Quando um filme de terror é realmente bom, não importa se a luz está acesa ou apagada: o medo vai se infiltrar nas profundezas do inconsciente, assombrando os pensamentos e até invadindo os pesadelos. O Iluminado, de Stanley Kubrick, é um desses filmes que, após mais de 40 anos desde seu lançamento, ainda exerce esse poder macabro sobre os espectadores. Quem não se lembra da famosa cena em que Jack Nicholson, com o rosto enlouquecido, grita “Heeeere’s Johnny!”? Essa frase é apenas uma das várias imagens icônicas que permaneceram gravadas na história do cinema de terror.

Lançado em 1980, O Iluminado é baseado no romance homônimo de Stephen King, mas o filme vai além do material original. Kubrick, conhecido por seu perfeccionismo e abordagem única, pegou a obra de King e moldou-a com uma criatividade que só ele poderia oferecer. A combinação de elenco, fotografia, cenários e figurinos não é meramente funcional: tudo parece ter sido cuidadosamente encaixado em um quadro de terror, perfeito e intransponível, como uma cena de pesadelo sem fim.

O personagem Jack Torrance, interpretado magistralmente por Jack Nicholson, é um escritor desempregado que aceita um trabalho como zelador do Hotel Overlook, um luxuoso e isolado hotel nas montanhas. Ele se muda com sua esposa Wendy (Shelley Duvall) e seu filho Danny (Danny Lloyd), esperando que o isolamento do inverno rígido seja o ambiente perfeito para concluir seu livro. No entanto, o que parecia ser uma oportunidade de tranquilidade acaba por se transformar em uma espiral de loucura e horror. No início, Jack é mostrado como um pai e marido bem-intencionado, mas à medida que o tempo passa, sua personalidade começa a revelar uma dualidade perturbadora.

Não se sabe ao certo se sua transformação é resultado de uma doença pré-existente ou se é causada pelas forças sobrenaturais do hotel. Contudo, o que vemos é um colapso psicológico progressivo: de um homem relativamente estável para um psicopata obcecado, consumido por uma sede de violência. A atuação de Nicholson é impressionante, com expressões faciais desconcertantes, falas desconexas e uma presença que beira o aterrorizante. A famosa cena do machado, quando Jack invade o banheiro e grita "Heeeere’s Johnny!", é uma das mais lembradas do cinema, sendo um exemplo perfeito de como o filme trabalha a tensão e o medo crescente.

O conceito de dualidade, o eterno embate entre o bem e o mal, é uma constante em O Iluminado. Kubrick mergulha nesse arquétipo, utilizando os personagens e elementos do filme para explorar as facetas opostas da natureza humana. Essa dualidade se manifesta de várias formas: no reflexo de Jack no espelho, nas duplicações de tempos e espaços, e até na interação entre os personagens. Por exemplo, na cena em que Jack conversa com o zelador Delbert Grady no banheiro, vemos imagens duplicadas, tanto fisicamente quanto em sua narrativa, o que cria uma sensação de desorientação e estranheza.

A cena de Jack e Grady é uma das mais perturbadoras, especialmente quando Grady revela a Jack que ele "sempre foi o zelador" do hotel. Essa troca de identidades e o confronto entre as versões do próprio personagem traz à tona o tema da reencarnação e da inevitabilidade do destino. O hotel, com sua história aterrorizante e suas aparições fantasmagóricas, serve como um espelho da mente de Jack, refletindo suas obsessões e sua queda.

Danny Torrance, o jovem com dons psíquicos, é outro exemplo claro da dualidade do filme. Ao contrário de seu pai, Danny tem uma percepção aguçada do que acontece no hotel e se comunica com seu amigo imaginário, Tony, que o orienta e o adverte sobre os perigos do lugar. A relação de Danny com Tony é uma representação da sua luta interna, sendo o único capaz de compreender as forças sobrenaturais e o terror que se desenrola no Overlook.

O personagem de Danny é também um ponto-chave no desenvolvimento do tema da “visão além”, que no caso de Danny se traduz em uma capacidade de enxergar o passado, o presente e o futuro. Isso é simbolizado na famosa cena em que ele passeia pelo hotel e encontra as gêmeas fantasmagóricas, que o convidam a “brincar com elas... para sempre”. O uso das gêmeas, com sua presença inquietante e frases repetitivas, é um exemplo clássico da construção de uma atmosfera de terror psicológico que fica marcada na memória do espectador.

O Iluminado não seria o mesmo sem o elenco que Kubrick reuniu. Jack Nicholson, embora tenha sido um nome consagrado, levou o personagem de Jack Torrance a um novo patamar, mesclando loucura e humanidade de uma forma única. O próprio Kubrick considerou outros grandes atores para o papel, como Robert De Niro, Robin Williams e Harrison Ford, mas, felizmente, Nicholson foi o escolhido.

A jovem atriz Shelley Duvall, que interpretou Wendy, enfrentou dificuldades durante as filmagens, principalmente devido ao rigoroso estilo de direção de Kubrick, que, segundo relatos, levou o elenco a situações estressantes para aumentar a tensão no set. Duvall ficou visivelmente exausta e até doente devido à pressão, mas sua performance foi crucial para a representação de uma esposa e mãe desesperada por salvar sua família. Danny Lloyd, que deu vida a Danny Torrance, é outro exemplo de um ator que marcou o filme com uma interpretação impecável, especialmente considerando sua pouca idade. Curiosamente, Lloyd só assistiu à versão final do filme mais de uma década depois das filmagens, dado o caráter extremamente psicológico e, por vezes, perturbador das cenas.

Um fato curioso sobre a produção é que Kubrick fez seus atores assistirem a filmes influentes do gênero de terror, como Eraserhead (1977), de David Lynch, O Bebê de Rosemary (1968), de Roman Polanski, e O Exorcista (1973), de William Friedkin. Essas influências são evidentes em O Iluminado, especialmente na maneira como Kubrick manipula a atmosfera e o suspense, criando uma sensação de desconforto constante.

Apesar de ser inicialmente criticado, O Iluminado recebeu ao longo do tempo o reconhecimento que merece e hoje é considerado um dos maiores filmes de terror de todos os tempos. Curiosamente, o filme foi indicado a dois prêmios Framboesa de Ouro, como “Pior Atriz” (Shelley Duvall) e “Pior Diretor” (Stanley Kubrick), mas também foi premiado com o Saturn Award de Melhor Ator Coadjuvante para Scatman Crothers (Dick Hallorann).

O Iluminado é um filme que vai além do terror convencional. Ele explora as profundezas da mente humana, revelando o que há de mais sombrio e perturbador em cada um de nós. O hotel Overlook não é apenas um cenário; é um reflexo da insanidade, um lugar onde os limites entre realidade e ilusão se desintegram. A obra de Kubrick não apenas define o gênero de terror psicológico, mas também se estabelece como um dos maiores exemplos de como o cinema pode explorar as complexidades da psique humana de maneira aterrorizante e fascinante.