É um lugar comum escutarmos no discurso público que a resposta para enfrentar as mais diferentes mazelas sociais é a “educação”. Violência, desigualdade social e financeira, assim como o desemprego, são todas questões que podem ser, totalmente, ou parcialmente, resolvidas com ela. Da mesma forma não é nada estranho presenciarmos debates sobre uma suposta “crise da educação”, muitas vezes definida pela nociva desconexão entre a realidade dos alunos e o que é ensinado, como se a falha de um implicasse em um aumento do outro, ou seja, presenciamos a construção de um ciclo que todos os problemas levam a uma solução.
Apesar da tentadora simplicidade desta explicação, há uma outra questão, muito mais importante, que aparece quando atrelamos tais problemas à “má qualidade escolar".
Se colocamos a educação, e por consequência a escola já que esta é responsável por fornecê-la, como a causa e a solução para determinados problemas sociais, qual papel o atual sistema educacional empenha na manutenção do atual status quo? E o que significa dizer que nosso atual sistema está “em crise”?
Quando apresentamos o termo “crise” para caracterizar o cenário apresentado anteriormente, terminologia frequentemente usada para enquadrar grande parte dos trajetos educacionais no século XXI, percebemos que o cerne do problema não é realmente a qualidade do ensino público (que é uma dificuldade que deve ser confrontada, tanto de forma financeira quanto pedagógica, contudo, ela é, na verdade, uma esfera posterior ao que o pretendemos analisar), pois o problema é a própria essência do termo “educação” e como a relação entre seu emprego formativo, sua práxis e seus objetivos, moldam sua atuação.
Visto que refletir sobre “educação” significa enquadrá-la em seu tempo histórico, uma vez que este é o palco em que os atores políticos atuam, podemos dizer que a crise reside na intersecção entre aquilo que a educação formal é, ou seja, seu peso histórico e suas limitações institucionais, e o próprio sentido do termo “educação”, considerando-o como elemento formativo frente à sociedade. Portanto, devemos pensar sobre este termo dentro da relação passado e presente, para determinarmos qual o propósito social da educação brasileira atual.
O conceito de educação pode conter vários significados dentro de um mesmo contexto social, e seu uso durante os séculos representa uma elasticidade que caracteriza seus múltiplos usos e objetivos. Ao resgatarmos suas as raízes gregas, por exemplo, que impregnam até hoje parte da nossa noção de ensino, como a ideia de filosofia como um sinônimo para toda a produção filosófica grega ou a relação entre mestre e pupilo, galgada em uma relação de transformação através daquilo que é lecionado, percebemos o quanto certas molduras, por mais distantes e anacrônicas que sejam, ainda perduram em nosso imaginário.
São muitas as críticas que podemos fazer quanto a permanência de tais ideias, assim como possíveis soluções para superá-las, já que a realidade atual está longe da antiguidade grega, entretanto, nos limitaremos a entender qual é a relação entre essa noção de educação e a dos gregos.
Para os gregos, encontramos o conceito de paideia, uma noção global dos elementos constitutivos da vida cívica de um cidadão grego na antiguidade, como artes, literatura, política e tradição. Esta concepção holística não fazia parte de uma modalidade teórica e proveniente do campo abstrato do saber, mas era parte da estrutura histórica objetiva da vida espiritual de uma nação.1
Isso quer dizer que para os gregos, a educação não era um objeto alheio ao mundo prático e sim um objeto constitutivo de sua realidade, parte da mesma estrutura responsável por sustentar o mundo cívico, entendendo-a como parte do coletivo, de que a construção do cidadão significava sua inserção em um mundo comum e não independente.
Diferente das ideias meritocráticas que inundam parte das respostas à “crise na educação”, o coletivismo aparece outrora como o cerne do que podemos chamar de “educação greco antiga”. Uma oposição interessante quando pensamos sobre o conceito formativo que molda o sistema educacional brasileiro, em que o objetivo da educação, segundo a Constituição nacional, é formado por três pilares: (...) pleno desenvolvimento da pessoa, (...) preparo para o exercício da cidadania e (...) qualificação para o trabalho.2
Um sistema que considera a criança como um adulto em potencial, em que o ensino, em última instância, significa prepará-lo para a “o mundo dos adultos”, como apresentado por Hannah Arendt, em seu livro Entre o Passado e o Futuro3, ao abordar a crise na educação estadunidense. Com isso, cabe uma reflexão sobre qual é e quem é este adulto em formação? E mais, se a herança da filosofia grega ainda é sentida, em alguns aspectos, quando olhamos para a nossa noção sobre sistema educacional, há espaço para questionar tal papel? Afinal, a noção socrática de questionar ao invés de responder não corresponde aos ideais neoliberais da do mercado de trabalho, por exemplo.
A plena construção cívica, como estabelecida pela Constituição, requer primeiramente o reconhecimento de que a formação da essência intelectual e subjetiva dos indivíduos que compõem uma sociedade não é totalmente enraizada em um mesmo sistema ontológico, e que considerar a multiplicidade na construção do conhecimento significa, em última instância, abandonar as instâncias hierárquicas que formam o próprio sistema intelectual que o compõe, pois tal sistema é um reflexo do privilégio proveniente desta hierarquia.
É o que o filósofo Mogobe Ramose trata, em seu texto Sobre a Legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana, ao discutir a questão da legitimidade da “filosofia africana” frente à “europeia”.
Ao dizer que “a dúvida sobre a existência da Filosofia Africana é, fundamentalmente, um questionamento acerca do estatuto ontológico de seres humanos dos africanos”4, o autor apresenta uma inquietante questão que pode ser posta na realidade educacional brasileira quando consideramos toda a história da instituição escolar no século XX, quando esta passou de uma instituição destinada à instrução da prole burguesa, um segmento pequeno da população, para uma instituição com uma perspectiva nacional.
O marco da Constituição de 1934, ao integrar e concretizar o acesso gratuito e a obrigatoriedade da educação5, é implantar a sistematização da escola como um veículo de homogeneização social, ao instituir um mesmo conjunto de saberes para todo o alunato, a integração do conhecimento às novas modalidades de trabalho que surgiam com a industrialização brasileira e a lapidação da ideia de educação formal como parte integrante da constituição do sujeito perante o mundo social.
Este é o modelo educacional que, de certa maneira, ainda é sentido em alguns aspectos do atual, contudo, cabe voltarmos à frase de Ramose citada anteriormente para pensarmos quais os conhecimentos que foram excluídos da formação escolar brasileira. Há como sustentar um sistema que tem como base um princípio homogeneizante quando certas demandas progressistas, como a dos movimentos negro, por exemplo, que lutam pelo reconhecimento e legitimação de sua história e sua cultura e seus saberes como partes essenciais da sociedade, não integram de forma igualitária o conjunto de saberes oferecidos pelo ensino básico, que ainda é, em última instância, uma estreita e excludente visão do conhecimento?
Citando mais uma vez Ramose, *do ponto de vista da pluriversalidade de ser, a filosofia é a multiplicidade das filosofias particulares vividas num dado ponto do tempo.”4, com isso, ao lutar contra a ideia de uniformidade, e apontar para o pluralismo e a coexistência de conhecimentos que compõem uma complexa rede de experiências não uniformes, o autor nos apresenta um interessante caminho quando questionamos os objetivos educacionais e a formação infantil e juvenil no Brasil, principalmente quando pensamos na composição dos alunos e a heterogeneidade que não pode ser ignorada em um ambiente escolar, principalmente quando consideramos o crescente número de alunos matriculados no ensino básico nas últimas décadas5.
A concepção de educação como instrumento para o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania, como inscritos na Constituição, são noções que remetem diretamente aos escritos de Kant em Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?6, publicado em 1783 como uma espécie de “texto panfletário” aos princípios iluministas de alguns países europeus.
Kant chama o conceito de “Esclarecimento” como “a saída do homem da menoridade”. Segundo o filósofo, a educação como processo universal implica em uma mudança sistêmica e progressiva. Ao relacionarmos a análise kantiana ao sistema de ensino brasileiro, percebemos que a emancipação e o uso da razão em prol da liberdade devem abrigar toda a pluralidade presente na sociedade, uma reforma sistêmica e não individual, algo que pode ser resumido por outra passagem de Kant, em que:
uma época não pode se aliar e conspirar para tornar a seguinte incapaz de estender seus conhecimentos (sobretudo tão urgentes), de libertar-se de seus erros e finalmente fazer progredir o Esclarecimento.”6
Segundo Theodor Adorno, em Educação após Auschwitz7, a emancipação deve ser entendida como a base em que a vida cívica deve ser construída. Ao tratar do genocídio arquitetado pelos nazistas contra judeus e diversas minorias, o autor argumenta que a maneira de evitar a repetição de tal ato é de tratá-lo não como uma anomalia, mas como um fato histórico que tem suas raízes nos traços e ritos sociais dos perseguidores.
Reproduzindo as palavras de Adorno, “a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão.”7. Ao mantermos e reproduzirmos pressupostos que, para muitos, representam os pináculos da educação, servimos apenas como perpetuadores da barbárie. Se considerarmos “Auschwitz” como um termo representativo de uma clivagem para a tomada da consciência emancipatória, torna-se claro que a verdadeira crise reside aqui, há uma desconexão entre o mundo pós Auschwitz e o modelo educacional que continuamos a reproduzir.
Quando consideramos os problemas sistêmicos que oprimem as minorias sociais no Brasil, muito se é dito sobre o reconhecimento do pertencimento dos sujeitos minorizados, mas pouco se fala sobre a estrutura de violência que possibilita a opressão. Se não podemos culpabilizar a vítima, por que a deixamos no centro da discussão? Enquanto apenas lutarmos para a inclusão dos incluídos, sem lutarmos contra o sistema que os exclui, continuaremos remediando o inevitável.
A opressão do ambiente escolar não é novidade nem fato desconhecido, qualquer adolescente o revelaria em poucos minutos de conversa. Não à toa, tal sentimento é justamente um reflexo da incompatibilidade entre um futuro de liberdade e uma instituição construída em bases hoje anacrônicas.
Segundo Adorno, “Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo — seja isto verdade ou não — felizes”.7
A manifestação do indivíduo contra o que o autor chama de “poder cego de todos os coletivos”, manifesta-se no ambiente educacional com maior veemência quando o alunato não corresponde mais ao coletivo passivo de outrora, enquanto do outro lado, a estrutura escolar não consegue vislumbrar uma maneira de lidar com tal mudança.
Se antes a violência que estruturava o ensino não era questionada, mas aceita como meio legítimo e eficaz, sabemos que esta só serviu para legitimar a exclusão contra aqueles diferentes do coletivo. Portanto, quando falamos em crise e quando o debate sobre a educação é colocado em pauta, a pluralidade social e a necessidade de reconhecimento da existência individual são postas na mesa, como se tais elementos não fossem uma contradição ao modelo educacional praticado pela instituição “escola”, desde sua concepção moderna no século XIX.
O papel da escola é constituído, em última instância, pelos seus limites constitucionais, contudo, é a própria instituição, e seus instrumentos formadores, assim como seu peso histórico e simbólico, que enquadram seu verdadeiro papel social.
Ou seja, quando voltamos à pergunta inicial, sobre como analisar o que chamam de “crise”, concluímos que o anacronismo inerente às instituições que carregam a função de “formar” pessoas para uma existência cívica futura, perpetuam instrumentos do passado que são, cada vez, desconexões com o modelo de sociedade que almejamos, as distorções geradas no seu próprio processo formador, não conseguem se enquadrar em uma realidade que tende a cada vez mais rejeitar seus próprios moldes rígidos.
Notas
1 Jaeger, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Trad. Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
2 Botelho, J. C.; Ribeiro, L. L. G.; Castro, M. I. A. S.. Guia Prático: o Direito de Todos à Educação. Diálogo com os Promotores de Justiça do Estado de São Paulo. Ministério Público do Estado de São Paulo, São Paulo, 2012.
3 Arendt, Hannah. A crise na educação. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1972.
4 Ramose, Mogobe. “Sobre a legitimidade e o estudo da Filosofia Africana”. In: Ensaios filosóficos, v. 4, 2011.
5 Adrião, T.; Oliveira, R. P. O ensino Fundamental. In: Oliveira, R. L. P. de; Adrião, T.. Organização do ensino no Brasil: níveis e modalidades na Constituição Federal e na LDB. 2ª Ed. São Paulo: Xamã, 2007.
6 Kant, Immanuel. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento? Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Brasília: Casa das Musas, 2008.
7 Adorno, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.