O texto desse mês vai ser um pouco diferente, vou abordar as experiências bizarras que usuárias tem e que ocorrem dentro dos famosos “aplicativos de relacionamento”, ocorrências que aconteceram comigo e com várias das minhas amigas (e com várias leitoras também).

Para começar, não é nenhuma novidade que esse apps são completamente problemáticos por inúmeras razões, como casos de assédio, golpe, misoginia e entre tantos outros, contudo, desde alguns poucos anos atrás e o aumento do discurso de ódio em redes sociais sob o estandarte de “minha opinião”, esses apps deixaram de ser apenas problemáticos e se tornaram praticamente uma encarnação digital de Chernobyl radioativa.

Como um experimento social, eu e uma amiga instalamos 3 apps de relacionamento e primeiramente criamos um perfil falso com fotos de uma modelo com um micro biquíni, outras fotos bem sexualizadas e uma bio de “mulher fácil e casual” , em seguida, criamos um perfil com nossas próprias fotos, com roupas casuais e uma bio normal. Minha amiga cuidou dos apps de relacionamento hétero e eu cuidei do de relacionamento LGBTQIA+ e o mais surpreendente foi notar que:

  • As experiências em todos os apps foram praticamente as mesmas;

  • O app de relacionamento LGBTQIA+ foi onde os discursos de ódio e o preconceito foram mais escancarados;

  • A diferença de likes entre a conta fake e a nossa foi tão disparate que na conta fake em menos de 1h já haviam mais de 300 likes (ou mensagens dependendo o app).

A primeira coisa que notamos foi que os perfis masculinos não tinham o menor filtro ao que escreviam ou na hora de abordar. No app que era possível o envio de fotos, era comum as conversas conterem nudes, mensagens com conteúdo sexual (e até de baixo calão) e a maioria nem conseguindo manter uma conversa direito.

Nos apps que não era permitido o envio de fotos (portanto não podiam ser enviados nudes) as mensagens começavam normais, mas logo os perfis masculinos queriam mudar a conversa para um cunho mais sexual e se a gente instigasse (com o perfil falso) eles continuavam a conversar, mas se a gente cortava (com o perfil normal) a conversa logo morria e eles nos bloqueavam ou sumiam.

Nos apps de ambos os relacionamentos (hétero e homo) quando confrontávamos os perfis a respeito da linguagem, do tipo de mensagem e/ou da forma que eles falavam, todos sem qualquer exceção disseram “que esses apps são para sexo casual e fácil e todo mundo sabe” e “que se não gostássemos de como eles falavam que deletássemos ele”.

O primeiro fato mais chocante é o fato de, mesmo que o aplicativo fosse só para sexo, eles acharem que o comportamento deles não estava errado e de que a forma como eles agem e falam nos apps é normal e não tem nenhum problema, o segundo fato chocante é que as conversas não fluíam, pois a todo momento eles queriam falar de sexo e/ou já marcarem de “dar uma rapidinha” sem nem ao menos trocarem mais de 5 palavras conosco.

Outro fato chocante é a completa falta de monitoramento das plataformas quanto aos usuários e ao comportamento dos mesmos. Quando denunciávamos perfis por comportamento agressivo ou discurso de ódio, o perfil continuava ativo. Mesmo o fato de criamos um perfil claramente falso e ele ter sido aprovado e criado pela plataforma mostra como as plataformas não se importam e/ou nem ligam para o que acontece dentro do app.

Não apenas isso, mas o fato de absolutamente tudo dentro do app ser pago, até mesmo para seu perfil aparecer para mais pessoas, demonstram o quanto as plataformas estão apenas focadas no lucro e não no bem-estar do usuário. Sim ninguém trabalha de graça, mas cobrar por coisas que deveriam ser o básico como “envio de mensagens”, “visualização de perfis” e outras coisas na mesma linha beiram ao tragicómico. E isso leva a um dos maiores problemas que esses apps contribuem, o problema de autoimagem das pessoas e a forma como elas próprias se enxergam.

Se esse problema já é imenso em redes sociais, nos aplicativos de relacionamento esse problema é elevado a milésima potência. Se um usuário não recebe tantas mensagens, ou nem recebe nenhuma, ou se ele não dá match com ninguém, isso faz com que a autoestima dele vá para o chão, contudo SE ele assinar o “pacote premium” ele consegue ver mais perfis e subitamente aparecem pessoas para ele conversar, coincidência?

Outro ponto que notamos é o fato de os perfis masculinos sempre irem atrás de perfis claramente falsos, de não se darem nem ao trabalho de lerem as informações do perfil e de tratarem perfis vistos por eles como “inferiores” de forma diferente dos perfis “superiores”, como por exemplo do que aconteceu comigo: Um usuário tinha vindo falar com o meu perfil normal primeiramente e a conversa “fluía” até eu propositalmente mandar mensagem para esse usuário com o perfil falso e o resultado foi, por falta de outra palavra, revoltante, pois o usuário parou na hora de responder o meu perfil normal e continuou apenas falando com meu perfil falso, não apenas isso, mas a forma dele se comportar também foi completamente diferente. Enquanto no perfil normal ele “conversava” e não tinha ido para o lado sexual, com o perfil falso o usuário conversava sem parar e sempre queria mudar a conversa para um rumo sexual.

Outro exemplo foi um usuário que dizia não achar outros perfis bonitos no app e que o meu perfil falso era a única bonita ali, quando mostrei vários outros perfis com diversas meninas normais e bonitas (e até coloquei o meu no meio) o usuário respondeu que “elas não eram bonitas suficientes” e que “só o meu perfil (falso) que fazia o tipo dele”. Esse exemplo só mostra o quão irreal é a visão da maioria dos usuários (principalmente masculinos) nos apps de relacionamento, pois o próprio usuário com quem conversei nesse exemplo tinha uma beleza comum, podendo ser até considerado feio por outras pessoas.

Não apenas o fator beleza, mas o corpo é um dos principais fatores nesses apps. Era engraçado ler perfis em que o usuário escrevia “que não ligava para o corpo, mas para a conversa” e ele ignorava o meu perfil e o da minha amiga e respondia apenas o perfil falso que a primeira foto era a modelo de biquíni com o corpo torneado. Também era engraçado que “a conversa” se resumia a conteúdo de cunho sexual e mesmo quando a gente tentava mudar o rumo da conversa o usuário dava um jeito de voltar para o tema sexual.

Eu adoraria falar que não são todos os perfis que são assim, mas absolutamente todos (absolutamente todos) os perfis que conversavam com nosso perfil normal e o perfil falso ao mesmo tempo, deixaram o nosso perfil normal de lado e focaram apenas no perfil falso com uns chegando a ponto de nos bloquearem.

Teve um usuário que anteriormente já havia conversado comigo, mas tinha sumido de repente, que foi falar diretamente com o perfil falso. Eu respondi com o perfil falso, mas depois mandei mensagem com o perfil normal para ver o que acontecia. O usuário leu a mensagem do meu perfil normal, logo em seguida o bloqueou e continuou a conversar com o meu perfil falso.

Então no meio da conversa perguntei se ele estava conversando com outras pessoas interessantes e ele logo respondeu “não, só com você” e eu logo fiquei com a pulga atrás da orelha e joguei um verde falando “ah eu entrei aqui porque uma amiga me indicou”, o usuário perguntou quem era e pediu uma foto, para quem sabe “ a gente fazer um programa a 3”, quando mandei minha foto natural o usuário ficou sem graça e falou que já tinha conversado com minha “amiga” mas que não tinha dado química e por isso a conversa tinha morrido. Quando falei “poxa que pena que não deu certo” o usuário simplesmente respondeu “fora que eu nem tava tão afim assim dela e ela não era gostosa como você” o que só fez eu rir ao ler a mensagem, pois o próprio perfil que ele estava “me trocando” era irreal.

Um dos tipos mais famosos desses apps ficou conhecido como “Cara do Chucky corpo do Ken”, ou seja, homens marombados ou musculosos que são considerados feios. Mas porque eles são famosos? Porque, como relatado por várias usuárias e por experiência própria, esses usuários, apesar de não serem convencionalmente bonitos (Cara do Chuck), acham que eles são bonitos apenas porque eles malham (corpo do Ken). É um problema eles terem auto estima? Absolutamente não, mas quando a auto estima deles chega a níveis irreais em que eles se acham tão bonitos a ponto de acharem a maioria das usuárias dos apps feias e dizer que eles são “seletivos”, não há como impedir que eles próprios virem memes devido aos seus próprios delírios egocêntricos.

No app que eu fiz os perfis, o Cara de Chuck sempre usava como foto de perfil uma foto cortando sua cabeça e mostrando só o abdômen dizendo que “gostam do sigilo”, mas fica aquele questionamento, se você gosta tanto de sigilo, porque está em um “app de sexo” atrás de outras pessoas para transar?

Também a muitos casos relatados de usuários que são casados/comprometidos/no sigilo dentro desses apps, o que não seria um problema se na maioria das vezes eles dissessem na própria bio deles que são comprometidos. Não só isso, mas no app de relacionamento LGBTQIA+ a quantidade desse tipo de usuários é gritantemente maior do que nos apps de relacionamento heterossexual. Um outro exemplo que posso dar foi um usuário comprometido que veio falar comigo e eu só descobri que ele tinha namorada porque ele “deixou escapar” que namorava, pois quando perguntei se ele era solteiro o usuário simplesmente mentiu e disse “sim eu sou”.

Além de ter mentido sobre ser comprometido, ao pedir uma foto minha de corpo inteiro e eu mandar (com roupas, obviamente) o usuário praticamente disse que “meu corpo era broxante”, pois antes ele estava com uma ereção e agora ela tinha sumido ao ver minha foto. Novamente eu ri ao ler a mensagem, pois na minha cabeça só passou o seguinte: “Você está traindo a sua namorada em um app LGBTQIA+, que moral você quer ter de julgar meu corpo?”.

Aliás isso faz com que voltemos ao tópico anterior sobre os corpos sarados. Eu adoraria dizer que esse usuário foi o único exemplo que tive a respeito do meu corpo, mas eu estaria mentindo, pois isso aconteceu diversas vezes em inúmeras conversas. Eram usuários me bloqueando logo após ver minhas fotos “de corpo inteiro”, eram usuários sugerindo que eu “me exercitasse mais” (sendo que eu peso 56kg e tenho 1.71 de altura) e outros até dizendo que “se eu me esforçasse eu teria um corpo mais bonito, mas que dava para o gasto”.

Chega a ser surpreendente ouvir isso de usuários que tem mães, amigas, irmãs, tias, avós e até filhas. Será que não passa pela cabeça deles que podem ter outros usuários fazendo exatamente a mesma coisa com pessoas queridas e próximas a eles? O mais irônico disso tudo é o fato de, ao mesmo tempo que tinha usuários criticando o meu corpo, haviam outros que me fetichizavam e me sexualizavam de maneiras perturbadoras.

Não vou descer o nível do texto e escrever alguns exemplos do que me era escrito, pois isso não merece nem ser mostrado de tão baixo nível que chegava. Alguns das coisas a que eles se referiam eram sobre a cor da minha pele, a cor do meu cabelo, como eram minhas partes íntimas e outras coisas pavorosas que fariam até Calígula corar. Tiveram até usuários que disseram que queriam “ter essa experiência” como se eu fosse um prato exótico, mas o mais absurdo foi quando perguntaram quanto eu cobrava pelo meu programa. E a pior parte disso tudo? Eles acham esse comportamento completamente normal e se alguém não gosta que não use o app, aí que eu pergunto, porque as plataformas não estão monitorando esse tipo de coisa?

Sim, são milhares de usuários e o controle é complicado, mas não é possível que os próprios criadores e plataformas achem que esses comportamentos sejam normais e deixem os usuários agirem desse jeito. Na seção de avaliação de um desses aplicativos, várias pessoas reclamavam (principalmente as mulheres) do fato do app ter banido a conta delas por “ser um perfil falso” e a ironia? Eu e minha amiga criamos 2 perfis claramente falsos e a plataforma nem se incomodou de fazer nada, ou seja, parece mais que o monitoramento desses apps é feito de forma totalmente aleatória o que, sinceramente, é extremamente preocupante.

Nesse texto muito se foi falado sobre o comportamento dos perfis masculinos e alguns podem argumentar “ah, mas tem perfis femininos problemáticos também” e sim, existem. Contudo, o fato de o comportamento dos usuários masculinos ser agressivo, sexual e por vezes machista foi relatado por centenas de milhares de usuárias, não apenas na seção de avaliação do aplicativo, como em seção de comentários de redes sociais, em memes, em podcasts, vídeos no youtube e em vários outros lugares. E não apenas isso, mas a quantidade dos perfis masculinos problemáticos é imensamente maior do que os perfis femininos, ou seja, mesmo que tenham perfis femininos problemáticos, os perfis masculinos ainda ganham com uma larga folga.

O fato, como já falado, dos usuários acharem “normal” o comportamento deles dentro desses aplicativos também é extremamente preocupante, pois demonstra que eles: 1 – Acham que podem dizer e agir da forma como eles querem ali dentro; 2 – De certa forma mostram a sua verdadeira face quando estão envoltos pelo “anonimato” que o aplicativo dá para eles; 3 – Revela que infelizmente por mais que se pareça que a sociedade evoluiu, na verdade apenas estamos mascarando muitos problemas que ainda precisam ser debatidos e escancarados.

Várias usuárias relataram isso e tanto eu como minha amiga reparamos também que os usuários masculinos desses apps tratam as mulheres praticamente como “prostitutas gratuitas” com quem eles querem transar sem pagar e aliviar seu tesão acumulado, chegando ao ponto de acharem que elas iam transar com eles no mesmo dia ou, até pior, sem nem ao menos terem conversado direito com eles.

Nossa experiência durou exatamente 1 dia e meio, com minha amiga deletando e desinstalando os apps depois de 12h e eu tentei continuar, mas também logo deletei no dia seguinte, pois comecei a me sentir a pessoa mais imunda do mundo e pensei seriamente em entrar em um convento ou em um templo para limpar a minha alma de tanta radioatividade.

Se antes os aplicativos de relacionamento foram uma ótima ideia para as pessoas se conhecerem, depois da evolução tecnológica, da inclusão digital, da facilidade e da quantidade de usuários usando as redes sociais, esse aplicativos se tornaram um campo perfeito para a destilação de discurso de ódio, objetificação e sexualização e sobretudo para uma separação de “castas” entre os “bonitos”, os “feios”, os “pagantes” e os “de graça”.

Esses aplicativos ainda são relevantes nos dias de hoje? Honestamente, pelas diversas experiências não apenas minhas, mas de amigas e outras usuárias posso dizer que não, na verdade é mais provável da gente nunca mais querer se relacionar com nenhum homem na vida. E infelizmente queria poder dizer que esse comportamento ficou só restrito a esses apps, mas cada vez mais nas redes sociais esses comportamentos acontecem sem o menor pudor, especialmente agora que as redes sociais deixaram de monitorar eles para “não afetar a liberdade de expressão de seus usuários”.

Esse texto acabou em um tom mais amargo e pessimista, mas na realidade eu queria que ele tivesse um final mais esperançoso e adocicado, contudo, a involução do comportamento das pessoas nas redes sociais, nos aplicativos de relacionamento e as vezes até na rua não faz com que seja possível ter um final de texto mais alegre. Se a sociedade não melhorar e evoluir de verdade, infelizmente estaremos à beira da nossa própria extinção, e isso é tão perigoso quanto triste.