Era um dia solarengo de Inverno, um frio que só acompanhava as sombras que Justino contornava alimentando-se do sol – não tinha mais que 11 anos, naquela altura.

O pai trabalhava no cemitério, era coveiro. Quatro pessoas morreram de uma tragédia na aldeia; o dia ia ser longo. “Vai brincar, meu filho. Tenho de cavar hoje que amanhã vai ser dia de semear. Só preciso de ti depois para tapar as campas, ‘tá bem'?”

Justino, caminhou pela mata trespassando propriedade selvagem. Andou serpenteando as sombras até chegar à nascente, no topo da montanha - levava consigo uma pedra redonda riscada que brincava entre mãos. Seguia o som da água nascente, o lugar onde Justino, também ele, tinha nascido.

A mãe é a montanha de olhos quentes de água, assim dizia o pai.

Daquela água renasciam os mortos que assobiavam por entre as ranhuras de dor. Era um rio de lágrimas limando as arestas das pedras arredondando-as como o mundo. Ali, Justino, observava o mundo sem as arestas da vida.

A montanha dava lugar ao nascimento de quem já tinha partido, da nascente as lágrimas dos mortos. De quem renascia água, rio e pedra.

Justino gostava de subir até ao topo. Assobiar a música das alturas e observar as árvores lá em baixo sopradas pela força da montanha, do embate da água na água. Colocava um pé na beira do precipício e empoleirava-se para ver a tromba de água cair.

Foi nesse dia de céu limpo e horizonte infinito que, ao longe, avistou uma árvore maior que as outras, mais distante do rio, sozinha, imponente de tronco e altura, mas parca de folhagem. Uma árvore que o chamava de braços abertos com os seus braços finos. Um irmão perdido dos seus irmãos.

Deixou a pedra sobre o cume de uma rocha, a crista da montanha. Assim o fazia sempre: era como devolver à montanha as suas peças perdidas. Agradeceu à sua mãe e desceu, lentamente, contornando os trilhos estreitos junto à queda de água.

Lá de baixo, a vegetação cobria qualquer hipótese de avistar o embondeiro. Justino era sabido daqueles caminhos e sabia como reencontrá-lo.

O caminho verde vivo acastanhava-se, a humidade desaparecia, do musgo a secura, e o chão abrindo-se em placas como quem perde a pele.

Naquele pedaço de terra o chão parecia envenenado.

Ao fim de um tempo a vegetação era quase inexistente, Justino ouvia o cantar de um pássaro - um som mais choroso que melódico - num cenário seco, empoeirado, onde o sol queimava de forma sombria e mórbida. O pássaro após um susto aproximou-se, poisando no ombro de Justino. Falava-lhe ao ouvido com um piar esgaço: estava prenha, mas não tinha forças, batia as asas sem voar.

Justino esmagou as poucas castanhas de caju que trazia no bolso e ofereceu-as à pequena fêmea de asas amarelas. Enquanto picava as migalhas, contou-lhe que os homens cortaram o acesso do rio e tudo começou a morrer, também eles morreram envenenados pela vingança da terra.

Justino assustado ouvia perplexo e lembrou-se dos afazeres do seu pai.

O Inverno era seco e faltavam alguns meses para a época das chuvas. Só a chuva podia lavar a terra e fazê-la renascer.

Ambos observavam o embondeiro, o único sobrevivente naquele ambiente hostil.

Com alguma força recuperada a fêmea voou para o cimo da árvore. Justino aproximou-se e deixou o resto das castanhas no ramo que conseguia alcançar; acariciou o tronco daquela árvore mágica e sentiu a força da natureza, o prolongamento das raízes, um conforto de amizade. Agradeceu a esse irmão grande e proferiu: eu volto amanhã com mais comida.

O sol estava baixo e Justino tinha de voltar. A viagem ainda era longa e precisava de chegar enquanto houvesse luz. Aquela propriedade selvagem escondia-se numa escuridão em que os caminhos se apagavam aos olhos de qualquer ser humano.

Ao voltar assobiava uma música, ao longe ouvia o repetir da sua melodia cantada pelo pássaro.

Justino chegou, o pai descansava junto ao poço da sua casa, limpava-se com a água que retirava de um balde içado a assobios de cansaço. As mãos dele sangravam, os calos abertos em bolhas, o sofrimento físico de quem trabalha nas despedidas.

Para amenizar o cansaço do pai, Justino colocara mais paus numa fogueira, e uma panela com água aquecia. Ligava os candeeiros de petróleo do interior da casa e misturava xima com ovo cozido para a ceia. Ali, as refeições eram simples, nutritivas o suficiente para aguentar o dia seguinte.

Raramente comiam carne, a não ser uma galinha do mato que alguns vizinhos pagavam em troca de uma cova para um familiar.

As mortes eram raras por ali, quase tão raras quanto as pessoas que ainda viviam na aldeia.

No dia seguinte, com sol acordado, as pessoas acumulavam-se às portas do cemitério, eram muitas: familiares e amigos retornavam à terra para se despedir das vítimas do trágico acidente. O seu pai combinava com o padre a ordem das missas: ia ser um dia longo, dias de enterro eram sempre pesados, chorosos.

Justino pensava naqueles dois amigos dele, o embondeiro e o passarinho, precisava cumprir a promessa, mas sabia que tinha de ficar e ajudar o pai.

As portas do cemitério abriram e uma mancha negra de pessoas entrou, marchando lentamente o adeus. Mulheres cobertas de preto enxugavam as lágrimas, crianças em silêncio e assustadas pelo contacto com a morte, homens cabisbaixos segurando a família.

Quando Justino e o pai se aproximaram com o primeiro caixão, um grito de dor tão profundo quanto as entranhas da montanha, ecoou: um grito de gruta funda - o primeiro que permitiu que todos soltassem a dor; do mais velho ao mais novo, os gritos graves e arranhados vindos das profundidades de um inferno. O pai puxou Justino que os olhava atónito; não compreendia aquela dor. Para Justino, a morte era um recomeço.

O pai enrolou o caixão na corda que Justino segurava. Um pandemónio de sofrimento absurdo, incapacitava-o de ouvir a voz do pai: as pessoas caíam de joelhos na beira da cova, gritavam tão alto que o som ecoava nas lápides, nas árvores, nos ouvidos. Os pássaros em redor voaram para longe.

O choro era tanto que do céu caíram lágrimas, toda a aldeia chorava, as casas, as ruas, os mortos, o chão, a montanha, o mundo, numa chuva torrencial de tristeza.

O chão tornou-se lamacento; Justino e o pai, carregavam os corpos mortos, pesados: o pai, de baixo, carregava o caixão, Justino, por cima, libertava a corda, mas os pés afundavam-se na lama, a corda escorregava das mãos de Justino e era o pai que se enterrava também junto com os mortos.

A muito esforço conseguiram deitar os mortos.

Caixões naufragados num mar de lágrimas e terra.

A população foi embora sem olhar para trás, haveria um banquete, uma união, um último brinde e apenas um som agudo e constante nos ouvidos de Justino: o som do vazio, do adeus eterno. Justino e o pai pintados da cor do barro, do suor e cansaço assistindo à mancha viúva desaparecer.

Os olhos do mundo secaram. Apenas os dois no silêncio da morte.

O pai serviu-se de utchema (bebida fermentada de sorgo) e ofereceu ao filho que rejeitou com cara feia. Escolheu dar uma volta, lavar-se no rio.

De tanto choro o rio transbordou inundando os acessos para a montanha, os acessos ao embondeiro também estavam alagados. Justino desalentado não conseguia atravessar.

Quando a chuva é choro o mundo para, contudo o pensamento de que toda aquela água chegaria aos campos pertos do embondeiro, revigorou o seu ânimo. Encontrar-se-iam num outro dia já renascida a terra, fortalecido o pássaro.

Ao voltar para casa, encontrou o pai junto ao poço, dormia meio lavado na água meio lavado na utchema, dormia desmaiado. Justino puxou um estrado feito de caniço e empurrou o pai para cima dele, para que não dormisse no chão.

Içou o balde do interior do poço, com as mãos ainda doridas, as roldanas assobiavam com a corda gasta e a ferrugem que se apoderava do caduco. Molhou-se retirando a lama, limpou as feridas, as roupas, as ferramentas e arrumou tudo junto ao pequeno portão que dava acesso ao cemitério.

Deu um toque no pé descalço do pai, acordando-o de sobressalto. Com um puxão de mão, levantou-o. No caminho para casa sentiu o braço do pai sobre os seus pequenos ombros.

Justino escondeu a alegria daquela carícia que, embora estranhos entre eles, sabia ser um reconhecimento de homem para homem.

O dia parecera uma semana, foi longo e o sol já se escondia por trás da montanha. Uma brisa soprou-os mesmo antes de fecharem a porta de casa.

Nesse dia não comeram de tanta exaustão, dormiram na rede junto à lareira.