Vez ou outra surge uma obra de arte que transcende os limites dos meios pelo qual foi divulgada, chegando ao diálogo cotidiano. Formadores de opiniões, espertos e leigos debatem sobre tal obra, com espaços para aplausos e críticas oriundas de todas as partes. A série Adolescência parece ser a obra da vez. Originalmente, escrita para a plataforma de streaming Netflix, esta série há rompido as barreiras das telas domésticas, alcançando páginas e mais páginas de discussão, tanto em respeitadas revistas e jornais, quanto nas redes sociais.

Sem tecer comentários sobre o brilhante roteiro e a estratégia utilizada, fragmentada por visões de distintas partes involucradas na trama, quero destacar que a filmagem simples, com personagens psicologicamente densos, tornou a série esse fenómeno. Ao assistir pensamos: isso poderia passar com qualquer um de nós. Afinal, na série os personagens não são vilões ou heróis; são adolescentes de 13 anos como quaisquer outros, uma família comum e uma escola com sua complexa realidade atual.

A série não é inspirada em uma história real. No entanto, relatos de violência juvenil decorridos a partir de situações experimentadas em redes sociais estimularam o criador, Stephen Graham, a refletir sobre em que tipo de sociedade estamos vivendo. Em minha modesta opinião, penso que Graham há empreendido com êxito: é impossível assistir a essa série sem questionar-se sobre nosso atual modo de vida.

Entendendo que a dinâmica sociocultural em que vivemos não pode ser explicada por interpretações simplistas, tão pouco por um olhar parcial da situação, pretendo aqui comentar brevemente sobre o papel da modelação social no comportamento humano. Segundo o psicólogo Albert Bandura, precursor da teoria social cognitiva, os atos agressivos têm fundamentos sociais, dentre outros. Por meio da observação as pessoas aprendem inúmeros comportamentos, inclusive os agressivos. As três fontes de informação mais importantes para a aquisição de comportamentos por meio da observação são: família, contexto em que vivemos e mídias (internet, jogos, TV e etc.).

Buscando compreender como as pessoas aprendiam comportamentos agressivos, Bandura desenvolveu um experimento durante o qual observava crianças brincando com um João Bobo1. Primeiro, as crianças observaram adultos brincando com um João Bobo. A seguir, brincavam em uma sala, onde havia apenas uma criança e o boneco. As crianças que observaram adultos interatuando de modo camarada com o boneco demonstraram comportamentos tranquilos durante a brincadeira com o João Bobo; já as que assistiram interações violentas brincaram agressivamente com o boneco, batendo-o, falando palavras fortes ou fazendo algum outro tipo de dano. Desde esse primeiro experimento até a atualidade, já foram realizados um sem fim de estudos corroborando que a observação de comportamentos violentos, diretas ou por meio de produções audiovisuais, podem modelar comportamentos agressivos.

Segundo Romeiro e Pimenta2, apesar de não serem “reais”, as redes sociais constituem-se como espaços simuladores da realidade, interferindo na transformação pessoal e coletiva da sociedade. Nestas pode-se constatar que há banalização da violência à tudo e à todos que pensem e/ou atuem de modo diferente à determinado grupo ou indivíduo. Esses pesquisadores alertam sobre o fato de que o algoritmo nos oferece exatamente aquilo que se alinha ao nosso perfil, de modo que as pessoas que usam as redes sociais como meios para promover violência deveriam ser responsabilizados, dado que o fazem com conhecimento.

A esse ponto gostaria de lembrar o episodio da série em que a psicóloga tenta fazer uma avaliação do garoto agressor. Tenho a impressão de que seu objetivo era verificar se o garoto tinha consciência de que havia realizado um assassinato e/ou se entendia o que era a morte. Afinal, ato tão forte realizado por um garoto, que à primeira vista era um garoto como outro qualquer, somente poderia ser justificada se esse garoto estivesse fora de si, com algum transtorno que o impedisse de atuar com consciência. De acordo com Bandura, a violência raramente é desencadeada por impulso. Ao contrário, para realizar um comportamento violento há o emprego de habilidades cognitivas que visam justificar moralmente o ato realizado ou atribuir a responsabilidade à vítima, como foi evidenciado nesse episodio: o garoto sabia o que estava fazendo e parecia não se arrepender, culpando a vítima pelo o que havia passado.

Sem esforçar-me, lembro de um caso real ocorrido nas proximidades de onde moro: o suicídio de uma garota após ter sofrido bullying em decorrência do vazamento de algumas fotos íntimas. Recordo-me do garoto de 15 anos, que desenvolveu bulimia em decorrência do bullying sofrido por meio das mensagens do videogame. Penso que você, leitor, também deve saber de um ou outro caso de sofrimento causado por ações agressivas vivenciadas por meio das redes sociais. No entanto, é importante destacar que os casos extremos, como o relatado na série, são os que ocorrem em menor número (ainda bem!). Há uma grande maioria de adolescentes, tanto garotas como garotos, que sofrem algum tipo de pressão emocional decorrente das redes sociais: uma agressão velada, que atingem nossos jovens mesmo quando dentro da segurança do lar.

O leitor que me acompanha, bem sabe que tenho escrito sobre as belezas e as desventuras das redes sociais3. O acesso instantâneo às informações, sejam estas fatos ou não, as comparações entre realidades sociais tão distintas que têm dificultado a valorização positiva sobre as nossas vidas, cujos estudos têm associado ao maior número de casos de ansiedade e depressão, principalmente em meninas e mulheres. Tenho adotado o chamado ao uso consciente das redes sociais, por adultos e jovens acima dos 16 anos.

Contudo, como os bons dramas literários, o período da adolescência é complexo. Uma faceta que não podemos desconsiderar é a possibilidade de um adolescente que não tenha redes sociais ser excluído das vivenciais tão necessárias à essa etapa de vida, onde se busca entender quem se é fazendo parte de um grupo. Pertencer e ser aceito são aspectos primordiais para o desenvolvimento saudável dos adolescentes. Pode parecer simplista, mas penso que aqui entra o papel do esporte e das artes como atividades que podem auxiliar os adolescentes a se sentirem parte de um grupo, interagindo com outras garotas e garotos de modos reais, auxiliando a construção de uma autoestima positiva. O papel da família e da escola como promotoras de espaços de interações sociais com outros adolescentes, nos quais se possa compartilhar interesses comuns também deve ser considerado.

Acredito que a questão primordial a ser analisada quando refletimos sobre a adolescência é: estamos ouvindo e enxergando-os com suas singulares e múltiplas características? Essa é mais uma dentre as tantas perguntas relativas às humanidades para a qual não há uma resposta objetiva. Necessitamos analisar nossas ações, conscientes ou não, que podem estar ajudando a perpetuar a banalização da agressividade nas redes sociais e fora destas. No entanto, como otimista que sou, creio que como sociedade vamos conseguir escutar e dialogar com nossas garotas e garotos, apoiando-os a lidarem com os desafios da adolescência nestes tempos ainda mais complexos.

Notas

1 Este estudo foi base inicial para a teoria social cognitiva. Para mais informações sobre essa teoria sobre o desenvolvimento humano sugere-se a leitura de Mídias, transformações sociais e contribuições da teoria social cognitiva.
2 Romeiro, Nathália Lima; Pimenta, Ricardo. Medeiros Mídias sociais, violência contra mulheres e informação: prospecção do campo à luz das humanidades digitais. Em Questão, Porto Alegre, v. 27, n. 4, p 107-136, 2021.
3 Para mais informações veja: A grama do vizinho é mais verde ou Os presentes mais desejados no Natal.