A biblioteca é um campo simbólico de descobertas. Neste espaço físico, conceitos, teorias, ideias impensadas por nós, aventuras surpreendentes e mundos excêntricos, se misturam num ritmo ritualista e propõe ao leitor uma experiência única.
Entre as estantes, que abrigam os saberes e o silêncio espacial, ocorre uma cerimónia sagrada. Este ambiente convida o visitante a um diálogo pessoal com o conhecimento e estimula as associações cerebrais e esta cerimónia sagrada, facilita a absorção de um vasto oceano de informações.
Mas como preservar a identidade deste espaço em tempos digitais, onde os ecrãs saltam os olhos com os seus milhões de pixeis coloridos e preenchem o nosso território mental e o repertório cultural das sociedades?
Este é o desafio que este arquivo literário enfrenta. O espaço de convivência onde a educação e o lazer são os anfitriões, onde sentamos e ouvimos alguém que não conhecemos fisicamente, concordamos ou não com os seus relatos, aprendemos a praticar a empatia com a voz do outro lado da página e saímos de lá diferente que entramos.
No passado, este centro de conhecimento e registos era restrito as elites. Inicialmente guardavam-se textos religiosos, administrativos, literários e sem eles, não saberíamos que no passado os sumérios usavam tábuas de argila para apontar as suas leis, receitas médicas, literatura, arquivos públicos.
Em evolução, os escribas da época produziam coleções e a fonte do conhecimento alternavam entre a ciência e a imaginação. As tábuas numeradas defendiam temáticas como medicina, astrologia, magia e matemática.
Com a chegada do alfabeto aramaico a biblioteca passa a ser mais acessível e a preservação do saber é mais popularizada. Os egípcios mantinham nos seus templos centros de conhecimentos, a exemplo da famosa biblioteca de Alexandria, onde conviviam nas prateleiras as culturas dos persas, gregos, egípcios e indianos.
As primeiras bibliotecas públicas surgem em Roma e Constantinopla e o princípio de conservar, copiar e organizar se manteve até a criação da imprensa, quando os livros começaram a circular fora dos mosteiros e universidades e inunda os municípios e escolas.
Hoje, espaços de coworking, acessos a livros eletrónicos, programas de inclusão digital são partilhadas em wi-fi abertos aos visitantes. Lá os acessos a mapas, revistas, filmes, documentos históricos, produção local e até arquivos sonoros estão disponíveis.
Para as crianças esta casa do saber é um ambiente rico que vai além de um amontoado de livros. Ela estimula os sentidos e as histórias ilustradas se conectam com a imaginação.
Lá, os dedos passeiam pelas páginas onde escondem as próximas revelações, os olhos e a atenção anseiam pelas próximas palavras e as suas conclusões, os ouvidos escutam no silêncio, os ruídos das onomatopeias que dão vida as histórias e dialoga com o imaginário.
Ali é um mundo onde as publicidades são emudecidas, o ritmo da leitura é respeitado, a ludicidade permitem o desabrochar da criatividade, a interação social promove complementos imaginativos e fortalece a sensação de pertença.
Com a imersão digital, as crianças são impactadas por uma infinidade de informações tecnológicas através dos seus tablets, smartphones, jogos digitais, YouTube e redes sociais e enfraquecem a relação com os espaços físicos das bibliotecas.
Esses excessos de estímulos dificultam a capacidade de lidar com conteúdos mais densos como os livros e impactam na leitura crítica, reflexiva e focada.
O livro traz a capacidade de vínculo, permite um diálogo silencioso entre páginas e ouvidos, um transporte de experiências que despertam sentimentos, onde o saber coletivo assume o protagonismo e o ancestral pode ser visitado sem a barreira do tempo.
Como sociedade temos o desafio de integrar a tecnologia e o espaços físicos chamados biblioteca. Incorporar o digital para complementar a leitura, mas sem finais fechados, onde as crianças utilizem a criatividade e sejam os coautores de outras versões das histórias.
Ao trabalhar em sinergia possibilitamos que a biblioteca retorne a ser o laboratório de descobertas, um local prazeroso onde a memória emocional é desenvolvida e as partilhas não correm o risco de acesso de conteúdos inadequados e sem mediação.
Antes de finalizar, uma alusão crucial que é a ponte entre estes pequenos leitores e as suas páginas: os educadores, mestres, pais, cuidadores, bibliotecários são os guardiões e sacerdotes deste espaço físico.
Apresentar a biblioteca a criança é mostrar o portal de passagem para a liberdade criativa de um futuro biodiverso, respeitoso e equitativo. Fica aqui o convite: Leve a criança na biblioteca, deixe-a escolher um livro, leia e pratique a escuta ativa.
De tábuas a tablets, o saber transfere-se ao longo da história, mas a sensação sentar-se num espaço rodeado de livros e as suas vibrações fazem toda a diferença na apreensão do conteúdo.
Cultivemos estes espaços sagrados que criam um campo morfogénico de saber, que libertam a imaginação e propicia o nascimento de novas possibilidades que se desdobram de forma orgânica e humana para o nosso legado ser perpetuado.