O rio ensina que é preciso ser perseverante. Ele diz que é preciso encontrar um motivo para seguir adiante. [...] Porque dentro dele tem uma voz que repete sem cessar que, se ele parar, jamais irá se encontrar com o grande rio, lugar de onde vieram nossos ancestrais e para onde voltaremos depois desta nossa existência. O grande desejo do rio é ser rio. Ele não quer ser outra coisa. E ele só não poderá sê-lo se abandonar sua verdadeira vocação.

(Daniel Munduruku)

Em nosso tempo, não podemos mais pensar em educação escolar (em seus diferentes níveis), metodologias de ensino/pesquisa/extensão e suas relações com os povos indígenas sem dissociar do imperialismo e de suas severas práticas coloniais (Smith, 2018), mesmo em áreas do conhecimento que se apresentam como progressistas ou sensíveis aos povos indígenas.

Antes da colonização não éramos materializados e cristalizados no léxico “índio/índia” e seus derivados (indiozinho, indiazinha) e não pertencíamos ao tempo histórico do passado como lembrança do período da colonização. O projeto colonialista brasileiro ocultou e ainda oculta a presença e atuação dos diferentes povos indígenas no processo de formação de identidade nacional. Silêncio, exclusão, generalização e fixação dos povos indígenas ao passado permanecem até os dias atuais e em formato de consolação, nos resta o dia 19 de abril, hoje nomeado Dia dos Povos Indígenas, mas na prática concretiza ainda o Dia do Índio.

Ao nos aprisionar no léxico “índio/índia” determinado efeito de sentido é produzido na memória social e, como resultado, a maioria da população não sabe quem são os povos indígenas e desconhece por completo nossas características culturais, saberes e contribuições na formação do estado brasileiro. A memória social hegemônica sobre os povos indígenas é tão negativa e retrógada que até nós, povos indígenas da contemporaneidade, somos convencidos de não sermos indígenas por não nos reconhecermos no estereótipo de “índio/índia” cristalizado no tempo passado (Kayapó, 2021).

Quando criança, minha família e eu passamos por muitas violências em nossas vivências na cidade de Manaus e, de alguma maneira, todas elas estavam associadas ao fato de minha mãe ser uma mulher indígena, do povo munduruku, e, como consequência, eu não queria de maneira alguma continuar vivendo todos aqueles processos de violência e fui convencida, pela educação escolar, que se eu estudasse muito, poderia mudar a realidade da minha família e, assim, minha mãe nunca mais sofreria por ser uma mulher ‘diferente’. Mera ilusão. Sem perceber, eu estava entrando em estado de coma colonial.

No entanto, foi a mesma educação escolar que me fez despertar do coma colonial em que me encontrava, pois apesar das inúmeras violências que sofri enquanto estudante em formação não indígena, tive a oportunidade de conhecer pessoas que entendiam que uma nova forma de educação era possível.

Foi quando me deparei com processos de educação antirracistas e de perspectiva decoloniais e nenhum deles me foi apresentado dentro da sala de aula, mas em convivência direta com as lutas por direitos sociais. Embora em tempo considerado por alguns como tardio, senti os reflexos das mudanças e pressões sociais que impulsionaram, entre outras coisas, a Lei 11.645/2008.

O nosso tempo tem a responsabilidade do refazimento das nossas histórias, mas pra além disso, precisamos denunciar as práticas de educação escolar que ainda perpetuam e cristalizam nossos corpos em estereótipos e no tempo do passado. Precisamos exigir nossa ativa participação e presença no tempo do agora, pois somos corpo-território-memória ancestral, mas somos também sujeitos do presente. A urgência de uma educação escolar que rompa com qualquer laço de colonialidade se faz necessário para que a gente construa novas perspectivas de sociedade da pluralidade. E uma das ferramentas que temos é a lei 11.645/2008.

Disputas de linguagem – Índio, nunca mais. Somos indígenas e pertencemos a diferentes nações

Em confluência ao que afirma Nêgo Bispo (2017), estamos em plena guerra de linguagem e precisamos elaborar nossas próprias palavras, pois é a linguagem que constrói mundos e não o contrário. Esse processo de disputa de linguagem ocorre desde a chegada dos colonizadores ao Brasil. O esloveno Slavoj Zizek quando escreve sobre a violência nos afirma que existem violências muito mais intensas e pontuais que aquelas visíveis pelo sangue. Existem algumas que são silenciosas e se camuflam na assepsia. Entre elas, o autor nos apresenta a violência sistêmica em que, entre outras questões, a linguagem é utilizada como tecnologia para impor hegemonias.

Quando nos chamam de índios/índias, os colonizadores anulam de imediato toda nossa diversidade e nos colocam em um status social inferior àquele que eles ocupam. Em exercício de poder assimétrico, nos dominam, nos exploram, nos matam e os que sobram são convencidos de não serem mais indígenas por diferentes processos de assimilação e integração. Quando escrevi sobre os processos que sofri quando ainda criança foi pra enfatizar que ninguém consegue ter orgulho de ser “índio/índia”.

Quando Célia Xakriabá (2019) fala sobre a urgência do amansamento da escola, é para o giro decolonial que ela aponta. Segundo Xakriabá, embora a escola tenha nos convencidos de que nós éramos povos selvagens, rústicos e sem conhecimentos e que somente via educação escolar e todos os seus diferentes processos de violência é que alcançaríamos o estado civilizado, na verdade e em outra perspectiva, é a escola quem é selvagem pois ela atuava e ainda atua como causador principal do estado de coma colonial pois produz, reproduz práticas contínuas de colonialidade, portanto esse é o tempo do amansamento da escola e tudo o que ela costuma apregoar como verdade e saber.

Quando a escola continua nos nomeando de índios/índias todo um contexto histórico e de violência desaparece. É importante lembrar que no século XVI mais de 900 povos diferentes habitavam as regiões chamadas hoje de Brasil e em torno de 1.100 línguas e diferentes dialetos eram falados livremente.

Os registros contemporâneos apontam cerca de 5 a 8 milhões de pessoas ocupando, produzindo tecnologias e fazendo parte desse imenso território dito vazio e descoberto. Muitos desses parentes não conseguiram chegar ao século XXI e isso em razão dos diferentes processos de dizimação dos povos indígenas produzidos pela colonização.

Aqueles povos que conseguiram tiveram toda sua cultura e seus modos de vida modificados por diferentes imposições e modificações na jurisprudência desde o Brasil Colonial até o atual Brasil República.

Não podemos nos esquecer do grande processo de luta e resistência até a Constituição de 88 e não é porque vivemos tempos democráticos e de direitos que não somos regidos pela hipocrisia do direito no papel, mas pela contínua falta de direitos na prática.

Daniel Munduruku (2017), ao escrever para educadores afirma que ao colocar todos os povos indígenas no léxico “índio/índia” temos como resultado uma falta de conhecimento da diversidade desses povos e que precisamos reverter essa situação. O munduruku afirma que:

[...] os “índios” foram, na verdade, uma invenção dos colonizadores a fim de reduzi-los e escravizá-los. Nessa palavra colocaram aproximados mil povos com culturas bastante diferentes entre si; encerraram mil e cem línguas distintas e, nelas, visões de mundo que formavam um mosaico internacional interessante e único. Ao reduzi-los, dominaram; ao dominá-los. Enfraqueceram valentes civilizações. Tudo isso contido em uma única palavra: índio. (Munduruku, p. 17, 2017).

Edson Kayapó (2021), ao escrever sobre o papel da área do conhecimento História no giro decolonial denuncia que a escola e seus currículos não devem mais pactuar com a contínua reprodução de vazios de informações ou na manutenção de modelos estereotipados a respeito dos povos indígenas. Segundo o parente,

A Lei 11.645/2008 abre novos horizontes para o ensino de história e cultura dos povos indígenas, possibilitando a superação do silêncio e da memória produzida pelos grupos hegemônicos, colocando sob suspeita o currículo que produz e reproduz a invisibilidade destes povos (Kayapó, p. 41, 2021).

No entanto, mesmo diante de leis que deveriam garantir o ensino da pluridiversidade de povos indígenas, ainda nos encontramos rotulados inclusive por dispositivos de exercício de poder, que ao invés de serem centros formativos subversivos, sequestram nossos próprios vocabulários e tentam capitular nossas lutas. A exemplo de situações semelhantes a essa, em agosto de 2024, ao realizar o VII Encontro Estadual de História na ANPUH-AM na Universidade Federal do Amazonas - UFAM, a cúpula do Teatro Amazonas foi utilizada como identidade visual do evento.

O Teatro Amazonas é um dos maiores símbolos da colonização dos povos indígenas em nossa região e sua edificação está construído no centro da cidade de Manaus, em outras palavras, está construída em cima dos corpos dos nossos ancestrais, pois o centro de Manaus é um grande cemitério indígena.

Quando utilizam a cúpula do Teatro Amazonas como identidade visual, o evento de história no Amazonas nos afirma que nos reconhecem como mortos e enterrados, mas na verdade nós estamos vivos, presentes, ocupando as mesas e contestando essa contínua tentativa de genocídio étnico, pois, como bem afirmou o parente Edson Kayapó: Fiquem atentos pois estamos batendo nas postas pedindo pra entrar, mas se as portas não se abrem, a gente entra no chute mesmo.

A importância de sermos corpo-território-memória: processos de resistência

O retrospecto dos diferentes processos históricos, mesmo que sintético, apresentados até aqui possui a intenção de denunciar o projeto colonialista do Brasil república com relação aos povos indígenas, mas contrariamente a todas as projeções de integralização e dizimação, nós resistimos.

Entre muitas tecnologias que desenvolvemos, uma das que trago para esse debate é a memória. Segundo Célia Xakriabá (2019) é a união da memória nativa (ancestral) e da memória ativa (contemporânea) que conseguimos fortalecer nossa memória ancestral. Entre muitas maneiras de realizar esse processo está na escuta, produção e reprodução da narrativa de nossas anciãs e de nossos anciãos em nossas pesquisas. É tempo de reverberar as vozes dos nossos.

Davi Kopenawa (2010) quando narra em A queda do céu sobre memória, ele afirma que os não indígenas (os brancos), embora se achem bastante inteligentes são limitados porque foram ensinados a ocupar seus pensamentos de grandes vazios e a não valorizar os sonhos e, como consequência, sonham com nada. Ao contrário dos brancos que precisam escrever suas lembranças para conseguir ter um registro de memória, nós expandimos cada vez mais nossos pensamentos e, por isso, não precisamos escrever para lembrar. Enquanto isso, a lembrança e as palavras dos não indígenas é tortuosa e nublada, em outras palavras é frágil.

Ailton Krenak (2023) ao ouvir as palavras de Kopenawa nos lembra que nós precisamos ser um corpo-memória para garantir a continuidade dos nossos. Podem invadir nossos territórios, queimar nossas moradias, destruir nossos corpos, podem até nos conduzir ao estado de coma colonial, mas nunca apagarão definitivamente nossas memórias, pois não precisamos unicamente do papel para registrar nossa ancestralidade e, dessa maneira, nossa memória não pode ser queimada nunca. Mas é preciso saber ativar, manter e reavivar nossa memória ancestral, por isso, precisamos nos lembrar que somos sujeitos de constelação, em outras palavras, precisamos “andar” juntos.

Márcia Kambeba (2020), associa nossas memórias ancestrais aos rios. Embora os rios façam e passem por diferentes percursos, eles sempre voltam para o mar. Embora nossos corpos passem por diferentes e muitos processos de violência e de tentativas de apagamentos de nossas identidades indígenas está sempre lá e quando nos encontramos com nossos pares, nossos rios, que correm em nossas veias se agitam e quanto mais forte são nossos lanços ancestrais, mais banzeiros são produzidos em nossos rios e nosso desejo de retornar para o mar fica tão intenso que conseguimos despertar dos comas coloniais. Mas isso é possível e se torna muito mais fácil quando estamos em coletivo.

Krenak nos lembra que somos sujeitos de constelação, em outras palavras, significa que precisamos estar juntos dos nossos pares para brilharmos com muito mais intensidade. Os diferentes processos de resistência se fortalecem quando nos organizamos. A próprio Lei 11.645 é resultado de luta, resistência e organização do movimento indígena, além dela podemos citar inúmeros outras vitórias, a maior de todas foi a presença da existência e garantia dos direitos indígenas na Constituição de 1988.

Nossa presença viva e de resistências nas diferentes universidades do país. Obviamente não temos todos os nossos direitos garantidos, mas sem nenhuma dúvida nossas diferentes maneiras de nos organizamos em coletivo nos fortalece.

Não existe outra forma, meus parentes, que não seja a luta organizada e coletiva para que a gente consiga garantir e proteger nossos direitos.

Em nosso tempo precisamos continuar a produzir tecnologias e precisamos continuar analisando nosso meio para continuar existindo. Nossos ancestrais resistiram bravamente com seus arcos e suas flechas. Hoje precisamos continuar esse processo de resistência, mas agora transformando nossos arcos e flechas em outras tecnologias. É na confluência entre nossos conhecimentos ancestrais e os diferentes outros conhecimentos que temos contato, entre eles aqueles produzidos pelas academias que o refazimento das nossas histórias será possível. Eu não índia. Sou Munduruku! E você quem é?