Quando nossos pais souberam que éramos meninos ou meninas, eles começaram a criar uma série de expectativas. Provavelmente a partir deste ponto eles decidiram nosso nome, compraram nossos primeiros conjuntos de roupas e até mesmo nossos primeiros brinquedos. Nossa biologia determina nosso sexo, mas antes mesmo do momento em que colocamos os pés no mundo, encontramos o gênero: uma construção social que implica um conjunto de papéis.
Os papéis de gênero são um conjunto de comportamentos e atitudes que definem como são homens e mulheres. A maioria das pessoas se identifica com o gênero dado (e são chamadas de pessoas cisgênero, ou simplesmente cis), mas há algumas pessoas cujo conhecimento inato de quem são é diferente do que era inicialmente esperado quando nasceram. Estas são as pessoas transgênero, ou trans.
É importante destacar que algumas pessoas transgênero não se identificam como homens ou mulheres ou se identificam como uma combinação de ambos. Também encontramos pessoas transgêneros que não se identificam totalmente como homens ou mulheres, identificam-se como não-binários ou queer.
O Brasil é um país que desconhece sua população trans: o Censo não contempla perguntas sobre identidade de gênero. A carência de dados oficiais sobre a população trans no Brasil, principalmente no Censo, impacta diretamente na criação de políticas públicas e nas ações afirmativas que contemplem essas pessoas. Normalmente os levantamentos sobre as pessoas trans são feitos por organizações sociais como a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais).
Um exemplo de estatística que ainda vem sendo utilizada é o levantamento de 2021, considerado inédito na América Latina, realizado pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp). A pesquisa apontou que cerca de 3 milhões de pessoas no Brasil – aproximadamente 2% da população adulta – se consideram pessoas transgênero ou não-binárias.
Segundo o Índice de Estigma em relação às pessoas vivendo com HIV/AIDS, realizado em sete capitais brasileiras (Manaus, Brasília, Porto Alegre, Salvador, Recife, São Paulo e Rio de Janeiro), 90,3% da população de transexuais e travestis entrevistada já passou por pelo menos uma situação de estigma ou discriminação por conta da sua identidade de gênero.
Segundo o relatório, entre as situações de estigma e discriminação mais comuns estão os comentários discriminatórios, principalmente por membros da família: ao menos 80,6% das pessoas trans relataram já ter passado por essa situação. Assédio verbal (74,2%), exclusão de atividades familiares (69,4%) e agressão física (56,5%) também aparecem como as situações de violência relacionadas à identidade de gênero que mais afetam essa população. Os dados são de 2019 e foram apresentados às Nações Unidas.
A população trans enfrenta uma série de vulnerabilidades sociais, que vão da rejeição familiar até a privação de emprego e educação digna e de qualidade. Entre as pessoas trans que participaram do estudo, 73,4% informaram não estar estudando no momento da pesquisa, e apenas 16,5% afirmaram ter o Ensino Superior completo. Enquanto 30,6% das pessoas cisgênero têm ensino superior completo, a mesma porcentagem de pessoas trans têm somente o Ensino Fundamental completo. Muitas relataram bullying na escola por parte de alunos e professores. Isso mostra que a discriminação por identidade de gênero também é um fator que contribui para a evasão escolar dessa população.
Já em relação ao trabalho, 36,7% dos entrevistados se declararam desempregados, e 63,9% declararam ter enfrentado, nos últimos 12 meses, dificuldades para atender às suas necessidades básicas de alimentação, moradia ou vestuário. Apenas 12,8% dos entrevistados declararam estar trabalhando como empregada(o) em tempo integral. Entre a população cisgênero, o número de pessoas em trabalho integral era praticamente o dobro (22,5%).
Dados do UNAIDS de 2019 mostram que, globalmente, a população trans tem 12 vezes mais chance de infecção pelo HIV do que a população em geral.
O estigma e a discriminação são barreiras que impedem o acesso a serviços de saúde e de uma cobertura universal. A população transgênero, assim como outras populações-chave e vulneráveis, têm diariamente o seu direito a serviços de saúde negados, consequência da desinformação, falta de privacidade, e quebra de confidencialidade.
A vulnerabilidade e a exclusão social muitas vezes agravam ansiedade, depressão, insônia, estresse, e outros problemas que envolvem a saúde mental. Um dado bastante preocupante do estudo é que mais da metade da população trans (57,4%) já foi diagnosticada com algum destes problemas.
O Brasil é, há mais de uma década, o país que mais mata pessoas transgênero no mundo. No mun-do. A expectativa de vida destas pessoas no Brasil é de 35 anos, menos da metade da expectativa de vida de pessoas cisgênero.
Outro lugar onde a população trans sofre ódio é na Argentina. Com o governo do presidente Milei, se suspenderam os tratamentos de hormonização para pessoas trans, além de que o Presidente e seu gabinete fomentam o ódio contra este grupo através de seus discursos e atos.
Na Argentina existe a Lei de Identidade de Gênero, na qual as pessoas podem mudar o gênero nos documentos de forma oficial de acordo a sua identidade autopercebida. Milei atacou sistematicamente esta lei, como a outras leis afirmativas para as minorias. Leis como esta representam um enorme avanço e colocam a Argentina na vanguarda latino-americana na conquista de direitos para as minorias. Além desta barreira, políticas públicas para a prevenção da gravidez na adolescência, da violência doméstica e outras foram canceladas pelo governo atual.
Na Colômbia, a expectativa de vida das pessoas trans apenas supera os 35 anos. Não é por problemas de saúde, mas porque são assassinadas.
A prostituição, ao igual que no Brasil, na Argentina e em outras partes da América Latina, é a única estratégia de subsistência para 89 % das mulheres trans na Colômbia que enfrentam a falta de oportunidades e a exclusão estrutural do país, segundo o último relatório de Caribe Afirmativo.
A Fundação Grupo de Ação e Apoio a pessoas Trans (GAAT) se encarrega, há quatro anos, de administrar o banco de currículos do programa ‘Talento Trans’, que através de convênios com empresas, busca ajudar os candidatos a encontrar trabalho.
A Colômbia deu um passo significativo para a proteção dos direitos das pessoas trans em julho passado, quando a Câmara de Representantes aprovou 23 dos 50 artigos do projeto de Lei Integral Trans. Este projeto de Lei está sendo tratado no Congresso em um momento marcado por casos de extrema violência contra a população LGTBI+ do país, propondo rotas específicas de acesso à saúde, à educação e ao trabalho.















