Para finalizar a série de artigos sobre A Estupidez, entre Realidade e Teoria (divertissement), é preciso focalizar a análise no cenário nacional: Portugal, estará à margem da geo/biblio-grafia internacional da estupidez? Ou terá conseguido a sempre almejada (?) centralidade?

“Não canto aquele herói pio e valente
Que depois de ter visto a cara Pátria
A cinzas reduzida e campo vasto,
Mil p'rigos contrastando, um dima busca
Aonde com os seus ditoso seja.
A mole Estupidez cantar pretendo
Que, distante da Europa desterrada,
Na Lusitânia vem fundar seu Reino.”

É todo um equacionamento da situação e um programa de acção. Ao fundo, o “Parvo” de Gil Vicente oferece-se no teatro do mundo medieval, mais rigorosamente, na Barca do Inferno que nele se enche…

Após a reforma pombalina da academia portuguesa, com a criação de faculdades (de Matemática e de Filosofia Natural) e a reformulação dos curricula de outras (de Teologia e Direito), as mudanças registadas no reinado seguinte, fortemente vinculadas à ortodoxia da Inquisição, causaram controvérsia e alguns textos que tiveram impacto.

O Reino da Estupidez surge anónimo no séc. XVIII, sob o pseudónimo de Fabrício Cláudio Lucrécio, acusando a academia de Coimbra de ter reinstalado a Estupidez no lugar de Minerva. Atribuído a Francisco de Melo Franco (1757 – 1823), já no seu tempo (p. ex., no Auto de Fé da Inquisição de Coimbra de 26 de Agosto de 1780 e, depois, por José Agostinho de Macedo n’ Os Burros, 1813), foi, segundo Teófilo Braga, divulgado por José Bonifácio de Andrada e Silva (1763 – 1838), provocando sucessivas atribuições, réplicas e sátiras. Lembro, p. ex., Ode a Fileno, dividido entre a Universidade medieval e a ‘moderna’, da altura).

Também no séc. XVIII, Ribeiro Sanches, nessa perspectiva, afirma, no seu Dificuldades que tem um Reino Velho para emendar-se, 1777?), ser Portugal um “Cadeveroso Reino” que deveria ser transformado (“e formar dele um Novo”).

António Sérgio, em “O Reino Cadeveroso ou o problema da Cultura em Portugal” (conferência de 1926) retoma o termo, afirmando que, em Portugal, se passou “do Reino da Inteligência - para o Reino da Estupidez”, “enquanto a França, a Suíça, a Itália, a Holanda, a Alemanha, a Inglaterra fazem ampliar no século XVII as conquistas do Renascimento”, e declara “Somos o Reino Cadaveroso; somos o Reino da Estupidez” (Ensaios, vol. II, 2ª ed., Lisboa, 1957, 1º cap., pp. 44).

Jorge de Sena retoma o tema n’O Reino da Estupidez (1978-79) e convoca essa visão no poema A Portugal:

Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
A pouca sorte de nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza
tanta quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Em Peregrinatio ad loca infecta (1969, Portugal (1950-59)) e as Notas de um Regresso à Europa (1968-69) desdobram a sua relação desiludida com a pátria, ainda que ressalvando casos, marcada pela admiração por estrangeirados/exilados.

No séc. XIX, Sebastião José Pedroso, dedica-lhe uma ‘sátira jocosa’ (A rasão fustigando a estupidez com as primas inveja e maledicência), mas, em 2002, eleva-se à dignidade de título de tese de mestrado (Rui Miguel R. Leal Lopes. O cúmulo da estupidez [Texto policopiado]: um ensaio sobre interpretação, Universidade de Lisboa).

Bernardo Soares maravilha-se com tal aspecto (“Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.”, Livro do Desassossego) e Fernando Vieira de Sá, por seu turno, observa O Reino da Estupidez nos Caminhos da Fome. Memória de tempos difíceis (1996).

Com matéria tão insólita e atractiva, Vítor J. Rodrigues ensaiou uma Teoria Geral da Estupidez Humana (1992) e analisou a A Nova Ordem Estupidológica (1995), justificando o interesse social e psicológico no tema:

"a inteligência tem sido sempre preterida pela estupidez, talvez porque esta funcione melhor na nossa sociedade. É mais rápida, emperra-nos menos, exige menos de cada um de nós. A impulsividade, ajuda muito. São emoções primárias, extrínsecas, pouco elaboradas pela inteligência. Toda a sociedade de consumo é construída através dessas motivações. Isso é como pôr uma cenoura à frente do burro."

E propõe mesmo o estatuto de disciplina científica para a Estupidologia, que teria a seu cargo a reconceptualização da estupidez, "das diversas demonstrações estupidológicas quotidianas, à percepção estúpida das coisas", a "douta estupidez", desde as formas indeléveis da "estupidez artística à metafísica da estupidez".

“Assim corre o mundo, a tropeçar nas suas pernas, fazendo reféns entre a minoria que pensa por si. Se a cotação do barril de crude subir exponencialmente, é possível que em Portugal aumente o preço da bica. A estupidez é global. Viaja muito mais rápido que nós. O mundo inteiro está como o fígado de um pato para o foie gras. Tudo bate certo e nada faz sentido, na longa cavalgada estupidológica. O nosso amanhã chegou ontem. O nosso futuro já está ultrapassado. Temos medo do escuro. Somos as nossas trevas.”

E conclui Vítor J. Rodrigues, psicólogo e académico:

“A estupidez devia ser considerada uma ameaça pública. Devia ter mandados de captura por toda a parte. E não deixa de ser curioso que para interromper o ciclo voraz da estupidez se tenha que começar a desenvolver piores estúpidos. Para inverter o paradigma é necessário muito mais energia. Um certo tipo de energia, que só se obtém desligando o interruptor. Mas essa é outra ciência.”

Eis, pois, uma linhagem de intelectuais portugueses que destacam o tópico da estupidez na sua reflexão sobre a nação marcada pelo desencantamento, a desilusão e a decepção… com revolta ou melancolia. De uma voz “enrouquecida” da épica de outrora ao tricentenarista crepuscular O Sentimento dum Ocidental (1880), de Cesário Verde, e a’O Ressentimento dum Ocidental (1980), de Alexandre Pinheiro Torres, em centenária evocação do anterior.

Muitos mais escreveram sobre ela, escrevivendo-a… ou não. Afinal, como diz Carlos Maria Bobone,

“A verdadeira estupidez dá cabo da cabeça aos tratadistas. Se é doença, ainda não lhe encontraram o princípio, mais do que activo, irrequieto. Tem a omnipresença de Deus e a poliformia do Diabo, é mortal porque pode matar e imortal porque insiste em não morrer. Todos a vêem mas ninguém a sente: a estupidez é o ex-libris traseiro da Humanidade, fiel ao cérebro Humano até que a morte nos livre dela.”

Ou, como afirmava Camilo:

“Todo o homem tem uma porção de inépcia que há-de sair em prosa ou verso, em palavras ou obras, como o carnejão de um furúnculo. Quer queira quer não, um dia a válvula salta e o pus repuxa.”

Imperial, a estupidez até ocupa um programa de referência, o Sociedade Civil, do excelente jornalista Luís de Castro: “Sabedoria vs. Estupidez” (episódio 105, de 21/6/2018 | temporada 14), com Rui Zink e Henrique Monteiro. E, corajosa, não foge dos altos dignitários políticos, como ilustram estas 3 pérolas do 14º Presidente da República português, Almirante Américo Thomaz:

“Comemora-se em todo o país uma promulgação do despacho número Cem da Marinha Mercante Portuguesa, a que foi dado esse número não por acaso mas porque ele vem na sequência de outros noventa e nove anteriores promulgados....” (revista Opção, ano II, n.º30)

“...É uma terra [Manteigas] bem interessante, porque estando numa cova está a mais de 700 metros de altitude...” (O Século, 1/6/1964)

“A minha boa vontade não tem felizmente limites. Só uma coisa não poderei fazer: o impossível. E tenho verdadeiramente pena de ele não estar ao meu alcance.” (Diário de Notícias, 23/6/1964)

E a realidade para além da teoria? Talvez seja melhor não olhar… ou aguardar a legislação reclamada por Vítor J. Rodrigues.