Encontramos nas culturas populares dispositivos para modos de sobrevivência. Esses mecanismos existem como suporte que gera a liga da convivência na sociedade. Por sua vez, as culturas populares impulsionam a mudança social pela vontade de lugar de fala, pelo descontentamento da ordem imposta e para a reatualização de sua dinâmica. As culturas populares são provocadoras. E como são!

Digamos que as culturas populares reagem ao sistema de maneira singular e surpreendente. Por sua forma de sobrevivência, elas ressoam modos de vida entre o céu e a terra, onde precisamos da ternura. Como diz Luis Carlos Restrepo, a “ecoternura é desburocratizar o conhecimento, convertendo sua produção e conservação numa prática de autogestão” (Restrepo, 1998, p. 85). Ainda acrescenta Restrepo, “conviver num ecossistema humano implica uma disposição sensível a reconhecer a diferença, assumindo com ternura as ocasiões que nos oferece o conflito para alimentar o mútuo crescimento.”

Então, para construir um império dos afetos, será necessário irmos em busca do direito à ternura, que anda bastante esquecida na nova era virtual. Ainda que, por muito tempo, fomos criados para não apresentarmos fraqueza afetiva, que colaborou com o início do analfabetismo afetivo. Segundo Restrepo, o “analfabetismo afetivo” dificulta compreender as raízes de nosso sofrimento e ainda impede de encontrar as chaves para melhorar nossa vida cotidiana. Só nos resta então sentir com as vísceras, splacnisomai!

Splacnisomai é uma palavra que corresponde à conjugação de um verbo desaparecido entre os séculos II e III, do original grego do Novo Testamento. Utilizado pelos evangelistas, o termo refere-se à dimensão milagrosa de Cristo, afirma Restrepo. Tiramos da educação o tato, o olfato e o paladar. Com isso, ocorreu uma fratura nos afetos. Em muitos lugares, o cheiro é sinônimo de sabedoria. Mas nem tudo está perdido.

Temos no folclore ou cultura popular um patrimônio cultural que exala ternura. Por exemplo: como nasce um bumba meu boi? Como se dança o cacuriá no Estado do Maranhão? O que devemos oferecer à comadre florzinha? Qual a receita do bolo de rolo de Dona Maria, em Pernambuco? Qual a melhor cantiga de ninar para embalar um filho? Será que devo deixar meu chinelo emborcado? Qual a melhor oração para acalmar uma criança? Por onde anda o homem do saco e o papa figo? E a gata pintada? Quem te pintou?

Tudo isso forma o império dos afetos. Já dizia Roland Barthes, “Onde és terno, dizes plural”. Para tanto, ser humano é considerar que temos fragilidade. É uma pena o sistema não reconhecer a cognição afetiva. Ela está presente no folclore, onde produz e reproduz singularidades. Como exemplo temos os mestres da cultura popular, onde cada um apresenta seu afeto com sua manifestação e seus folguedos. Não existe o melhor, existe a ternura. Os mestres têm formosura. São capazes de falar de política, religião e brincadeira sem perder a ternura. Sabem por quê? Porque a ternura está sempre presente. Mesmo assim, com tanta tecnologia e com a exaltação do consumo, os brincantes não confundem razão com ternura. Eles sabem que uma ideia se vence com outra ideia, sem perder a essência do encontro e das vivências entre o céu e a terra. Para tanto, devemos observar a potencialidade de cada ser humano. Mas por que não fazemos da educação uma consciência afetiva? Qual projeto de futuro queremos para a educação? Quais os caminhos possíveis para unirmos ciência com afetos? Como pode um trabalhador que corta cana de açúcar usar o surrão, fantasia do maracatu rural?

A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz afirmava que é pelo afeto. O afeto explica toda forma de ternura nas relações sociais. Nas convivialidades, o que ressoam são os costumes. Por sua vez, a cultura popular é uma fonte de ternura.

Digamos que a crise nas ciências sociais esteja voltada pela distância na cultura, que é fonte de identidade. A tradição é a ressonância da ternura entre o antigo e o que está por vir. Não se pode separar os costumes das questões políticas.

Assim, somos conectados com o mundo e por isso somos ressonantes diante de nossas convivialidades. O cotidiano é solo fértil de ressonâncias. Como afirma Hartmut Rosa, “os seres humanos são, antes de mais nada, seres ressonantes”.

Por isso a simplicidade é a maior sofisticação, como afirma Leonardo da Vinci.

Digamos que essas questões são de muita utilidade no cotidiano, que é lugar de recriação da ordem. E, para tanto, necessitamos de uma conexão com o folclore e a cultura popular. Esta conexão faz dos seres humanos mais humanos. Talvez precisaremos deixar de nos acostumar com a pedagogia do terror, segundo Restrepo. Quando a singularidade desaparece damos espaço para a violência. Por tudo isso devemos apresentar caminhos possíveis para a pedagogia da ternura por meio da cidadania do afeto. Ternura não é só simpatia, pois a ternura é concebida como ato de conquista.

Não precisas trazer presentes, nem rimas, nem flores e nem nada. Basta trazeres o que sentes.

(Carlos Drummond de Andrade)