A imagem que o mundo moderno possui das religiões monoteístas é bem disparate, enquanto os ocidentais costumam enxergar a cristandade e os judeus como mais cosmopolitas e tolerantes, os muçulmanos são vistos como patriarcas, tribalistas e conservadores. Ainda que o islã seja hoje mais fechada do que suas crenças irmãs isso não foi sempre assim. A fés abraâmicas passaram por ciclos de maior abertura e fechamento às ideias de fora da comunidade.
Durante o mundo medieval, no período em que a comunidade islâmica era governada pela dinastia Abássida, o oriente médio passou por uma era de ouro. Os muçulmanos entravam em contato com diversas outras culturas e tiveram um crescimento científico sem igual no mundo medieval. Os muçulmanos da época eram governados pelos Califas (amalgama de líder religioso da comunidade e chefe militar e político), e este instituiu a Casa do Saber. A maior biblioteca do mundo.
Maomé havia instruído os fiéis a procurarem conhecimento por todo o mundo. E para cumprir esse mandamentos os muçulmanos traziam à Casa do Saber livros de todas as terras que tinham contato para serem traduzidos para o árabe. Todas as ciências mais relevantes da época foram documentadas na biblioteca, e o principais intelectuais da antiguidade tiveram suas obras guardadas no local.
Muito do que foi preservado do mundo clássico só chegou aos dias atuais graças ao esforço do islã. O mundo islâmico cresceu sobre os decadentes impérios Persa e Romano e, portanto, absorveu muito da suas culturas. Os Abássidas empregavam burocratas persas para governarem seu império. Bagdá que foi escolhida para a capital do governo logo se tornou a cidade mais rica do mundo.
Os árabes também fariam outros acréscimos ao conhecimento. Avicena desenvolveu manuais de medicina muito avançados para a época. Al-Ghazali questionou as convicções da razão e da lógica de modo similar ao que o ocidental David Hume só conseguiria no século 18. Averróis se torno um dos mais importantes comentarista das obras de Aristóteles do milênio. A escola Muʿtazila de teologia incentivava abertamente a discussão racional e o pensamento herdeiro dos filósofos gregos.
Ainda que o islã seja muitas vezes visto como intolerante, durante a idade média a Umma (comunidade islâmica) reconhecia as demais religiões monoteístas como “povos do livro” que adoravam o mesmo deus e, portanto, podiam conviver em suas terras. Mas a tolerância não era absoluta. As demais crenças tinham que pagar uma taxa para viver em território muçulmano, além de serem considerados cidadãos de segunda categoria.
Ainda que a comunidade islâmica estivesse em um momento de esplendor cultural, o ímpeto persecutório já existia, conflitos entre as escolas teologias já aconteciam na corte do Califa. A escola Muʿtazila enfrentou seus oponentes da escola tradicionalista (que rejeitavam o questionamento racional e valorizavam a obediência rígida ao texto islâmico). Após um período em que os Muʿtazila perseguiram seus oponentes, o equilíbrio de poder se alterou e a escola foi banida e desapareceu. Alguns consideram esse ponto o início da decadência intelectual do mundo islâmico.
Durante o século 13, a Ásia foi devastada pela força militar mais poderosa e destrutiva antes da chegada das armas de fogo: Os mongóis de Gengis Khan. O governante das estepes tinha um desprezo por toda a civilização avançada, para ele e seus soldados as únicas riquezas eram escravos, ouro e cavalos, todo o resto poderia ser destruído sem perda. Os mongóis mataram dezenas de milhões de pessoas.
O impacto dos mongóis foi extremamente duro para o mundo islâmico. O filho de Gengis Khan, Hulago Khan, ficou encarregado de conquistar o oriente médio. Furioso por saber que pelas regras muçulmanas os fiéis poderiam servi-lo, mas tinham que reconhecer a superioridade do Califa, Hulago invadiu Bagdá, para destruí-la. O estrago que os mongóis fizeram foi tão grande que mesmo 700 anos depois do desastre a cidade não é tão rica quanto foi sobre o reinado dos Abássidas.
A destruição de Bagdá pois fim a era de ouro do islã e preparou sua cultura para adentrar os caminhos do fanatismo. Muitos acreditavam que a destruição da capital era uma punição divina pelos fiéis terem aceitado ideias distantes da ortodoxia. Os mongóis que permaneceram no mundo islâmico se converteram a fé de Maomé, mas se recusaram a aceitar a Sharia (lei islâmica) e permaneceram mantendo seu próprio código de regras Yassa, criada pelo próprio Gengis Khan. O que levou o teólogo Ibn Taymiyya a excomungá-los e ordenar uma jihad contra os “Infiéis” mongóis bem como cristão e muçulmanos dissidentes.
Mesmo que os mongóis não tenham permanecido por muito tempo no oriente médio, o estrago estava feito e perduraria. Um século após Hulago, o mundo islâmico sofreu com alguém pior: Tamerlão. De origem turca, o conquistador também era um homem destrutivo. Ainda que fosse muçulmano devoto, Tamerlão também exterminava seus inimigos de modo brutal. Alguns historiadores o consideram mais mortal do que Hitler. Ao contrário dos conquistadores antes dele, Tamerlão não tolerava dissidência religiosa, ordenando massacrar todos que não fossem muçulmanos. O fanatismo estava se tornando um problema.
Após a morte de Tamerlão, o mundo islâmico ficou dividido entre os chamados impérios da pólvora. Estados que mantinham o poder através da recém-chegadas armas de fogo e empregavam exércitos formados por escravos para lutar em suas guerras. O que por um tempo trouxe estabilidade a cultura do oriente médio. Entretanto isso iria mudar com a chegada das potências coloniais europeias.
A chegada das potências coloniais, a partir do século 19, causou uma série de tumultos nos territórios islâmicos. As terras muçulmanas invadidas eram transformadas em protetorados com elites locais submissas aos países europeus. Com a ocupação militar, veio também a influência cultural estrangeria. Roupas, invenções, automóveis, e claro os valores morais ocidentais penetraram no mundo islâmico.
Mas essas inovações não foram bem recebidas, pois muitos consideravam apenas como expressão de uma dominação nas mãos inimigas. Essa recepção ruim fez o liberalismo e o secularismo serem vistos apenas como opressão (o que vai deixar uma marca explorada pelos fundamentalistas religiosos no futuro).
Quando os britânicos tentaram abolir a escravidão a força nas suas coloniais africanas, os mulçumanos do Sudão se rebelaram e criaram um estado teocrático militarista, ainda que a revolta tenha sido reprimida, ela era um presságio do que estava por vir. Durante o começo do século vinte, os europeus querendo tomar o oriente médio, incentivaram a rebelião contra a dinastia otomana. Mas após derrotarem-na, o território foi dividido entre França e Inglaterra, o que causou revolta entre a população que tinham sido iludida com promessas de independência. Os europeus não ligavam para os sentimentos étnicos de seus súditos e ao dividir o território colocavam diversas etnias juntas, o que ajudava a causar animosidade e ódio entre elas.
O fim da dinastia Otomana foi um desastre para os islâmicos, a família de origem turca era uma liderança moderada que tentava conciliar o povo árabe com seus vizinhos cristão e judeus. Depois do fim dos Abássidas, os Otomanos exerceram o poder de Califas, quando a dinastia caiu, pela primeira vez desde os tempos de Maomé não havia mais um líder para a Umma. Esse foi um grande trauma para a comunidade que se sentiu atacada pelo mundo moderno podando suas lideranças. O que causou o surgimento da “Irmandade Muçulmana” a primeira organização fundamentalista, seu propósito era reintroduzir o islã na vida pública que eles sentiam estar sendo arrancado.
Como não podiam governar diretamente sobre toda a população, os europeus contavam com governantes locais como seus cumplices no poder. Esses monarcas eram figuras fracas que só conseguiam se manter graças a ajuda militar e financeira do ocidente. Quando os europeus se foram, os governantes logo começaram a cair. As novas elites que surgiram incluíam militares e intelectuais de classe média junto com empresas de aliados do regime que os financiavam. Vários governantes seculares, grande parte nacionalistas ou socialistas chegaram ao poder.
Esses novos líderes tentaram modernizar o mundo islâmico, assim a cultura tradicional era vista como atrasada e atrapalhando o progresso. Um dos líderes foi Mustafá Kemal Ataturk que assumiu na Turquia após o fim da dinastia Otomana, e foi o responsável pelo fim do Califado. Outros como Gamal Abdel Nasser e Muammar Gaddafi, dominaram o Egito e a Libia respectivamente, trazendo esses países para o socialismo islâmico.
Os governantes seculares eram ditadores brutais, que impunham punições severas aos que discordavam deles. Nasser ordenou a prisão dos líderes da Irmandade Muçulmana mesmo tendo sido apoiado por eles. Gaddafi costumava empilhar os corpos das pessoas executadas perto da estrada para servir de aviso aos seus desafetos. Tudo isso contribuiu para a visão do secularismo como uma forma de repressão.
Com os Otomanos fora do poder, e sem um líder definido, grande parte do mundo muçulmano se aproximou dos Sauditas. Entretanto isso foi um gesto perigoso. Os Sauditas acreditam no wahabismo, uma vertente ultraconservadora do islã. Sua influência sobre a Umma contribuiu para um crescente sentimento de dogmatismo e rejeição do mundo moderno.
O mundo islâmico estava se encaminhando para se fechar do resto da humanidade e evitar contato com a cultura ocidental cada vez mais vista como um poder invasor perigoso. Mas ironicamente, o movimento que iria despertar o conflito com o ocidente não seria exclusivamente islâmico nem árabe, mas uma doutrina sincrética oriental e ocidental e viria das mãos de um dos principais intelectuais da época: Sayyid Qutb Um membro da irmandade muçulmana que foi preso por Nasser, Sayyid era um homem rígido e severo com uma forte rejeição ao ocidente e pela liberdade feminina oferecida.
A obra mais importante de Sayyid foi um conjunto de comentários ao Alcorão, tão extenso que possuía 30 volumes. Como intelectual, acreditava que o mundo islâmico tinha sido corrompido e os devotos não eram mais fiéis de verdade, cabendo a um pequeno grupo de homens dedicados a fé se rebelarem contra a decadência religiosa e reconstruir a cultura muçulmana resgatando sua era de ouro.
Ainda que tal ideal fosse novidade no oriente, estava longe de ser inovador, Sayyid apenas renovou o pensamento reacionário e decadentista ocidental para os muçulmanos. Durante o período do século 20, o oriente médio recebia grande influência dos autores da chamada “morte de Deus” que visavam recuperar o sentido da vida num mundo secular, grande parte desses autores eram ultraconservadores que tentavam reverter o liberalismo e trazer os valores antigos de volta e que estimularam o fascismo europeu. Sayyid estava se inspirando nesse homens para resgatar o mundo islâmico.
Fora a filosofia reacionária, a outra grande influencia foram os rebeldes comunistas. Os marxistas a bastante tempo acreditavam que deviam estar dispostos a viver, matar e morrer pela causa da revolução. Os muçulmanos herdaram seus métodos extremos. A ideologia resultante com elementos fascistas, islâmicos e socialistas ficou com o apropriado nome de Jihadismo, por seu objetivo de levar a guerra santa aos infiéis.
A Jihad travada pelos fundamentalistas não era a mesma da idade média, era não só um combate contra o mal, mas uma revolução global que destruiria o mundo moderno e traria um novo mundo regido pela Sharia islâmica. Algo mais próximo da revolução do proletariado defendida pelos comunistas, ou a chegada do Terceiro Reich pressagiada pelos nazistas.
Curiosamente, os Ocidentais inicialmente apoiaram os primeiros grupos rebeldes jihadistas, pois viam neles aliados contra o inimigo comum: O comunismo. Grupos fundamentalistas lutaram contra a União Soviética quando esta invadiu o Afeganistão. O representante russo em Washington tentou alertar os americanos do seu erro. Segundo ele, o jihadismo iria crescer e se tornar mais perigoso para o Ocidente do que o comunismo nunca foi. Mas os americanos ignoraram o aviso.
Pouco tempo depois, enquanto a Uniao Soviética colapsava, os americanos se envolveram na Guerra do Golfo para impedir o Iraque de invadir o Kwait. Para que suas tropas pudessem atravessar até o país, o exército americano desembarcou vindo da Arábia Saudita, mas para chegar ao seu destino tiveram que pisar em locais considerados sagrados pelos muçulmanos, o que foi visto como uma ofensa.
Agora que não tinham mais que lutar contra o comunismo, os jihadistas decidiram tornar o Ocidente seu novo inimigo, para pagar pela blasfêmia. O resultado foi o ataque ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001. Seus autores acreditavam que o atentado uniria o mundo islâmico numa aliança para sua guerra contra o ocidente, que não aconteceu. Mesmo assim o espírito do jihadismo ainda não se encerrou e permanece vivo duas décadas após o ataque.















