Quando olhamos para o espelho, será que enxergamos aquilo que realmente somos? Ou apenas aquilo que já fomos um dia? Essa pergunta persegue quem se deixa atravessar por “La piel que habito” (A Pele que Habito, 2011), filme do cineasta Pedro Almodóvar que convida o espectador a atravessar, com olhos atentos, zonas sombrias da identidade, do corpo e do desejo humano. O longa, baseado no romance Tarântula, de Thierry Jonquet, é daqueles que não permitem respostas simples, daqueles que cutucam feridas e costuram reflexões onde antes só havia silêncio.
A trama se apresenta a partir de imagens inquietantes: um homem, o cirurgião plástico Robert Ledgard (Antonio Banderas), observa em silêncio uma mulher que caminha, inquieta, de um lado para o outro de uma casa-laboratório. Ela se chama Vera (Elena Anaya) e, mesmo sabendo que está sendo vigiada, mantém gestos delicados de resistência — rabisca paredes, cobre bonecos com pedaços de tecido dos próprios vestidos, caminha com olhos grandes e curiosos, como quem busca respostas no vazio. A casa é cercada por câmeras e grades, mas também por cicatrizes invisíveis que ninguém vê. Robert, do outro lado da tela, não apenas monitora, mas vigia, controla, manipula. Ali se inicia um jogo de olhares, expectativas e angústias.
Logo o espectador percebe: aquele ambiente fechado é muito mais do que um laboratório clínico — é uma espécie de cativeiro existencial. Não demora para que o desconforto nos atravessse: há um passado que pulsa, um trauma nunca dito que transborda em cada gesto. Vera, na verdade, é uma cobaia para o projeto pessoal e obsessivo de Robert, que tenta criar uma pele sintética, indestrutível, capaz de resistir a qualquer dor, queimadura ou agressão. Não é à toa que, em entrevistas, Almodóvar sempre cita “Frankenstein”, de Mary Shelley, como inspiração. Robert é esse “deus menor”, fascinado por sua capacidade de criar e de destruir, um homem que carrega o luto da mulher morta e da filha perdida, mas transforma esse luto em obsessão — e, sem perceber, em violência.
Entre as cenas mais marcantes do filme, está aquela em que Vera desenha na parede do quarto, tentando talvez construir um espaço próprio em meio à vigilância. A escolha de ocupar o espaço, de deixar marcas, de resistir de alguma forma, revela que mesmo quem está sob domínio de outro, ainda encontra brechas para afirmar uma subjetividade. Mais adiante, vemos Robert costurando uma nova pele em Vera, tratando-a como objeto, como matéria-prima de sua experiência. Ali, o corpo vira campo de batalha: é espaço de poder, de controle, de violência, mas também de resiliência. Como escreveu Susan Bordo, “o corpo é um texto sobre o qual a cultura escreve suas narrativas” — e Almodóvar faz desse corpo um palimpsesto de dor, desejo, gênero e resistência.
Em outro momento, Vera, já profundamente transformada, olha para si mesma no espelho. Seu olhar é de estranhamento, quase de terror. A cena é silenciosa, mas diz muito: quem sou eu, agora? Onde começa o que fui, onde termina o que me tornei? O espelho devolve não apenas a nova pele, mas a perda de referências, o vazio de uma identidade sequestrada. Judith Butler, filósofa e referência nos estudos de gênero, afirma que a identidade é sempre um processo, nunca um ponto de chegada. O corpo de Vera é forçado a uma transição, uma travessia radical e traumática, e nesse percurso ela se reinventa, ainda que à revelia do próprio desejo.
Almodóvar não poupa o espectador do incômodo: ele explora a tensão entre vítima e algoz, criador e criatura, desejo e consentimento, ciência e violência. Não se trata de um filme sobre heróis e vilões, mas sobre pessoas atravessadas por traumas, impulsos, desejos e tragédias. A obsessão de Robert não nasce do nada; é resposta a uma dor impossível de ser elaborada, ao mesmo tempo em que é absolutamente injustificável. Em uma das cenas mais duras do filme, quando a verdade sobre Vera se revela, percebemos como todos, ali, são produtos de dores passadas, escolhas (impostas ou não), circunstâncias que fogem ao controle. O próprio espectador é desafiado a abandonar o conforto do julgamento moral e mergulhar numa zona cinzenta, onde não há respostas fáceis.
O cinema de Almodóvar é conhecido por recusar rótulos e por não oferecer caminhos lineares para a redenção. Em A Pele que Habito, o diretor mergulha nos temas da sexualidade, do corpo, do gênero e da ciência como quem costura uma colcha de retalhos repleta de significados. A casa-laboratório, com seus corredores frios e ambientes asfixiantes, parece ao mesmo tempo um útero e uma prisão. A trilha sonora, pulsante e melancólica, amplia a sensação de suspense e claustrofobia. Cada detalhe — dos figurinos de Vera aos quadros nas paredes — constrói um universo onde tudo comunica, mesmo o que não pode ser dito.
É impossível assistir ao filme sem pensar nas questões contemporâneas sobre identidade, pertencimento, trauma e reconstrução. Em tempos de redes sociais e vigilância constante, somos todos, em alguma medida, vigiados e observadores, prisioneiros de narrativas externas sobre quem deveríamos ser. Vera é a imagem mais radical desse conflito: alguém cuja aparência foi moldada de fora para dentro, mas que, ainda assim, resiste, reinventa, sobrevive. A pele, aqui, é símbolo de limite, de proteção e, ao mesmo tempo, de cárcere. Como resistir quando a única saída parece ser habitar o corpo imposto pelo outro? Como reconstruir-se quando tudo o que era sólido se desfez?
Ao costurar as histórias de Robert e Vera, o filme nos lembra que todo ser humano carrega cicatrizes — algumas visíveis, outras secretas, mas todas profundas. A obsessão por criar uma pele perfeita, invulnerável, é também a busca de muitos por uma armadura contra o sofrimento, a rejeição, a violência do mundo. Mas a lição que Almodóvar parece sussurrar é a de que não há pele indestrutível para a alma, não existe escudo para a vulnerabilidade do existir. Somos frágeis, somos mutáveis, somos feitos de camadas, de memórias, de cicatrizes que o tempo insiste em reabrir.
Nos minutos finais, quando Vera consegue, finalmente, escapar do controle de Robert, voltando ao lugar onde sua história começou, há um silêncio que fala mais do que qualquer diálogo. É o silêncio de quem atravessou a dor, o trauma, a desconstrução e a reinvenção. Diante da mãe, ela se apresenta: “Sou eu.” Não importa o nome, não importa a pele. Importa o direito de dizer quem é, de escolher, de habitar o próprio corpo, de buscar algum tipo de paz após o turbilhão. É um renascimento possível, mesmo que marcado por perdas irreparáveis.
A Pele que Habito é um filme que permanece conosco muito depois dos créditos finais. Nos obriga a encarar nossas próprias zonas de desconforto, a pensar sobre os limites do desejo, do poder, da ciência e da identidade. O olhar de Vera para o espelho ecoa na nossa experiência cotidiana: somos aquilo que enxergamos ou aquilo que escolheram para nós? Podemos nos reinventar ou estamos condenados a repetir eternamente nossas cicatrizes? A resposta, talvez, nunca seja definitiva. Mas o convite para olhar com mais cuidado — para dentro, para fora, para além da superfície — é o verdadeiro presente de Almodóvar.
Fontes consultadas
Unbearable Weight: Feminism, Western Culture, and the Body.
Estética da teratogonia: uma analogia entre Frankenstein e "A pele que habito".
Bodies That Matter: On the Discursive Limits of “Sex”.
Cinema em Cena.
O Tempo e o Cão: A Atualidade das Depressões.
A Pele que Habito: resumo e explicação do filme.