Recentemente, participei de uma conversa/entrevista com Kelli Angelini1 sobre a importância da educação digital, sobre a inteligência artificial e de como o digital precisa ser explorado na educação básica. Aqui está a conversa. Espero que gostem!
Helena, muito se fala que a educação brasileira não acompanhou as mudanças tecnológicas, mantendo-se em um modelo de ensino tradicional que, para muitos, já está ultrapassado. Você concorda com essa visão? Se sim, o que você acredita que precisa ser feito para que o ensino brasileiro se modernize e esteja verdadeiramente preparado para as demandas da era digital, especialmente considerando os alunos que já nasceram imersos no mundo digital e informacional?
Já temos as respostas para essas questões: uma educação dialógica, na qual os estudantes desempenham um papel mais ativo; uma educação que considere as práticas sociais contemporâneas; uma educação que promova um maior equilíbrio de poder nas relações; uma educação contextualizada e mais significativa para os alunos, com desafios pertinentes e atuais, adequados à sua capacidade de atuação. Uma educação que favoreça a conscientização e a ação para uma vida plena do estudante e de seu entorno.
Temos conhecimento acumulado na área da educação que nos permite avançar nesse sentido. Infelizmente, progredimos em alguns aspectos, mas não conseguimos avançar em muitos outros, por diversas razões. O ambiente digital e as interações que estabelecemos com os recursos tecnológicos refletem os princípios e as bases educacionais que utilizamos.
Não há uma solução mágica; há um trabalho sério que precisa ser feito, principalmente no que diz respeito à formação adequada de professores já na graduação, à reflexão como parte do trabalho e à melhoria das condições de trabalho. Não é uma tarefa simples, mas, a meu ver, já sabemos as respostas.
Na sua opinião, a simples adoção de ferramentas tecnológicas nas escolas é suficiente para proporcionar uma educação que realmente reflita os desafios e oportunidades do nosso tempo? Ou é necessário repensar profundamente todo o modelo educacional?
Longe disso. A adoção de tecnologia sem uma intencionalidade pedagógica, considerando as potencialidades e os riscos dos recursos tecnológicos, pode prejudicar ainda mais o trabalho educacional. Um uso que não leva em conta, por exemplo, questões éticas nas interações que ocorrem no ambiente digital pode causar danos significativos nas relações, pois o digital amplifica tudo, tanto o que está funcionando quanto o que não está. Pensar apenas no acesso pode ser prejudicial; ele deve ser acompanhado pela formação e pela intencionalidade na prática, além da reflexão sobre a ação pedagógica.
Entender o funcionamento da tecnologia digital, especialmente no que diz respeito à interação entre humanos e máquinas, é essencial para todos. Como você enxerga a importância de trazer esse conhecimento para a educação básica? E de que forma as escolas podem planejar práticas pedagógicas mais intencionais, que não apenas utilizem as tecnologias, mas também ajudem os alunos a compreenderem suas limitações e potencialidades?
É fundamental planejar ações que vão além do simples uso de recursos. Um olhar para o digital como uma mera ferramenta não pode ser a tônica do trabalho com as tecnologias. Precisamos considerar atividades que abordem questões mais amplas. Por exemplo, ao realizarmos uma busca em um navegador, os estudantes precisam compreender o funcionamento desse recurso.
Primeiramente, quais hipóteses eles têm sobre o funcionamento de um navegador? Por que alguns links aparecem primeiro e outros depois? Quais elementos estão disponíveis na página que apresenta os resultados? Quais filtros estão disponíveis? Como esse tipo de busca se compara a uma busca em uma biblioteca de livros? Os materiais que encontro têm direitos autorais reservados? E assim por diante.
Falando sobre a formação de educadores, qual é a importância dessa formação para o uso crítico e ético do digital nas escolas, tanto para os professores quanto para seus alunos?
A formação é vital. Ela deveria ser parte da graduação, e sei que existem cursos que oferecem uma boa formação, mas é fundamental garantir que a qualidade dessa formação seja mantida na maioria, senão em todos, os cursos de graduação. A formação continuada deve ter uma estrutura que viabilize o aprimoramento do trabalho do professor, com dinâmicas de acompanhamento que considerem a observação de aulas e a reflexão sobre a prática, de maneira a apoiar o professor, e não a vigiar seu trabalho com um objetivo que não seja de ajuda.
Hoje, com o fenômeno da plataformização, por exemplo, os dados dessas plataformas (sem entrar no mérito do uso de tais recursos) não devem ser utilizados para vigilância, mas sim para apoiar o trabalho educacional.
No contexto da educação digital, as questões éticas estão ganhando cada vez mais destaque, especialmente com o uso de dados, algoritmos e Inteligência Artificial. Você acredita que as escolas estão suficientemente atentas a esses aspectos ao implementar tecnologias digitais? E quais recomendações você daria para que as escolas adotem uma postura crítica ao integrar essas ferramentas no processo educacional?
Precisamos abrir espaço nas escolas para dialogar sobre esses temas. Existem muitos materiais disponíveis para subsidiar o trabalho dos professores. Sugiro alguns aqui: o curso de cidadania digital, criado pela Safernet e pelo governo do Reino Unido, e os materiais oferecidos pela Safernet, também voltados para uma internet mais segura. Esses são bons recursos para fomentar conversas e reflexões sobre o currículo e possíveis práticas que podem ser integradas às atividades já existentes nas escolas.
Entrando especificamente no tema da Inteligência Artificial, quais você considera os principais desafios que surgem com o uso da IA no ambiente escolar? E, na sua opinião, como os educadores podem garantir que a IA seja uma ferramenta positiva tanto para o aprendizado dos alunos quanto para apoiar o trabalho dos próprios educadores?
A inteligência artificial generativa, que se desenvolveu mais recentemente através de recursos como o ChatGPT, representa um enorme desafio para todos nós. Temos acesso a tecnologias que ainda não foram testadas suficientemente para estarem disponíveis para a população, ou seja, estamos em um período de testes. Os resultados ainda são bastante imprevisíveis, e de uma forma ou de outra, temos que lidar com esse acesso que já ocorre entre crianças e jovens.
Existe um guia da UNESCO que apresenta princípios muito importantes para o trabalho com a IA na educação. O guia é intitulado Guia para a IA generativa na educação e na pesquisa. Destaco a seguir oito medidas para o planejamento de políticas sobre a IA generativa na educação e na pesquisa, mencionadas no documento:
- Promover a inclusão, a equidade e a diversidade linguística e cultural.
- Proteger a agência humana.
- Monitorar e validar sistemas de IA generativa para a educação.
- Desenvolver competências em IA, incluindo habilidades relacionadas à IA generativa, para os estudantes.
- Desenvolver a capacidade de professores e pesquisadores para o uso adequado da IA generativa.
- Promover opiniões diversas e a expressão plural de ideias.
- Testar modelos de aplicações localmente relevantes e construir uma base cumulativa de evidências.
- Analisar as implicações de longo prazo de maneira intersetorial e interdisciplinar.
Agora, falando sobre a responsabilidade das empresas de tecnologia: além da regulação pública, qual você acredita que deve ser o papel das empresas que operam plataformas educacionais na implementação de mecanismos que minimizem os riscos associados ao uso de suas tecnologias para a comunidade educacional?
Assim como nos documentos da UNESCO, as empresas precisam priorizar o ser humano. Nosso modelo econômico atual privilegia o lucro em detrimento do bem-estar, da saúde e da autonomia humana. Nossos dados são extraídos da nossa propriedade para promover o avanço das plataformas e sistemas. Muitas vezes, somos obrigados a aceitar termos de uso redigidos em linguagem pouco acessível para a maior parte da população.
Além disso, somos levados a utilizar plataformas que não esclarecem seu funcionamento nem o destino de nossas informações. Os mecanismos, na maioria das plataformas e serviços que usamos na internet, não são transparentes para os usuários.
Precisamos de regulamentação que promova mais transparência nos serviços e que nos permita exigir nossos direitos como consumidores. Também é essencial que haja formação adequada para que possamos lutar por esses direitos.
Pensando no futuro dos alunos, vamos falar sobre competências digitais: na sua opinião, quais habilidades e competências digitais os alunos precisam desenvolver agora para estarem preparados para os desafios futuros, especialmente com a integração de novas tecnologias como a IA?
A UNESCO acaba de lançar um conjunto de documentos que têm o objetivo de guiar o trabalho com competências de IA generativa na educação e pesquisa. As competências dos estudantes se organizam em quatro categorias:
- Mentalidade centrada no ser humano: Os estudantes devem interagir com a IA de forma crítica e ética, priorizando sempre o bem-estar humano e a justiça social.
- Ética da IA: Assegurar a aplicação de princípios éticos em todas as etapas de interação com a IA, desde a concepção até a utilização, para garantir um futuro mais justo e sustentável.
- Técnicas e aplicações de IA: Desenvolver a capacidade de compreender, usar e avaliar criticamente as ferramentas de IA existentes para solucionar problemas do mundo real.
- Projeto de sistema de IA: Capacitar os estudantes para criar e inovar no campo da IA projetando sistemas responsáveis e alinhados com valores éticos.
Além disso, são propostos três níveis de apropriação: compreender, aplicar e criar.
Compreender
Reconhecer a presença da IA no dia a dia: Os alunos devem ser capazes de identificar como a IA já está presente em suas vidas, como nas recomendações de músicas ou filtros de spam em e-mails.
Explicar os princípios básicos da coleta e uso de dados em IA: Os alunos devem ser capazes de explicar, de forma geral, como os dados são utilizados para treinar sistemas de IA e como isso pode impactar sua privacidade.
Aplicar
Avaliar a confiabilidade das informações geradas por IA: Os alunos devem ser capazes de identificar potenciais vieses, erros ou informações falsas em conteúdos gerados por IA, como notícias ou postagens em redes sociais.
Coletar, organizar e analisar dados simples utilizando ferramentas básicas de IA: Os alunos devem ter a oportunidade de trabalhar com conjuntos de dados simples e utilizar ferramentas básicas para realizar análises e extrair insights.
Criar
Avaliar criticamente os sistemas de IA existentes e propor melhorias: Os alunos devem ser capazes de analisar criticamente ferramentas e sistemas de IA existentes, identificando seus pontos fortes e fracos e propondo melhorias em termos de funcionalidade, interface ou impacto social.
Desenvolver soluções simples para problemas reais utilizando IA: Os alunos devem ser desafiados a criar soluções simples para problemas do dia a dia, como um aplicativo que organiza afazeres escolares ou um jogo que utiliza IA.
Recomendo estudar esses documentos para pensar na integração de atividades na escola. Não se trata apenas de atividades de exploração de recursos, mas principalmente de estudos de caso, discussões, leituras e organização de apresentações sobre os diversos temas que envolvem a IA generativa.
Para encerrar, você poderia compartilhar algumas práticas que são implementadas na Escola da Vila e que contribuem para promover um ambiente digital mais consciente e seguro para alunos e professores? E, aproveitando, as escolas que estão nos ouvindo podem contratar seus serviços para consultoria, palestras ou cursos? Como elas podem entrar em contato com você?
Vou compartilhar uma prática realizada por uma professora de língua inglesa no ensino médio, em 2023, quando começamos a usar o ChatGPT. Essa prática foi apresentada aos professores do grupo de escolas da Bahema em um painel de compartilhamento de práticas, que faz parte de uma frente de formação regular que oferecemos às escolas.
Além disso, escrevemos um artigo sobre essa experiência, que será publicado em um livro ainda em 2024, e enviamos o relato para um evento da UNESCO, a Digital Learning Week de 2024, onde foi selecionado como um exemplo de prática que visa uma reflexão ética sobre o uso de recursos de IA generativa na escola.
Em 2023, os estudantes foram convidados a produzir um texto que estabelecesse relações entre o livro que estavam lendo, Things Fall Apart, de Chinua Achebe, e conceitos de outros autores estudados em aulas anteriores. A professora percebeu que algumas produções tinham sido feitas utilizando o ChatGPT. A partir disso, promovemos uma discussão inicial com os alunos sobre IA generativa, refletindo sobre seus conhecimentos prévios sobre o tema.
Em seguida, os alunos realizaram uma atividade em que tiveram que ler três parágrafos e identificar qual havia sido escrito por um aluno, qual foi gerado por IA e qual era o trabalho de um aluno corrigido pela IA. Eles também foram desafiados a formular hipóteses sobre como identificar a autoria com base na estrutura, no conteúdo e na linguagem do texto.
Por fim, compartilharam suas respostas, resultando em uma discussão sobre gramática comparativa entre o inglês e o português, estratégias eficazes de revisão de texto e as limitações e possibilidades do uso de IA em um trabalho escolar escrito.
Essa análise permitiu que os alunos compreendessem melhor o funcionamento da IA generativa, suas potencialidades e limitações, especialmente em relação à produção textual proposta naquela atividade. A prática promoveu uma ampliação do conhecimento sobre o funcionamento da IA, abordou a ética no uso de tais recursos e proporcionou um espaço para a construção de conhecimento na escola.
Os documentos da UNESCO sobre o trabalho com competências em IA oferecem várias sugestões de atividades. Recomendo fortemente a consulta a esses materiais para ampliar nosso repertório nas interações com a IA.
Obrigada!
Notas
1 Kelli Angelini é advogada, palestrante e escritora. Autora do livro Segredos da Internet que crianças e adolescentes ainda não sabem. Ajudando escolas e famílias a lidar com o uso de telas de forma responsável e segura.