Era antiga a motivação para a construção de um canal em Suez. Uma antiguíssima dinastia egipciana, a décima segunda, dois mil anos antes de Cristo já tinha imaginado uma facilitação de acessos naquele istmo. Mercadores de Marselha e Veneza, tempos depois, tentaram convencer seus respectivos senhores feudais sobre a importância do empreendimento. A famosa expedição de Napoleão no Egito teve também por propósito avançar estudos sobre a construção do canal. Mas foi em meados do século XIX que a ideia ganhou forma e concretude no empenho dos seguidores de Saint Simon e no desprendimento de Ferdinand de Lesseps que criou uma companhia universal para, enfim, levar adiante a construção do canal.
Iniciado em 1859 e inaugurado em 1869, o empreendimento permitiu à França e à Inglaterra monopolizar a integralidade do tráfico da Europa para a Índia. Por essa época ainda não se previa a centralidade do insumo petróleo nos destinos do mundo. Tão logo essa centralidade se tornou verdade, o canal de Suez ganhou uma importância superlativa jamais imaginada. Por ele começaram a passar os cargueiros vindos do Oriente Médio com o insumo dos novos tempos.
Com isso, claro, a gestão do canal foi ficando mais complexa. O fluxo de embarcações foi aumentando consideravelmente e as rivalidades entre europeus também. Tudo isso forjou a necessidade da organização da Conferência de Constantinopla em 1888 para dar a quem desejasse a garantia de uso do canal. Além dos interesses ingleses e franceses, à essa altura da exploração massiva de petróleo e seus derivados, norte-americanos, africanos e médio-orientais também disputavam o seu lugar ao sol.
Tempos depois, o mantra da autodeterminação dos povos, da descolonização e do nacionalismo após as guerras totais de 1914-1945 levou autoridades egípcias a nacionalizar o canal, sob Nasser, em 1956. Essa adversidade promoveu variados problemas diplomáticos, jurídicos, políticos e econômicos. A expedição franco-britânica para reabilitação do canal incorreu num revés sem precedentes. Para os franceses esse foi o início efetivo do fim de seu império colonial. Para os ingleses foi o fim do monopólio do seu acesso à Índia. Uma sutil normalização da situação aconteceria nos Acordos de Campos David de 1978. Mas somente depois da implosão da União Soviética que franceses, ingleses, europeus e norte-americanos retornariam a explorar o canal em todas as suas potencialidades.
Os espaços contam nas projeções políticas. Soberanias e fronteiras também. O exemplo Suez foi apenas mais uma mostra de tudo isso.
O fim da Guerra Fria, a unificação da Alemanha, o tratado de Maastricht e a integração europeia reavivaram entre os europeus a sensação de mare nostrum sobre o Mediterrâneo. Uma verdadeira união pelo Mediterrâneo foi sendo constituída no início do novo século. Com isso, pouco a pouco, Gibraltar, Malta, Sicília, Chipre voltaram aos radares europeus e norte-americanos. Tanto por suas realidades estratégicas intrínsecas como pelos seus eixos de conexão com o trânsito no canal de Suez. Tudo isso multiplicou a pressão sobre o canal e seus gestores.
Em 2016, o canal recebia diariamente 60 embarcações da Europa rumo a Ásia e vice-e-versa com receita de US$ 14,3 milhões sob o transporte de mais de 9 bilhões de toneladas de mercadores. A alternativa a Suez seria o Cabo, por onde o custo de passagem de navios era similar, mas o trajeto mais longo, o que, ao fim das contas, aumentaria os custos globais. Um exemplo clássico envolvia o trajeto do Havre a Bombay. Do Havre, na França, a Bombay, na Índia, o trajeto pelo Cabo era de 22 mil km. Mas via Suez era de 11.500 km. Exatamente a metade da distância. Consequentemente a metade relativa de custos logísticos. Mais uma demonstração de que o domínio dos espaços pode ser fundamental, essencial mesmo, para os destinos da globalização.
Voltando ao incidente de 1956, a nacionalização do canal forjou a diminuição da presença europeia e norte-americana na região e ampliou a influência dos médio-orientais. Consequentemente, o transporte de petróleo pelo canal passou a superar a passagem dos demais produtos. Essa reorientação de objetivos auxiliou na modernização da concepção dessa via comercial.
Variados trabalhos de engenharia foram mobilizados para se permitir a passagem de navios cada vez maiores e mais potentes. Os 164 km originais do canal permaneceram intactos. Entretanto, a sua profundidade foi sendo aumentada constantemente. Os iniciais 7 a 8 metros de profundidade foram passados aos 11,7 metros em 1948. Mas a partir de 1956, com fluxos e preocupações maiores, um conjunto de investimentos levou a sua profundidade a chegar a 17 metros em 2000 e 22 metros em 2010.
Esse aumento da profundidade do canal permitiu que navios-monstros feito o petroleiro Jahre Viking de 565 mil toneladas pudesse por lá passar. Adicione-se a isso o fato de que os 60 metros originais de largura do canal foram, depois de 1956, ampliados constantemente até chegar aos atuais 365 metros. O que habilitou o trânsito constante e concomitante de cruzeiros nos dois sentidos do fluxo. Tudo isso permitiu um salto extraordinário da quantidade de produtos transportados.
As 430 mil toneladas transportadas em 1870 saltaram para 154 milhões em 1958, 275 em 1966, 520 milhões antes da crise financeira de 2008 e 700 milhões antes da pandemia de Covid-19. Da quantidade diminuta de navios do início, ainda sem a massificação do uso de motor a valor nos anos de 1870, passou-se, ao século XXI, para 15 mil navios anuais em 2000 para mais de 18 mil em 2023. Isso representa aproximadamente 15% do tráfego marítimo mundial. Com importantes excedentes para o Egito que também explora o turismo do canal.
Irmã de Suez vai ser a importantíssima passagem do istmo do Panamá. Antigo domínio do império espanhol para onde confluíam as benesses metálicas do Peru e as porcelanas das Filipinas antes de serem enviadas para Sevilha, esse ponto de passagem do Atlântico ao Pacífico sempre despertou curiosidade, interesse e cobiça. O rei Carlos Quinto do Império Germânico parece ter sido o primeiro a formular um projeto de construção de uma via de passagem por lá. Mas foi o sucesso da construção do canal de Suez que reorientou e materializou as intenções.
Nos anos de 1870, o mesmo francês Ferdinand Lesseps por detrás do canal no Egito avançou o seu interesse em repicar o sucesso africano na América Central e, durante o Congresso Internacional de Geografia realizado em Paris em 1879, apresentou seu projeto de construção, que foi aceito e ratificado. Assim, a França e os franceses voltaram às obras. Desta vez, nas Américas. A reputação de Lesseps era imensa. A opinião pública o denominava le grand français [o grande francês]. A aventura de Suez parecia passado. O seu futuro seria traçado na aventura do Panamá.
Desde 1890 que a companhia Ferdinand Lesseps se rendeu à Colômbia para dar início aos trabalhos. Mas não se tardou a se perceber que a selva americana era bem diferente do deserto africano. Os contratempos iniciais foram imensos e se afirmaram intransponíveis para os europeus. As intempéries pareciam intermináveis. Os perigos eram constantes e jamais imaginados.
Serpente, mosquito, malária, terremoto. Sem contar a corrupção generalizada. Foram oito anos de empenho e mais de 297 milhões de dólares desviados. Consequentemente, a integralidade da opinião pública francesa, europeia e mundial reprovou o projeto e a atuação de Ferdinand Lesseps. Por conta disso, os trabalhos foram descontinuados e Lesseps retornou à Europa. Na Europa e em Paris, ele passou perto de ser preso e morrer na cadeia. Acabou se livrando dos problemas, mas ficou ensimesmado, perturbado e morreu em casa com intensos distúrbios mentais.
Com a saída dos franceses, os norte-americanos viram ali uma oportunidade inestimável. Com a vitória de Theodore Roosevelt Jr. nas presidenciais da virada do século, essa oportunidade foi se transformando em meta e obsessão. O novo presidente norte-americano chegou a alardear que da construção de um canal no Panamá, unindo o Atlântico ao Pacífico e reduzindo distâncias para a Ásia, dependeria o futuro dos Estados Unidos da América. Ele e toda a opinião pública percebiam a imensa demanda asiática presente e futura por produtos norte-americanos. Entretanto, notava-se também que o transcurso de Nova Iorque ao sul de Mar Del Plata e da Patagônia para uma circum-navegação ao encontro do Pacífico era uma rota demasiadamente longa e quase sem sentido. A construção da passagem no Panamá foi, assim, encarada como um imperativo.
O grande empecilho para os norte-americanos advinha da resistência dos colombianos em ceder frações de sua soberania a um novo aventureiro. Isso levou a presidência Roosevelt a forjar a independência do Panamá frente à Colômbia e com os panamenhos assinar um tratado de usufruto da área fluvial do novo país, o Panamá. Desse modo, no dia 4 de maio de 1904 foi reiniciada a aventura da construção do canal centro-americano para no dia 15 de agosto de 1904 ser finalizada. Uma aventura que se deu mediante, sim, dificuldades imensas, recursos econômicos descomunais, inovação tecnológica inédita, desenvolvimento sem precedentes das engenharias civil e naval e o custo humano de mais de 27 mil pessoas mortas.
Independente de tudo isso, desde aí, a nação norte-americana se afirmou inteiramente como potência global de abrangência mundial. O trajeto entre Nova Iorque e São Francisco passou de 22.500 km para 9.500 km passando pelo canal. Essa passagem de 1.300 km entre o Atlântico e o Pacífico permitiu, de um século ao outro, a afirmação da presença norte-americana em praticamente toda a Ásia e, em contraponto, a presença da China em todo o continente americano.
A administração do canal – a exemplo de Suez – sempre transcorreu de modo atribulado. Desde o início que panamenhos e norte-americanos permanecem em suas querelas pela gestão de margens de retornos. Cem anos depois de inaugurado, estava-se que o canal mantenha o seu faturamento anual médio entorno de US$ 2 trilhão.
Evidentemente que o Egito nem o Panamá podem se privar dos dividendos de seus presentes naturais. O resto do mundo também precisa deles. E a sinergia dos interesses evidencia, uma vez mais, a força e a importância dos lugares.