologia nos poupa, ela mesma se apropria. E o resultado é uma vida acelerada, ocupada, preenchida até os ossos — e, paradoxalmente, cada vez mais vazia de presença.
Estamos cercados de estímulos, mas famintos de contato real. Respondemos mensagens em segundos, mas não temos tempo para escutar alguém com calma. Nossos olhos se acostumaram com a luz da tela e desaprenderam a se demorar no rosto de quem amamos. E a infância, como sempre, espelha com crueza tudo isso.
Crianças brincando sozinhas enquanto os adultos “resolvem coisas importantes” no celular. Histórias interrompidas por notificações. Conversas que mal começam e já são cortadas por um “espera só um pouquinho”. É como se estivéssemos oferecendo aos nossos filhos uma presença parcial — presente no corpo, ausente no gesto, no olhar, no tempo.
O mais cruel é que acreditamos estar fazendo o melhor. Levamos à escola. Cuidamos. Cumprimos os rituais. Mas quantas vezes estamos inteiros? Quantas vezes deixamos o celular de lado e mergulhamos no que está diante de nós — no agora?
É fundamental dizer: isso não é apenas uma questão individual. É estrutural. É político. Vivemos sob um sistema que transforma todo tempo em potencial de lucro. A lentidão do encontro ameaça a produtividade. A pausa assusta. O silêncio incomoda. O sistema quer o nosso cansaço, porque o cansaço não questiona. Ele apenas rola mais um vídeo.
Mas ainda dá tempo. Tempo de reaprender. Tempo de desobedecer. De guardar o celular durante a apresentação. De ouvir uma história até o fim. De deixar o registro para depois e viver o instante com o corpo inteiro. De reaprender a escutar o outro com atenção. De devolver às crianças — e a nós mesmos — um tempo que seja verdadeiramente nosso.
Um tempo que não precisa ser salvo na nuvem porque foi vivido com o coração. Um tempo que não sobra, porque foi inteiro. Porque se fez vínculo. Porque se fez presença.