Não há no mundo algo tão intrigante quanto o complexo conceito de cultura. Possuído por verdades efêmeras, que por muitas vezes cai no esquecimento e na solidão, traçado pela dinâmica e permanência dos costumes, crenças e tradições, numa negociação de significados, no contato entre o mistério e a divindade, a cultura se expande no cotidiano das vidas das pessoas. Tudo isso, porque a cultura está presente na concepção de qualquer ser humano.

Os costumes permeiam nossas vidas. Nossas heranças registradas por algumas permanências de memórias recuperadas, numa ritualização de sociabilidades, transmitem legados para o futuro transformando os valores culturais numa fabricação social que resulta no chamado patrimônio cultural. O patrimônio cultural atual, atua como uma intervenção na cultura dos bens patrimoniais e seus usos. Sabe-se que o conceito nasce na França nos início dos anos 1980 para redefinir conceitos de folclore, cultura popular e cultura tradicional. Na verdade, o patrimônio cultural recupera memórias diante da ritualização de sociabilidades, entre o espaço e o tempo, numa provocação do relicário do passado.

O patrimônio Cultural constroi imagens de comunidades no sentido público e privado, numa relação metafórica e metonímica que fortalece o imaginário coletivo. O escritor português Valter Hugo Mãe, afirma que “o passado não corre.” O folclore por sua vez, palavra de etimologia inglesa, Folk que significa povo, e lore que significa saber, traz bastante polêmicas na atualidade. Os curiosos, os colecionadores, os médicos, os artistas, os alquimistas, os professores, os advogados se emcubiam de pesquisar os costumes, os rituais e as crenças. Hoje, quem se atreve a compreender essa ciência, que engloba o passado no presente de um futuro previsível? Como diz o grande Luís Câmara Cascudo:

Nenhuma ciência possui como o folclore maior espaço de pesquisa de aproximação humana. Ciência da psicologia coletiva, cultura do geral no homem, da tradição e do milênio na atualidade, do heróico no cotidiano, é uma verdadeira história normal do povo.

Digamos que devemos não só conhecer os costumes, mas o seu uso, suas técnicas, seu cotidiano. A cultura chega primeiro, sem pedir licença, e vai refinando os seres humanos a partir da educação e suas interrrelações. Para tanto, devemos compreender o folclore não só como a alma do povo, mas como a própria vida do povo em todas as esferas. Cabe ressaltar, que nas culturas populares acontecem recriações que fazem parte de sua dinâmica, essas recriações envolvidas por verdades efêmeras agitam territórios na produção de uma nova construção social.

Então, quanto mais verdade efêmeras, mais oportunidades para ciência no que se refere ao objeto de estudo e ao problema de pesquisa. Temos então a sociologia do efêmero1. Para tanto, temos também a filosofia que acompanha o folclore em sua dinâmica nas interações e socializações. O folclore é uma fonte infinita entre a tradição e a inovação. Precisamos compreender como a escola trata e aborda este assunto nos dias atuais.

Também precisamos falar do folclore, do patrimônio cultural com seriedade e serenidade. A negociação simbólica deve ser tema nas instituições educacionais. Nossa riqueza, que é o patrimônio cultural, vai além da monetização, ele atua como repositório de sabedoria inesgotável, onde Carlos Rodrigues Brandão afirma que é a manutenção da identidade da nação. Nilza Botelho Megale, diz que o folclore é uma fonte vital de conhecimentos práticos. Pois bem, essa ciência que é um fenômeno vivo, se destaca porque acampa em vários contextos, na culinária, na música, nas crenças, nas manifestações, nas danças, nas festas, ou seja, nos costumes e na recriação da sobrevivência das culturas populares.

Alan Dundes (1980) amplia a compreensão do folclore, destacando sua universalidade e especificidade cultural. Em “Interpreting Folklore”, o autor argumenta que o folclore é um espelho da cultura, refletindo os valores, medos e aspirações de uma sociedade. Ele propõe uma abordagem contextual para o estudo do folclore, enfatizando a importância de compreender as manifestações folclóricas dentro de seus contextos sociais e culturais específicos. Dundes (1980) também destaca o papel do folclore na comunicação e na manutenção da coesão social. Além disso, ele enfatiza a importância de considerar as dimensões psicológicas e simbólicas do folclore, explorando como as narrativas folclóricas podem ser vistas como reflexos das ansiedades, desejos e conflitos internos da sociedade2.

Há de se pensar que o patrimônio cultural está em nós. Certa vez, numa viagem, conheci um professor aposentado de matemática que começou a conversar colocando todos para raciocinar através de cálculos. Coisa que não é o meu forte. Falou de seus anseios e de seu passado. Disse que era viúvo, que se preocupava com o seu dinheiro. Contou que na juventude tinha uma lambreta, e que tem receio de uma pane geral promovida pelos poderosos. Depois, entrou no carro um cidadão comum, um agricultor conhecido como seu Pedro da Farinha. Seu Pedro contou dos ensinamentos do seu pai, falou dos valores morais e éticos. Seu Pedro não frequentou a escola, não teve oportunidade.

Afirmou que quem quer ser o que não pode, termina sem nada. Falou de seus casos amorosos, que foi corno três vezes, que teve três mulheres e que numa dessas empreitadas com as mulheres foi investigado como suspeito de uma morte. Ao falar com o delegado, contou sua história, que era inocente e depois deu um relógio caro ao delegado. Falou da família, de suas netas. Da festa da Padroeira e da feira livre. Rimos muito com seu Pedro3. Este exemplo é para compreendermos que o patrimônio cultural, muitas vezes não está na escola. Então, o que fazemos dos nossos privilégios e com nossos privilégios? A ciência do folclore aponta desafios constantes.

Muitos estudiosos enfrentaram esses desafios. É o caso de Mário de Andrade que via o folclore como sentimento de nacionalidade como garantia valiosa do contraste cultural do Brasil. Outro desafio que o folclore enfrenta é com o surgimento da internet e do wi-fi. As redes sociais geraram visibilidade, porta de acesso aos grupos e manifestações populares promovendo a hibridização das culturas populares. Ou seja, a refuncionalização pela hibridização cultural falada pelo antropólogo Néstor García Canclini. Ele também afirma que o acesso dá coesão à sociedade.

A interconectividade trouxe para o folclore novos desafios. Entre eles, o desafio de que o patrimônio cultural esteja ligado à participação social. Toda forma de sociabilidade revela o debate do patrimônio cultural. Tanto é assim, que os indígenas, que já são o próprio patrimônio cultural, como afirma a escritora indigena Márcia Kambeba4. Segundo ela, na sua aldeia não existe folclore, e sim narrativas. Assim, poderemos pensar em como estamos direcionando nossos costumes. Para isso, o escritor e ativista Ailton Krenak afirma: "O patrimônio cultural de um povo é a sua capacidade de se relacionar com a natureza." "A tradição não é algo que se guarda, é algo que se vive." "O futuro ancestral é a nossa herança."

Há de se considerar que a fugacidade da cultura traz a pauta da relação com o patrimônio cultural e com o folclore. Que relação temos com o nosso patrimônio cultural? O que queremos fazer com o que temos? Numa viagem ao interior da Paraíba, avistamos um imenso terreno seco. Meu pensamento foi num grande reflorestamento para se tornar um belíssimo parque. Já o pensamento da jornalista que estava ao meu lado foi: Que belo aeroporto esse terreno daria! Digamos que nossa relação com o patrimônio cultural não é bem trabalhada.

Nas periferias, o imaginário coletivo, e a participação social contribui com o desenvolvimento do patrimônio cultural. Apesar da cultura apresentar um conceito multifacetado, toda forma de transmissão é necessária. Mesmo porque a imaginação gera devaneios. E, a cultura, o folclore correm pela riqueza da criadora imaginação coletiva. Por incrível que pareça, é na riqueza de seus devaneios que a ciência acontece. Cabe aqui, enfatizar que o patrimônio cultural e o folclore funcionam como elo da ciência na produção de artigos, monografias, dissertações e teses. Só pra lembrar, a ciência foi criada para aproximar os saberes populares no desempenho da sociedade.

O que falta para que nossa fonte infinita de saberes seja enaltecida nas escolas? Talvez, separamos demais a cultura, conhecer os usos dos costumes de um povo pode nos aproximar dos misteriosos segredos da natureza. O escritor e sociólogo francês Édouard Louis argumenta que “a cultura é emancipação e libertação, é uma fuga. Há um abismo entre classe dominante e classe dominada e o livro nos ajuda a pensar qual é o mundo que fazemos parte.” Então, não podemos falar do Patrimônio Cultural, nem do folclore sem falar na literatura. A literatura promove com riqueza o patrimônio cultural e o folclore.

Os autores fazem questão de mostrar os costumes sociais e suas peripécias em várias dimensões. Mesmo correndo alguns riscos diante das intervenções das apropriações, o patrimônio cultural e o folclore atuam como a água, vão dando formas aos contextos que surgem, sem perder a essência humana das relações sociais. A escritora Adélia Prado diz que tudo é uma unidade. Assim, o patrimônio cultural e o folclore são o elo da ciência .

O que a memória ama, fica eterno.

(Adélia Prado)

Notas

1 Conceito traçado pelo Professor Doutor Wellington Pereira da UFPB para pesquisar as recriações das culturas populares da periferia.
2 Reflexões e Influências entre Arte, Cultura, Sociedade e História: um olhar sobre o folclore.
3 Os nomes são fictícios.
4 Conversa com Escritor(a) recebe Márcia Kambeba.