A luz do sol poente iluminava a fachada neoclássica do recém-inaugurado Theatro Municipal em 1909, enquanto a elite carioca, em seus trajes europeus, desfilava pelos corredores de mármore importado. Alguns quarteirões adiante, nos cortiços do centro, violões e cavaquinhos das rodas de choro e lundus anunciavam uma música genuinamente nacional. Entre esses dois Rios de Janeiro – o oficial e o invisível, o europeizado e o popular – movimentou-se por décadas a figura discreta de Joaquim Maria Machado de Assis.

Munido não de pincel ou partitura, mas de sua pena afiada, este escritor transformou-se no mais agudo cronista de uma cidade em vertiginosa transformação cultural. Muito além do gênio literário que os manuais celebram, Machado foi um observador privilegiado dos bastidores da vida artística carioca entre 1870 e 1910, período em que o Rio se debatia entre ser Paris nos trópicos ou encontrar sua própria identidade.

Suas crônicas e contos funcionam hoje como espelhos – para usar uma de suas metáforas prediletas – que refletem não apenas os grandes acontecimentos culturais, mas principalmente os sussurros nos camarotes, as vaidades dos artistas, os dilemas de identidade de uma nação que buscava se definir através da arte. É nesse jogo de espelhos machadianos que este artigo pretende mergulhar, revelando como a literatura pode testemunhar o circuito artístico de uma época.

O Rio que Machado observava era uma cidade buscando se reinventar. A abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889) representavam mais que mudanças políticas: eram cisões históricas que reverberavam em todos os aspectos da vida social. A cidade, antes imperial e escravocrata, agora se pretendia republicana e moderna. Os velhos casarões coloniais cediam espaço a boulevards inspirados na reforma urbana parisiense, culminando na radical reforma do prefeito Pereira Passos no início do século XX.

A cena artística fervilhava em contradições. Novos teatros surgiam, como o Teatro Lucinda (1880), espaços que se tornavam verdadeiros termômetros sociais. A imprensa multiplicava-se em jornais e revistas literárias onde as grandes questões estéticas eram debatidas com fervor – Romantismo versus Realismo, tradição versus modernidade, Europa versus Brasil. Como escreveu o historiador José Murilo de Carvalho, "o Rio transformava-se em vitrine da civilização para uma nação recém-saída da escravidão".

Machado ocupava uma posição única neste cenário. Funcionário público respeitado, jornalista influente, escritor consagrado e, após 1897, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, ele era simultaneamente parte da instituição cultural e seu mais irônico crítico. Como definiu John Gledson, "Machado circulava nos salões, mas sua literatura habitava as sombras".

Sua trajetória pessoal – de filho de um pintor mulato e uma lavadeira açoriana a maior nome da literatura nacional – permitia-lhe enxergar as camadas mais profundas da sociedade carioca, especialmente suas contradições culturais e artísticas.

A crônica, que nascia nas páginas dos jornais, encontrou em Machado um de seus maiores cultores. Se hoje a reconhecemos como forma literária legitimamente brasileira, muito se deve a como ele a transformou: de registro circunstancial do cotidiano em reflexão perene sobre as pequenas e grandes hipocrisias sociais. As crônicas machadianas são particularmente esclarecedoras quando abordam a vida cultural carioca, capturando diferentes eventos, mas sobretudo a forma como o Rio se relacionava com a arte.

Em Teatro e Verdade, publicada na Gazeta de Notícias em 1885, Machado ironiza a obsessão da elite carioca pelas óperas italianas: "Aplaudimos com fervor o que não compreendemos, e compreendemos com entusiasmo o que não conseguimos sentir". O contexto era revelador: enquanto Carlos Gomes conquistava reconhecimento na Europa com O Guarany (1870), o público carioca preferia as companhias europeias itinerantes, que traziam repertórios muitas vezes desconexos com a realidade local.

A crônica machadiana captura essa contradição: o patriotismo de fachada que celebrava Carlos Gomes, mas suspirava secretamente pelos tenores estrangeiros.

As artes visuais também não escapam ao olhar penetrante do cronista. Em Aquarelas, Machado descreve uma exposição na Academia Imperial de Belas Artes com precisão quase fotográfica – não das telas, mas dos espectadores: "Contemplam o quadro nacional com os olhos, mas a alma viaja em Roma".

A metáfora era cristalina, a arte brasileira era sempre medida pelo metro europeu, um complexo de inferioridade cultural que o cronista diagnosticava com acuidade. Como observa Lúcia Miguel Pereira, "Machado percebia que a arte, no Brasil oitocentista, era menos expressão e mais símbolo de status".

Particularmente valiosas são suas crônicas sobre a imprensa cultural. Na série Gazeta de Holanda, ele reflete sobre o papel dos jornais na formação do gosto artístico, reconhecendo seu próprio lugar nesse sistema: "Escrevemos para leitores que leem para dizer que leram". A frase, expõem todo um universo de relações sociais mediadas pela cultura. A arte como capital simbólico, consumida não por fruição estética, mas por distinção social – análise que antecipa em quase um século as teorias de Pierre Bourdieu sobre capital cultural.

Se nas crônicas Machado era o observador explícito, nos contos ele se transforma em arquiteto de universos ficcionais que, paradoxalmente, revelam verdades mais profundas sobre a realidade artística do Rio. Três contos, em particular, funcionam como verdadeiros prismas para entender as relações entre arte, identidade e sociedade no período.

O Espelho (1882) apresenta a metáfora perfeita para a dualidade da cultura brasileira oitocentista. Jacobina, o protagonista, só consegue ver sua imagem refletida quando veste a farda de alferes – seu "eu social". Como ele, o Rio vivia uma existência cindida, sua autoimagem cultural dependia do reflexo europeu. No momento em que Machado publicava esse conto, os teatros cariocas enchiam-se para assistir a companhias francesas, enquanto manifestações culturais locais eram relegadas às margens. Como analisa Roberto Schwarz, "a dependência cultural brasileira assume em Machado um caráter de tema literário consciente".

Em Um Homem Célebre (1888), encontramos Pestana, compositor talentoso que sonha criar sinfonias eruditas, mas cujo talento verdadeiro está nas polcas populares. O conto é uma alegoria perfeita da tensão entre alta cultura importada e expressões culturais genuinamente brasileiras.

No ano de sua publicação, enquanto o Teatro Dom Pedro II apresentava óperas italianas, músicos como Joaquim Callado (1848-1880) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935) criavam, nas rodas informais, os fundamentos do que viria a ser o choro, gênero musical genuinamente nacional. A tragédia de Pestana é a tragédia da arte brasileira daquele período - o desejo de ser o que não era, a rejeição ao próprio talento e originalidade.

A Cartomante (1884) utiliza a superstição – tão presente no Rio daquele período – para explorar outra faceta da vida cultural. Trata-se do embate entre racionalismo científico e crenças populares. A elite letrada buscava emular o positivismo europeu, as tradições afro-brasileiras e o espiritismo kardecista ganhavam adeptos em todas as classes sociais. Machado observa esse fenômeno sem o preconceito comum à época, mostrando como a modernidade carioca era constituída tanto pelos tratados científicos quanto pelas consultas às videntes.

Peculiar à visão machadiana é seu interesse pelos bastidores, pelos personagens secundários do sistema cultural. Se os primeiros românticos brasileiros celebravam o índio idealizado ou a natureza exuberante, Machado voltava-se para os artistas fracassados, os críticos medíocres, os diletantes superficiais – aqueles que, em conjunto, formavam o verdadeiro ecossistema artístico do Rio.

Em Aurora sem Dia, o protagonista Luís Tinoco representa o literato de província, convencido de seu talento, que chega ao Rio em busca de reconhecimento. Seu percurso, da pretensão poética ao prosaico cargo de deputado provincial, ilustra com ironia o lugar social da literatura numa sociedade onde a arte era principalmente um instrumento de ascensão social. Como observa Alfredo Bosi, "Machado diagnosticava o que hoje chamaríamos de instrumentalização da cultura".

Além de personagens, a própria cidade aparece como protagonista em seus contos. Em Miss Dollar, as ruas do Botafogo aristocrático contrastam com o burburinho da Rua do Ouvidor – centro nevrálgico onde livrarias, redações de jornais e cafés formavam um microcosmo da vida intelectual carioca. Em Conto de Escola, o espaço urbano estratifica-se em zonas culturais distintas: da severa escola imperial às festas populares no Campo de Santana. A cartografia machadiana não é apenas geografia, mas radiografia das hierarquias culturais do Rio.

Machado também incorpora em suas narrativas referências constantes a artistas reais, criando um jogo intertextual que amplia a compreensão do cenário cultural. Shakespeare, Molière e Dante aparecem não como citações ostentatórias, mas como interlocutores de uma literatura que se sabia periférica, mas recusava-se a ser provinciana.

Quando, em Teoria do Medalhão, o pai recomenda ao filho que cite autores estrangeiros para impressionar, Machado satiriza o consumo superficial da cultura europeia – prática comum nos salões cariocas que ele frequentava.

A visão machadiana sobre a cultura carioca oitocentista não é somente literatura, mas chave para compreender as tensões que moldaram a arte brasileira. Sua perspicaz análise das contradições entre influências estrangeiras e expressões locais, entre tradição e modernidade, entre arte como distinção social e arte como manifestação genuína, permanece como um registro fundamental das complexidades culturais brasileiras.

Machado antecipou, através de sua ironia e agudeza, muitas das questões sobre identidade cultural que continuariam a permear o pensamento artístico nacional no século seguinte.

A crítica machadiana à superficialidade artística ressoa com peculiar atualidade. Em tempos de consumo acelerado de bens culturais e espetacularização da arte, sua visão sobre o valor da autenticidade artística permanece pertinente. Sua concepção da arte como manifestação profunda, oferece um contraponto precioso à mercantilização contemporânea da cultura.

Como ele mesmo escreveu em uma de suas crônicas mais prescientes: "A arte é a expressão da sociedade, mas também seu espelho crítico". Esta dupla função – refletir e criticar – define o legado machadiano para o entendimento da arte brasileira. Através dele, podemos observar como o Brasil cultural se formou através de grandes movimentos estéticos, mas principalmente no embate cotidiano entre influências externas e pulsões internas, entre o desejo de ser outro e a necessidade de ser si mesmo.

Ao lermos Machado de Assis hoje, experimentamos uma singular viagem no tempo. Através de suas páginas, os teatros já demolidos do Rio voltam a iluminar-se, os saraus literários recuperam suas vozes, os debates estéticos ganham novo fôlego.

Ao caminhar hoje pela Cinelândia, onde o Theatro Municipal ainda se impõe como monumento à Belle Époque carioca, podemos imaginar Machado observando a cena com seu olhar irônico. Talvez ele notasse que, apesar das transformações, o Rio ainda carrega as marcas daquele período: a tensão entre cosmopolitismo e expressão local, entre arte como distinção e arte como comunicação.