Depois de uma noite chuvosa, Aglair desperta cedo e encontra a cozinha toda alagada. Se dá conta que o último conserto do telhado feito pelo Seu Zé não tinha resolvido o problema. Eram cinco horas da madrugada e tinha apenas trinta minutos para sair de São Pedro da Aldeia para o Rio de Janeiro e chegar no Largo do Machado no máximo as oito da manhã. O final de semana não tinha sido muito bom. A chuva não tinha dado tréguas, impossibilitando o planejado churrasco de aniversário do seu sobrinho, que para completar tinha ficado resfriado. Apressadamente enxuga o piso da cozinha, mal toma um café puro, deixa um bilhete para sua mãe procurar o Seu Zé e se despede dizendo que regressaria na sexta-feira.
Na estrada, já próximo da alça de acesso da Ponte Rio-Niterói ouve um forte estrondo e na sequência sente seu carro desestabilizar. Se dá conta que o seu pneu do lado esquerdo havia escandalosamente furado. Enquanto ouve gritos impacientes dos outros motoristas, conduz calmamente o veículo para o acostamento e desce do mesmo. Vai até o porta-malas e inicia o processo de pegar o pneu reserva e o macaco hidráulico. Respira fundo e inicia a ginástica da troca dos pneus já toda pronta com o terninho do trabalho. Imagina “Será que se estivesse de minissaia com blusinha algum homem pararia para me ajudar, evitando que me sujasse?”
Volta a dirigir e percebe que o pneu reserva não está bem calibrado. Conduz lentamente e com muita atenção pela ponte e segue escutando gritos dos demais motoristas “Lerda!”; “Piloto de fogão!”; “Vá para casa! Comprou a carteira!”. Chega ao Rio e busca pelo primeiro posto de gasolina para apenas calibrar os pneus em uso. O borracheiro para arrumar o pneu furado ficará para a hora do almoço. Por fim, chega à agência bancária às nove e trinta. O gerente principal já havia chegado e a encara feio, olhando-a de cima abaixo como se recriminasse seus cabelos desalinhados e a roupa meio suja e amarrotada. Além, obviamente, do atraso para uma gerente operacional que deve chegar antes de todos para organizar a agência. Respira fundo e decide não comentar seu início da manhã.
Resolve começar o seu trabalho verificando a movimentação do Caixa Eletrônico do final de semana. Organizando os envelopes de depósito se depara com um envelope vazio, observa com mais atenção e percebe que há coisas escritas no envelope:
Aglair, esta agência é uma bagunça! Não tem dinheiro no Caixa Eletrônico! A agência está imunda! Nada funciona! Uma esculhambação! Há muito tempo isto ocorre. Estou de olho em você. Sei a hora que você chega e sai, onde almoça, onde mora. Fica na casa de praia em São Pedro da Aldeia no final de semana e deixa a agência largada. Assinado: Heuqirne
Seu corpo gela, começa a suar frio e guarda o envelope-bilhete. Termina o serviço do Caixa Eletrônico e de tempos em tempos, entre as demais atividades funcionais, volta a ler o bilhete.
A manhã passa, segue assustada, examinando cada pessoa e cliente que entra no banco. Passa a suspeitar de todos, mas não consegue localizar quem teria deixado aquele bilhete. Se vê em risco. Imagina se algum frequentador do banco a mantém na mira, observando-a com atenção, analisando seus costumes, seus hábitos, seus horários para um dia sequestrá-la e ter acesso ao banco, ao cofre, afinal possui as chaves.
Mal consegue almoçar. Pede um prato qualquer no restaurante, mas a comida não desce. Com muito esforço come um terço do prato. Pensa se deve comunicar ou não o fato ao gerente principal. Fica com receio de ser julgada descuidada por ele por ter se deixado observar com tanta precisão. Receia que, em função deste fato, ele pode solicitar sua transferência e ela não gostaria de trocar de agência.
Uma semana se passa e as dúvidas de Aglair apenas aumentam. Desperta pelas manhãs de forma assustada, imaginando qual caminho deve fazer para perceber se está sendo seguida ou qual caminho seria mais seguro em caso de estar sendo seguida. Entra e sai assustada da agência todos os dias, sempre refletindo se alguém está à espreita para surpreendê-la. Segue encarando cada pessoa que entra na agência, como se fosse capaz de detectar o seu perseguidor secreto através das nuances do seu semblante. Põe em xeque se não deveria ter comunicado ao gerente principal e mesmo ido à delegacia para registrar um boletim de ocorrência. Talvez compartilhar o ocorrido a fizesse se sentir mais segura.
Numa manhã chegando ao trabalho percebe um homem se aproximando enquanto caminha do estacionamento para a agência. Apressa os passos. O homem grita “Moça! Moça!”. Começa a se tremer, pensa para onde pode correr. Quando esboça um grito, o homem interrompe “Moça! Moça! Onde fica o Mercado São José?” Não dá ouvidos, não olha para trás, não responde, apenas apressa ainda mais os passos e entra ofegante na agência.
Após duas semanas de apreensão, dúvidas e calafrios, almoçando com uma colega, gerente de contas da mesma agência, é surpreendida por uma pergunta “Aglair, você recebeu um bilhete do Henrique?”. Volta a gelar, suar frio, seu coração dispara, nem escuta o nome “Henrique”. “Como ela sabe deste bilhete? Não contei para ninguém?”. Pergunta disfarçando inocência e desconhecimento “Que bilhete?”. Sua colega responde “O bilhete que o Henrique lhe deixou outro dia no Caixa Eletrônico!”. Henrique era marido da sua colega. Costumavam sair juntos para alguns happy hours e já tinham ido em sua casa de praia.
Aglair pergunta “Foi Henrique que fez isto?”. Sua colega segue explicando, “Sim! Ele me disse que esteve aqui no Caixa Eletrônico para sacar dinheiro num fim de semana e não tinha cédulas. Aí resolveu te deixar um bilhete reclamando. Como já tinha se passado duas semanas e eu não comentava nada sobre o bilhete, resolveu me perguntar hoje pela manhã.”
Sua mente dá voltas, relembra toda a angústia, sofrimento e preocupações das últimas duas semanas. Segue gelando, só que desta vez numa mistura de alívio e raiva e pequenas câimbras que vão se dissipando à medida que vai assimilando o ocorrido... então dispara: “Filho da puta!
Inspirado em um fato compartilhado com a querida amiga “Aglair”. Histórias inesquecíveis!