Marc Léopold Benjamin Bloch (1886–1944), historiador fundador da escola dos Annales, apresenta em sua derradeira obra — escrita no cárcere e publicada postumamente em 1949 — uma proposta metodológica que redefine o ofício do historiador, distanciando-o do positivismo estanque e abrindo caminho à interdisciplinaridade e à reflexão ética sobre o passado. Uma das imagens mais fortes do livro surge no primeiro capítulo, A história, os homens e o tempo, quando Bloch afirma: “Já o bom historiador se parece com o ogro da lenda. Onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça” . Esta metáfora, rica e polissêmica, condensa seu entendimento sobre o papel do historiador: não como mero narrador de fatos mortos, mas como predador atento às marcas humanas, vivos rastros de ação e experiência.

O sentido da metáfora: rastrear rastros humanos

Bloch combate a ideia de que a História é apenas a ciência do passado — entendida como um repertório de fatos isolados. Para ele, o verdadeiro objeto da História é o homem — ou melhor, os homens — no tempo . Nesse sentido, o historiador é como um ogro que fareja “carne humana”: ele busca aquilo que tem vida — as ações, mentalidades, testemunhos, práticas — e constrói narrativas baseadas nos vestígios deixados pelos seres humanos ao longo do tempo.

Ele está justamente desmontando a visão positivista e cronológica da História como mera “coleção” de fatos e datas. Quando afirma que o objeto da História são “os homens no tempo”, ele enfatiza que o foco não está no passado por si só, mas nas experiências humanas e nas transformações que se dão ao longo das temporalidades.

A imagem do ogro, nesse contexto, cumpre duas funções:

  • Metodológica — indica a postura ativa do historiador, que “fareja” vestígios humanos nos mais diversos registros: documentos escritos, artefatos, práticas culturais, tradições orais, paisagens modificadas.

  • Epistemológica — reforça que a História é uma ciência de vida e movimento, voltada a compreender processos, não apenas registrar ocorrências.

Essa metáfora também dialoga com outros pontos do livro, como quando Bloch afirma que a História não deve julgar, mas compreender. O “farejar” é a busca pelo humano em sua plenitude — tanto nas grandes ações políticas quanto nos gestos cotidianos —, para construir uma narrativa que faça sentido para o presente.

Entre ciência e arte: uma postura crítica e sensível

Bloch problematiza ainda a distinção entre história como ciência ou como arte. Embora enxergue a história como ciência — “ciência dos homens no tempo” — enfatiza que o historiador precisa também de “tato com as palavras” e uma sensibilidade estética na escrita e no método . A metáfora do ogro, portanto, transcende a imagem do «caçador rústico»; ela evoca uma postura híbrida, onde precisão e sensibilidade se conjugam, onde o historiador deve saber “farejar” e “tocar”, nomear e revelar sem aprisionar.

Ao definir a História como “ciência dos homens no tempo”, Bloch mantém a exigência metodológica: a pesquisa histórica deve se apoiar em fontes, crítica documental e análise rigorosa. Contudo, ele também reconhece que a escrita da História não é um exercício neutro ou meramente técnico. É aí que entra a necessidade de “tato com as palavras” — uma habilidade que se aproxima da sensibilidade artística, pois envolve escolhas narrativas, estilo e capacidade de comunicar vividamente processos humanos complexos.

Na metáfora do ogro, essa fusão é fundamental. O historiador não é apenas um “caçador rústico” que recolhe qualquer vestígio; ele precisa compreender o significado desses rastros e devolvê-los ao leitor de forma inteligível e significativa. “Farejar” representa o rigor investigativo, a atenção ao detalhe e ao indício; “tocar” representa a delicadeza interpretativa e a responsabilidade de não deformar ou aprisionar o sentido histórico ao transmiti-lo. Assim, Bloch sugere que a boa história é fruto de uma alquimia entre a exatidão do pesquisador e a sensibilidade do narrador.

O historiador como caçador de vestígios e dúvida crítica

A obra reserva ao historiador o papel de investigador. No capítulo II (Observação histórica), Bloch ressalta que, diante de testemunhos fragmentários ou indiretos, é necessário ter persistência e habilidade para “interrogar” documentos — escritos ou materiais — e extrair neles vestígios significativos . Essa missão corporifica a metáfora do ogro: alguém que explora, fareja pistas, perscruta o vestígio mais ínfimo na busca de algo humano.

No capítulo II – “Observação histórica”, Bloch enfatiza que as fontes nunca falam por si mesmas; elas precisam ser interrogadas. Esse verbo não é escolhido ao acaso: ele traduz a atitude ativa e crítica do historiador diante dos testemunhos, sejam eles textos, objetos, monumentos, imagens ou práticas sociais. Muitos desses vestígios chegam de forma incompleta, fragmentada ou até deformada por mediações de época.

A metáfora do ogro se concretiza aqui: tal como a criatura mítica que detecta sua presa pelo cheiro, o historiador precisa desenvolver uma sensibilidade especial para identificar, mesmo nos sinais mais tênues, a presença de experiências humanas que merecem ser compreendidas. Não se trata de acumular fragmentos indiscriminadamente, mas de articular as pistas num quadro coerente, capaz de iluminar dimensões do passado que, sem essa persistência, permaneceriam ocultas.

Superar o positivismo: causas buscadas, não postuladas

A imagem do ogro também expressa a rejeição do positivismo histórico. No capítulo V (inacabado), Bloch afirma que as causas em história “não são postuladas. São buscadas” . O historiador-ogro não impõe explicações predefinidas; ao contrário, ele segue trilhas, sente o rastro e busca compreender o encadeamento dos acontecimentos no interior de contextos múltiplos. Não há causa única, mas multiplicidade de vestígios a serem descobertos.

No capítulo V — deixado inacabado devido à prisão e posterior execução de Bloch pelos nazistas —, ele formula uma crítica incisiva ao positivismo histórico do século XIX, que pressupunha que a tarefa do historiador era apenas registrar fatos e alinhar causas únicas e lineares para os acontecimentos. Ao afirmar que as causas “não são postuladas. São buscadas” , Bloch desloca o eixo interpretativo: a explicação histórica não parte de hipóteses prontas a serem confirmadas, mas de uma investigação aberta, atenta à pluralidade de fatores.

Nesse sentido, o historiador-ogro não é um organizador passivo de evidências, mas um caçador que, ao farejar rastros humanos, percebe que eles se entrecruzam em direções diversas. Cada evento histórico emerge de uma rede complexa de condições econômicas, políticas, sociais, culturais e até ambientais. Não há uma “causa mãe”, mas sim um tecido denso de causalidades que só se revela a quem está disposto a seguir pistas até mesmo nas trilhas mais improváveis.

Compreender, não julgar: uma ética do historiador

No capítulo IV (Análise histórica), Bloch compara o historiador ao juiz, mas destaca que sua vocação não é julgar, e sim compreender. Ele rejeita o julgamento moral ou anacrônico de épocas passadas e privilegia uma análise empática e contextualizada . A metáfora do ogro, assim, não significa devorar ou condenar; é antes apreender e tornar visível a humanidade que perpassa as esferas do tempo.

No capítulo IV – “Análise histórica”, ao comparar o historiador a um juiz, Bloch alerta para a tentação de aplicar critérios morais contemporâneos a realidades passadas — o chamado anacronismo. Tal prática, segundo ele, compromete a compreensão histórica, pois substitui a análise pelo julgamento e fecha a possibilidade de diálogo entre tempos distintos. O bom historiador, como o “ogro” de sua metáfora, não se aproxima do passado para devorá-lo ou condená-lo, mas para reconhecer, nos vestígios humanos, a complexidade e a singularidade de cada época.

Assim, o “farejar carne humana” significa buscar sinais de vida, emoções, conflitos, escolhas e constrangimentos que moldaram as ações humanas. É um trabalho que exige empatia intelectual, ou seja, a capacidade de colocar-se no horizonte mental dos sujeitos históricos sem abdicar da análise crítica. Essa postura preserva a alteridade do passado e reforça a função do historiador como mediador entre mundos temporais, não como juiz que dita sentenças retroativas.

O homem no tempo e o papel social do historiador

A metáfora do ogro se insere em uma proposta mais ampla: Bloch quer que o historiador seja consciente do seu ser-no-tempo, interaja com disciplinas como sociologia, psicologia, geografia — e, acima de tudo, esteja ligado ao presente como mediador entre fontes e sociedade . O historiador-ogro não está isolado; fareja rastros para que o presente compreenda melhor o passado — e, com isso, possa agir de forma informada em seu próprio tempo.

Ao enfatizar que o historiador deve ser consciente do seu ser-no-tempo, Bloch rejeita a ideia de neutralidade absoluta. O historiador é um sujeito histórico, situado, cujas perguntas ao passado são moldadas pelas inquietações do presente. Por isso, ele deve interagir com campos como a sociologia, a psicologia, a geografia e até mesmo a economia e a antropologia, compondo análises que escapem ao isolamento disciplinar.

O “historiador-ogro”, nesse sentido, não é um eremita enclausurado em arquivos; é um caçador de rastros que circula por múltiplos territórios do conhecimento e mantém o olhar voltado para o mundo contemporâneo. Ao farejar vestígios humanos, ele não apenas reconstrói o passado, mas o devolve à sociedade com sentidos renovados, capazes de orientar ações e decisões no presente. Essa dimensão prática e pública do ofício é uma das marcas mais fortes de Apologia da História, conectando a pesquisa histórica à cidadania e à responsabilidade social.

Conclusão

A metáfora do ogro que “fareja carne humana” é mais do que uma imagem memorável; é um símbolo potente da concepção de trabalho que Bloch defende: um historiador atento, crítico, interdisciplinar, sensível e ético. Ele não caça ideias preconcebidas, nem devora os sujeitos do passado; pelo contrário, rastreia vestígios humanos, busca compreender em sua temporalidade, rejeita o julgamento imediato e reafirma a História como ciência dos homens no tempo. Esse histórico humano, vivo e plural, é a “carne” que a História precisa, e o historiador é o ogro que a mente fareja.

A metáfora do ogro que “fareja carne humana” transcende a simples engenhosidade literária: ela condensa uma concepção de ofício histórico enraizada na consciência de que o passado é tecido por vidas concretas, emoções, conflitos e construções culturais. Em Bloch, esse “farejar” não é instinto predatório, mas exercício crítico e sensível de percepção dos vestígios humanos, mediado por rigor metodológico e abertura interdisciplinar. O ogro-historiador não se alimenta de abstrações descoladas da experiência; busca, antes, compreender o homem em suas múltiplas temporalidades, resistindo tanto ao julgamento apressado quanto à neutralidade complacente.

A “carne” que a História precisa é o humano em sua densidade — marcado por contradições, subjetividades e materialidades — e é nesse sentido que a metáfora revela sua potência: o historiador, como ogro, não teme aproximar-se do vivido, mesmo quando ele é desconfortável ou incômodo, pois é justamente ali, nos traços mais concretos da existência, que se encontra a possibilidade de uma História viva, plural e profundamente humana.

Referências

Bloch, Marc. Apologia da história, ou, O ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 54-55; 65; 136.
Apologia da história.