A corrida por dados pessoais transformou a internet em um nova mina de ouro. Gigantes da tecnologia como Google, Meta e X competem vorazmente para extrair cada fragmento de informação sobre nossas vidas digitais. Cada clique no smartphone, cada pesquisa online e cada mensagem trocada viram insumos valiosos para um sofisticado sistema global de controle e monetização. Desse processo, ressurge uma antiga forma de dominação: o colonialismo, agora adaptado ao mundo digital, que sorrateiramente perpetua e atualiza velhas dinâmicas de poder.

A extração de dados pessoais vai além de um mero processo de acumulação: é o alicerce para a o desenvolvimento de tecnologias que impulsionam economias baseadas na vigilância e no consumo. Esse modelo é orquestrado por corporações multinacionais, predominantemente sediadas no Norte Global, que controlam a infraestrutura digital, lucram em escala massiva e mantêm as nações em desenvolvimento em uma posição de dependência tecnológica.

Em 14 de janeiro de 2025, por exemplo, a Casa Branca, em Washington, nos Estados Unidos, emitiu uma normativa nacional estabelecendo diretrizes claras sobre a exportação de tecnologias avançadas desenvolvidas no país1. A medida busca consolidar o domínio global norte-americano, ao mesmo tempo que mantém os países menos industrializados dependentes dessas inovações. Ainda que se trate de uma estratégia comercial legítima, a normativa, de caráter protecionista, reforça as desigualdades e desincentiva a colaboração mútua entre as nações.

Os novos modelos coloniais: da exploração física ao controle digital

Embora ambas as formas de colonialismo compartilhem o objetivo fundamental de dominação e extração de recursos, seus métodos podem diferir significativamente. O colonialismo histórico, aquele praticado por impérios sobre colônias, dependia da ocupação física, da presença militar e do controle direto sobre os territórios. As potências coloniais estabeleciam portos, bases militares e infraestrutura para facilitar a extração de recursos naturais e a exploração do trabalho local.

O colonialismo digital, por outro lado, dispensa a presença física. Ele opera por meio de uma infraestrutura de informação que permite a transferência de dados e a vigilância de forma remota. Os antigos estados-nações, que antes eram os principais agentes de poder, passaram a ser clientes. Agora, são as Big Techs que exercem um poder sem precedentes para monitorar, processar e influenciar milhões cidadãos... quer dizer, usuários, ao redor de todo o mundo.

A violência do colonialismo digital é mais sutil que a de seu predecessor histórico. Em vez de força física, utiliza influência comportamental, rastreamento constante e modulação algorítmica para manter o controle. A relação entre as empresas de tecnologia e os usuários é marcada pela dependência, onde pessoas comuns são induzidas a consumir, frequentemente sem qualquer tipo de consciência sobre como seus dados estão sendo usados ou mesmo qual seu verdadeiro valor.

O colonialismo digital em ação

No âmbito da educação, empresas como Microsoft, Google e IBM têm exercido influência significativa em países como Brasil e África do Sul. Estes grandes conglomerados tecnológicos se aliam aos governos locais e oferecem seus produtos como soluções "essenciais" para “modernização” dos sistemas de ensino. Como resultados vemos que as instituições educacionais submetidas a estas condições ficam reféns de modelos genéricos que não dão conta das especificidades regionais.

Além disso, os países que recebem as tais “tecnologias modernizadoras”, para lá dos efeitos mágicos propagandeados pelos governos, acabam deixando de investir recursos significativos nas indústrias locais. Já no que diz respeito ao trabalho, o colonialismo histórico e o colonialismo digital revelam continuidades marcantes na exploração laboral. Durante o colonialismo histórico, a economia dependia intensamente do trabalho físico de populações colonizadas, submetidas a condições desumanas para sustentar as potências imperiais. No colonialismo digital, essa lógica de exploração persiste, porém sob novas formas: uma divisão global do trabalho em que países do Sul Global fornecem matérias-primas essenciais para tecnologias digitais sob condições igualmente severas.

As minas de cobalto na República Democrática do Congo e as operações de extração de lítio na América do Sul2 são exemplos emblemáticos dessa exploração contemporânea, onde trabalhadores, em condições precárias e com salários ínfimos, produzem os componentes indispensáveis que sustentam a infraestrutura tecnológica global. Assim, o trabalho, seja no passado colonial ou na era digital, permanece central para o mecanismo de dominação e enriquecimento das nações hegemônicas.

O poder político exercido pelas corporações de tecnologia atingiu níveis sem precedentes. Estas empresas podem influenciar a opinião pública, direcionar conteúdo em suas plataformas e até impactar processos democráticos. Os governos cada vez mais se tornam clientes dessas corporações, implementando sistemas automatizados de tomada de decisão usando dados de propriedade corporativa.

A posição complexa do Brasil

O Brasil ocupa uma posição particularmente ambígua nesta nova paisagem colonial. Como um dos maiores mercados consumidores de tecnologias digitais do mundo, o país gera volumes massivos de dados que são extraídos e utilizados por corporações estrangeiras. Isso posiciona o Brasil como uma das mais potentes “colônias de dados", onde informações pessoais fluem para o norte.

A dependência tecnológica do país espelha padrões coloniais históricos. O Brasil continua exportando matérias-primas – agora incluindo lítio para produção de tecnologia digital – enquanto importa produtos e serviços manufaturados. A batalha pela hegemonia da Internet das Coisas (IoT) no Brasil guarda semelhanças impressionantes com relações comerciais da era colonial, com milhões de "nativos digitais" dependentes de "bens manufaturados pós-modernos".

No entanto, o Brasil tem mostrado alguma resistência ao colonialismo digital. A ex-presidente Dilma Rousseff rejeitou a oferta do Facebook de acesso gratuito à internet, que teria restringido os usuários aos produtos da empresa. O Conselho Nacional de Justiça bloqueou certos contratos com a Microsoft, citando preocupações com a soberania tecnológica.

Não obstante, instituições brasileiras frequentemente se encontram presas em relacionamentos complexos com gigantes da tecnologia. Universidades federais cada vez mais adotam ferramentas de empresas como Google e Microsoft, que parecem facilitar processos educacionais mas exploram dados dos usuários, principalmente relacionados a pesquisadores de ponta. Isso destaca o difícil equilíbrio entre acessar ferramentas digitais necessárias e manter independência tecnológica.

A implementação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) demonstra crescente consciência da necessidade de proteger dados dos cidadãos. Entretanto, a Estratégia Brasileira de Transformação Digital tem sido criticada por não promover suficientemente a inovação nacional, ilustrando a tensão contínua entre necessidades de desenvolvimento e soberania digital.

Uma pesquisa recente do MIT Technology Review, publicada em dezembro de 2024, lança nova luz sobre a posição do Brasil no cenário do colonialismo digital, particularmente no campo da inteligência artificial. O estudo, que analisou aproximadamente 4.000 conjuntos de dados públicos abrangendo mais de 600 idiomas e 67 países, revela um panorama preocupante da exclusão digital brasileira.

A análise mostra uma dramática mudança na forma como as empresas de tecnologia coletam dados para treinar seus sistemas de IA. Se no início dos anos 2010 havia uma diversidade de fontes cuidadosamente selecionadas, após 2017 iniciou-se uma coleta indiscriminada de dados da web, com o YouTube assumindo papel dominante, especialmente em dados de vídeo.

O mais alarmante, contudo, é a sub-representação brasileira neste cenário. Segundo um mapa produzido pelo World Bank Official Boundaries, o Brasil, assim como toda a América do Sul, tem participação mínima nas fonte de dados para treinamento de IA. Esta informação é particularmente perturbadora considerando que o Brasil, com mais de 200 milhões de habitantes e uma das maiores bases de usuários de internet do mundo, deveria ter papel mais relevante neste cenário.

As implicações desta exclusão são profundas. Os sistemas de IA, treinados predominantemente com dados da América do Norte e Europa (que representam mais de 90% do total), demonstram desempenho inferior ao lidar com contextos culturais brasileiros, gírias locais e variações do português brasileiro. Além disso, expressões culturais únicas e formas de comunicação tipicamente brasileiras ficam sub-representadas nos modelos de IA atuais.

Este desequilíbrio na representação reforça o ciclo do colonialismo digital: enquanto consumimos tecnologias de IA desenvolvidas com base em perspectivas norte-americanas e europeias, nossa própria identidade cultural digital é marginalizada. O resultado é uma perpetuação das desigualdades tecnológicas e culturais existentes, agora sob a égide da inteligência artificial.

Esta realidade exemplifica como o colonialismo digital vai além da mera extração de dados, constituindo um sistema complexo de exclusão e dominação cultural. Enquanto o Brasil continua sendo um importante mercado consumidor de tecnologias de IA, sua participação na construção destas tecnologias permanece periférica, reforçando padrões históricos de dependência tecnológica.

Relações de racialidade e poder

O colonialismo digital não eliminou hierarquias raciais; ao contrário, as atualizou para a era digital. Inteligência artificial e algoritmos exportados para países do Sul Global frequentemente incorporam valores culturais ocidentais e vieses raciais. Esta racialização digital se manifesta na forma como algoritmos discriminam grupos marginalizados e como modos de pensamento ocidentais são impostos através da tecnologia.

A perpetuação das hierarquias raciais no colonialismo digital é evidente em diversas práticas tecnológicas contemporâneas. Um exemplo claro são os sistemas de reconhecimento facial, que apresentam taxas de erro significativamente mais altas ao identificar rostos de pessoas negras e de outras minorias raciais em comparação com pessoas brancas.

Em conclusão, o colonialismo digital representa uma evolução sofisticada das práticas coloniais históricas, adaptadas para a era da informação. Embora os métodos tenham mudado, as dinâmicas fundamentais de exploração, assimetria de poder e extração de recursos permanecem. Enquanto países como o Brasil lidam com sua posição neste novo sistema colonial, o desafio está em desenvolver abordagens que possam aproveitar os benefícios da tecnologia digital enquanto protegem a soberania nacional e os direitos dos cidadãos.

Notas

1 Fact sheet: Ensuring U.S. Security and Economic Strength in the Age of Artificial Intelligence.
2 Com Musk excluído, lítio coloca Bolívia no centro de disputa entre China, Rússia e EUA.