Com o cair da noite chegam as trevas e a luz de uma pequena lamparina a querosene é acesa para iluminar o ambiente. Após uma extensa jornada diurna de trabalhos domésticos, a mãe ainda ajeita as brasas no ferro a fim de passar a roupa que havia lavado durante o dia. A menina lhe faz companhia enquanto se empenha em aprender mais essa tarefa doméstica tradicionalmente tão feminina. Mãe e filha compõem uma boa ‘parceria’, pois a mãe já logo se utiliza dos ouvidos da menina para expor suas queixas em relação ao pai da criança, sua amargura e suas frustrações no casamento. A menina a essa altura também já aprendeu que é preciso engolir em seco e aceitar calada os desmandos de seu pai patrão.

O ronco da caminhonete no silêncio da noite aproximando-se faz com que a menina corra para a cama, pois sabe que seu pai chegará alcoolizado, e estar na sua presença nestas condições se torna muito difícil. De sua cama, embaixo de seu cobertor, a menina ouve tudo. Somente ele fala. O pai parece ter delírio de grandeza e se põe a relatar o quanto é importante na cidade. Quando o tema não é esse (esta cena já se repetiu “n” vezes), dá broncas em sua mãe em reiteradas e acaloradas crises de ciúme. Sua mãe escuta e escuta, pois sabe que é ‘mió calaboca’.

Logo após a lamparina ser apagada, a menina ouve sussurros e o ranger da cama dos pais. Ela então encolhe seu corpinho, cobre a cabeça e tapa os ouvidos para não ouvir mais nada. Quando finalmente consegue adormecer, começa então a ranger os dentes.

Ao assistir de longe esta cena (no espaço e no tempo), observamos que a menina está sendo educada para a submissão. Ela já cultiva o medo do ‘homem grandão’ e é tomada por profundos sentimentos de insegurança, desamparo e solidão.

Ao mesmo tempo se identifica com a mãe no que ela tem de mais renegado na expressão de sua feminilidade.

A mãe, por sua vez, delegou o seu poder pessoal para o marido, não consegue ser ela mesma nem se impor no relacionamento. Ela se queixa, sentindo-se subjugada, mas por outro lado, não sabe agir por si mesma. Tem medo de se arriscar ao tomar decisões na vida. E ela vai cultivando dentro de si um ressentimento e uma mágoa insidiosos, que torna opaca e cinzenta toda a sua existência.

O pai, coitado, este talvez seja o mais infeliz na cena acima descrita, um esboço do drama típico da família patriarcal do século passado. Seus profundos sentimentos de inferioridade o fazem tentar se afirmar de uma forma distorcida. Ele entende que para ser homem com H e/ou uma pessoa de valor, precisa ser machão, autoritário, decidir pelos demais, passando como um rolo compressor por cima das vontades daqueles que estão numa relação hierárquica inferior com ele.

Certamente, muitos de nossos leitores irão dizer que esse modelo de sistema familiar é muito arcaico e que na segunda década da Era de Aquarius tudo isso já não faz mais parte de nossa realidade, sendo que o padrão da mulher Amélia e do Pai Patrão definitivamente são página virada nos usos e costumes da sociedade brasileira. É bem verdade que muitos dos modelos atuais de relacionamento são “flexíveis e plurais” e que a mulher já galgou degraus importantes em nossa sociedade, tendo chegado, inclusive, ao cargo público mais aspirado.

Não podemos deixar de ressaltar, entretanto, que os crimes de violência contra a mulher e aqueles contra a criança e o adolescente continuam acontecendo aos milhares, sendo que a motivação maior para estes crimes seriam questões primitivas de ordem emocional, cujas raízes estão presentes e impregnadas na cena relatada no início deste artigo. Mais uma vez esbarramos na fragilidade das emoções da espécie humana; seu comportamento (expressão externalizada destas emoções) não evolui e nem tampouco consegue acompanhar o ritmo vertiginoso das mudanças tecnológicas. Hoje, ao invés da luz de lamparina encontramos as lâmpadas de Led, mas homens continuam assassinando suas parceiras porque seu ego frágil de alguma maneira foi ultrajado (por exemplo, quando ela se recusa a continuar mantendo o relacionamento com ele). A era do Tudo Pode resultou em que não são colocados a crianças e adolescentes os limites necessários e adequados para seu desenvolvimento, de forma que se não nos deparamos com adolescentes infratores, esbarramos em adultos que funcionam sob a égide do princípio do prazer e apresentam baixo nível de tolerância à frustração, chegando-se até a cometer crimes em consequência disso.

Tudo isso nos faz pensar nos atributos de um sistema familiar saudável. Contudo, antes de pensar em construir uma família ou um relacionamento a dois é importante se reportar a si mesmo e se perguntar:

  • Qual é a relação que eu tenho comigo mesmo(a)?
  • O que eu consigo fazer por mim?
  • Qual é meu grau de autoestima e amor próprio?
  • O que eu espero que a outra pessoa faça por mim? Vale salientar que quanto mais independente é uma pessoa, menores as expectativas que irá depositar sobre o parceiro e maiores as chances de o relacionamento dar certo.

Nesse sentido, um quesito muito importante seria o respeito à individualidade do outro. Sempre que se aniquila a personalidade de outra pessoa em prol de seus próprios desejos e necessidades, estar-se-á cometendo uma violência contra ela, mesmo que esta violência seja sutil, psicológica ou simbólica.

Entre o casal, é preciso passar pelo teste da convivência, pois haverá um momento em que não se conseguirá mais corresponder à expectativa do companheiro(a) ideal que o parceiro(a) deposita no outro e as máscaras cairão. Então, precisamos saber se conseguimos nos afinar e dialogar com a pessoa real de carne e osso que está à nossa frente.

Nesse sentido, é importante aprender a não esperar tanto do parceiro, pois tanto um quanto o outro são humanos, e como tal apresentam qualidades e defeitos. Não nos esqueçamos que todos somos seres inacabados e imperfeitos e que estamos no planeta para lapidar nosso espírito.

Encontrar um meio termo aproximado entre saber ouvir / saber falar, talvez mais ouvir do que falar. Um exercício de empatia - olhar para a situação com os “olhos” da outra pessoa - funcionaria maravilhosamente. O tão falado diálogo passa por aí. Deixar um pouco de lado o próprio ego e abrir-se para as demandas de um mundo diferente do seu, sem nem por isso perder-se de si mesmo.

Relativo aos filhos, cabe aos pais propiciar a matriz que favoreça ao máximo seu desenvolvimento como um ser biopsicossocial.

No que diz respeito à educação dos filhos também é importante saber dizer Sim e saber dizer Não. Toda pessoa para funcionar bem na vida precisa se sentir minimamente gratificada, entretanto, é necessário saber lidar com frustrações, pois nem sempre podemos ter tudo que queremos.

Um grande termômetro para a saúde do vínculo é o crescimento de todos os envolvidos. Se as partes conseguem se desenvolver (no amplo sentido do termo) e cada um se sente confortável com o crescimento do outro, não necessitando desqualificá-lo por conta disso, então estamos em um sistema familiar saudável. Estando cientes dos alcances e limites da personalidade de cada um, a tarefa de se juntar para ‘mexer o tacho’ a fim de co-criar uma relação mais rica e harmoniosa, pode ser muito estimulante. Neste projeto coletivo, todos podem e devem contribuir com o seu quinhão de sabedoria.

Nem luz de lamparina nem LED. Apenas o brilho de um grande mosaico multicolorido com suas partes se interpenetrando e vibrando em perfeita sincronia: isto é o que a humanidade poderia ser como uma grande família cósmica se funcionasse de acordo com os princípios acima, mas parece que ainda falta algo.

Você está seguro de que está fazendo a sua parte?

Nota

O LED é um componente eletrônico semicondutor, ou seja, um diodo emissor de luz (L.E.D. = Light emitter diode), mesma tecnologia utilizada nos chips dos computadores, que tem a propriedade de transformar energia elétrica em luz. Tal transformação é diferente da encontrada nas lâmpadas convencionais que utilizam filamentos metálicos, radiação ultravioleta e descarga de gases, entre outras. Nos LEDs, a transformação de energia elétrica em luz é feita na matéria, sendo, por isso, chamado de Estado Sólido.