A cidade de Belém, encravada entre rios e floresta, se prepara para receber a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas — a COP30 — em 2025. Com essa escolha simbólica, o Brasil está no centro do palco da diplomacia climática mundial. Mas o que poderia ser um triunfo do ambientalismo pode, paradoxalmente, revelar o abismo entre discurso e prática.
Belém não é apenas um destino exótico para diplomatas e chefes de Estado: é a porta de entrada para a Amazônia, um dos ecossistemas mais vitais do planeta. Receber a COP30 ali é como sediar um congresso de cardiologia com o paciente de coração aberto na sala ao lado. O simbolismo é poderoso, mas as contradições são evidentes.
À medida que os líderes mundiais se preparam para discursar sobre neutralidade de carbono, energias renováveis e justiça climática, uma ameaça real corta a floresta em linha reta: a rodovia BR-319, um trecho de 885 km que liga a capital do Amazonas, Manaus, a Porto Velho, atravessa uma das regiões mais intocadas da floresta amazônica. Agora, com uma proposta de reconstrução de 406 km, este projeto ameaça desencadear uma cadeia de destruição, transformando um ecossistema intacto em uma porta de entrada aberta para o desmatamento, o crime e a ganância corporativa.
As consequências não seriam apenas locais, elas se espalhariam pelo Brasil e pelo mundo, acelerando o colapso climático e colocando as comunidades indígenas em risco extremo. Mais de 6.000 km de estradas ilegais já foram construídos na BR-319 e, com uma maior expansão, o crime organizado só fortalecerá seu domínio sobre a região, colocando em perigo a vida indígena e os defensores da floresta tropical.
O paradoxo é evidente: como o Brasil pode liderar uma conferência sobre clima enquanto destrói seu maior ativo ambiental? É como acender uma fogueira dentro de uma usina solar.
A floresta amazônica sempre foi mais que um símbolo — é um organismo vivo que regula a vida no planeta. Chamada de “pulmão da Terra”, a Amazônia desempenha um papel vital na estabilização das temperaturas globais. Sua destruição não representa apenas a perda de árvores; significa acelerar mudanças climáticas já em curso, tornando os eventos extremos ainda mais frequentes, violentos e imprevisíveis.
No centro desse desastre iminente está a região da AMACRO, um hotspot de desmatamento que abrange os estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Se a BR-319 for reconstruída, ela abrirá um caminho direto entre essas terras fortemente desmatadas e o coração intocado da Amazônia. Com a floresta tropical já se aproximando de um ponto de inflexão irreversível, essa rodovia pode ser o gatilho que a empurra para o limite. A floresta tropical, desempenha um papel crucial na estabilização das temperaturas globais. Destruí-la aceleraria as mudanças climáticas.
Mas não é apenas a natureza que sangra nesse processo. O custo humano da devastação é igualmente brutal. A reconstrução da BR-319 colocaria sob ameaça direta 69 comunidades indígenas — mais de 18 mil pessoas — sujeitas à invasão de terras, à violência sistemática e ao deslocamento forçado. A grilagem, a mineração ilegal e a extração predatória de madeira, hoje já agressivas, ganhariam impulso irreversível com a reabertura dessa estrada.
O ecólogo e biólogo da conservação Cássio Cardoso Pereira, editor das revistas BioScience, Biotropica e Nature Conservation, foi direto em sua avaliação da COP30.
O Brasil está em uma encruzilhada. Eventos como as COPs podem gerar ideias, mas sem um compromisso real, eles não impulsionarão a mudança urgente que precisamos. Declarações vazias sobre ter a maior floresta tropical do mundo e recursos renováveis abundantes não significam nada se ignorarmos os incêndios, as emissões de gases de efeito estufa e a destruição implacável que os ameaçam.
Esse é o paradoxo que a COP30 não poderá ignorar. O desmatamento não é apenas uma ferida ecológica: ele interrompe os chamados “rios voadores” — correntes atmosféricas carregadas de umidade que mantêm o ciclo de chuvas para vastas áreas do território brasileiro. Sem eles, a seca ameaça a agricultura, o abastecimento urbano e milhões de vidas.
E há ainda outro perigo latente: o salto de doenças da fauna silvestre para os humanos. O desmatamento cria as condições ideais para a emergência de novas zoonoses. Em um mundo ainda abalado pela COVID-19, esse risco se torna insuportável — mas real.
Mesmo diante dos alertas de cientistas como Lucas Ferrante (USP/UFAM) e Philip Fearnside, o governo brasileiro segue impassível. A BR-319, símbolo de uma lógica desenvolvimentista arcaica, continua sendo impulsionada com apoio político, empresarial — e até de ONGs. Por trás do discurso de progresso, escondem-se os verdadeiros beneficiários: as indústrias do petróleo, do agronegócio e da mineração, muitas delas atuando nas bordas da legalidade.
Em 2024, o mundo testemunhou novos recordes alarmantes nos níveis de gases com efeito de estufa e no aumento das temperaturas do ar e da superfície do mar, conforme monitorizado pelo Serviço de Alterações Climáticas Copernicus. Essas mudanças desencadearam eventos climáticos extremos em todo o mundo, inclusive no Brasil, destacando a necessidade urgente de as nações eliminarem gradualmente os combustíveis fósseis. No entanto, em vez de tomar medidas decisivas, os países poluentes, estão aumentando a produção de combustíveis fósseis, empurrando o planeta ainda mais para a crise.
A trajetória do Brasil é profundamente preocupante. De acordo com o Ministério do Comércio do país, as exportações de petróleo subiram para US$44,8 bilhões este ano, superando a soja como a principal exportação do país. Projeções da Rystad Energy indicam que, até 2030, a produção de petróleo do Brasil ultrapassará 7 milhões de barris de óleo equivalente por dia (boepd), elevando o país do sétimo para o quinto maior produtor de petróleo do mundo.
Em 2024, a Petrobrás atingiu um nível de produção impressionante de 2,4 milhões de barris de petróleo por dia. Com total apoio de Lula, a empresa está avançando com planos controversos de expandir a exploração de petróleo na foz do rio Amazonas, uma região ecologicamente frágil. Este projeto ameaça recifes de coral vitais, extensos manguezais e os meios de subsistência das comunidades indígenas e locais. Além desses perigos imediatos, os riscos de derramamentos de óleo e aumento das emissões de gases de efeito estufa podem ter consequências globais catastróficas.
Para Ferrante, a rodovia é mais que uma via asfaltada:
Isso é mais do que uma estrada; é um ponto de virada. O desmatamento e a degradação já são visíveis ao redor da BR-319. Se a rodovia for reconstruída, poderá desencadear uma reação em cadeia irreversível que devastará a Amazônia, prejudicará comunidades indígenas e acelerará as mudanças climáticas além do controle.
A escolha está posta com clareza: ou se escuta a ciência e se protege o último grande ecossistema da Terra, ou se entrega o futuro a lucros de curto prazo e destruição prolongada. A COP30 será o palco dessa decisão.
O fogo já começou
Em 2024, o Brasil vivenciou uma catástrofe ambiental de proporções inéditas. Segundo dados do MapBiomas, 30,8 milhões de hectares foram consumidos por incêndios — uma área maior do que toda a Itália. Foi o pior ano de incêndios na Amazônia em 17 anos.
No epicentro da destruição: a pecuária. Criadores de gado, em nome da produtividade, avançam sobre a floresta com fogo e motosserra. Em paralelo, o país exporta, com orgulho e eficiência, números recordes de carne bovina: 2,89 milhões de toneladas, gerando US$12,8 bilhões. Os maiores destinos são a China, os Estados Unidos, os Emirados Árabes e a União Europeia.
Mas há um custo oculto nessa cadeia de sucesso. A pecuária é responsável por 88% do desmatamento da Amazônia.
A hora da verdade
A COP30 será mais do que uma conferência ambiental. Será um julgamento. O Brasil terá diante de si a chance de mostrar se ainda pode conciliar desenvolvimento com preservação, soberania com responsabilidade.
A pergunta que ecoa é dura e urgente: a COP30 será mais um palco para o business as usual das indústrias poluidoras ou o Brasil terá coragem de ser exemplo e liderança global?
Essa é uma oportunidade única — talvez a última — de o país colocar os direitos indígenas, a justiça ambiental e as ações climáticas no centro de sua política. A escolha entre lucros e futuro não é abstrata: está em cada decisão legislativa, em cada licenciamento, em cada árvore poupada ou queimada.
As promessas do presidente Lula, feitas com eloquência e esperança, precisarão se traduzir em atos concretos. A história cobrará.















